sábado, 2 de outubro de 2010

O reconhecível cheiro da alegria - Cineas Santos

De English Lavender


Em mais de uma oportunidade, já afirmei que pesco as minhas alegrias em lagoa rasa com anzol de linha curta. Assim tem sido ao longo da existência. Hoje, gostaria de dividir com os meus três leitores uma pequena/grande alegria: recobrei o meu cheiro, ou melhor, o meu cheiro está de volta. Não se assustem, irmãos, eu explico. Menino, vivendo em São Raimundo Nonato, fui incumbido por um cidadão chamado Barbosa de ir buscar, na república onde ele dormia, um exemplar da revista O Cruzeiro. Na verdade, era um quartinho ordinário, com uma rede, uma mesinha e um cabide com peças de roupa. Ao lado da revista, vi uma caixinha branca com listras amarelas e cinza. No rótulo, a expressão English Lavender, intraduzível para quem mal gaguejava algumas palavras. Movido pela curiosidade - julguei tratar-se de remédio - retirei o frasco da caixa e destampei-o. A fragrância impregnou-me a alma para sempre. Naquela altura da existência, eu já havia preparado uma lista com produtos que teria de comprar quando crescesse: uma sanfona Scandalli, uma bicicleta Monark, um relógio Lanco, um rádio Philco e uma calça rancheira. Acrescentei um frasco daquele perfume suave e irresistível. Munido de tais apetrechos, estaria preparado para conquistar Cleonice, por quem errava meu coração...

Já se disse que o homem é um animal que prepara listas para pôr alguma ordem no caos e limitar seus desejos. Daquela primeira lista, só perfume efetivamente tornou-se realidade. Quando completei 15 anos de idade, comprei o primeiro frasco de English Lavender que, desde então, passou a ser o meu cheiro. São 48 anos da mais absolutamente fidelidade. Nunca nem sequer pensei em substituí-lo por outro.

Ocorre que, por algum tempo, o produto foi retirado de circulação. Confesso que bateu o maior desespero. Como enfrentar o mundo sem o meu cheiro? À época, cheguei a consultar um causídico sobre a possibilidade de processar a Atkinsons por danos à minha alma. Como viciar um cristão com um produto e retirá-lo de circulação sem aviso prévio? Imaginem a Coca-Cola fora do mercado? Seria uma grita capaz de despertar a ira do Senhor. O certo é que, sem ter a quem recorrer, escrevi uma crônica – O Inconfundível Cheiro da Velhice – na qual, pateticamente, implorava: meus amigos e minhas amigas, se, em suas andanças por aí, encontrarem o meu cheiro, comprem (é baratinho) para mim e me deem de presente no dia do professor, dos pais, dos desesperados... É com esse cheiro e vestido de azul que pretendo encarar a eternidade. Luíza Miranda foi a única a atender às minhas súplicas: deu-me um exemplar encontrado no próprio guarda-roupa. Passei a usá-lo parcimoniosamente, como quem usa água benta...

Eis que, de repente, a English Lavender, com roupagem nova, mas conservando a mesma fragrância, voltou às prateleiras dos supermercados, armarinhos e farmácias. Para evitar sobressaltos, estoquei o bastante para uns vinte anos. Amigas de meu coração, eis-me aqui, vestido e azul e exalando o reconhecível cheiro da alegria. Vinde e compartilhai.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Dos factoides aos fatos

De Comprador de almas

O anedotário político conta que, passada a eleição numa cidadezinha do interior, o coronel político local dirigiu-se à zona rural para devolver os títulos eleitorais aos seus respectivos donos. Um dos eleitores, ao ter o título de volta, perguntou:

- Coronel, o senhor pode nos dizer em quem nós votamos?
- Ora, pois! Como vou dizer?! Vocês não sabem que o voto é secreto?!

À primeira vista, isso parece coisa do passado, mas, à luz do século 21, tudo isso acontece, escancaradamente, por todo o Brasil, de forma mais ladina e mais safada. E não só com a gente simples do interior, mas com os doutos citadinos e pseudos formadores de opinião que enchem nossa caixa de correio eletrônico com montagens mal feitas e notícias inventadas como se tudo verdadeiro fosse.

Ainda não sei qual o mais daninho: a compra e venda do voto em si, ou essas mensagens apócrifas que circulam na Net, encaminhadas por suposta gente do bem, que deveria, no mínimo, pesquisar a veracidade da fonte antes de passar adiante como fato consumado. A mais aberrante que vi, até agora, é uma que me encaminharam, recentemente, afirmando que Dilma havia feito um pacto com Satanás para ganhar a eleição e, um ano depois, morreria de câncer, entregando a presidência para seu vice, Michel Temer, “este sim, o verdadeiro filho do Capeta”, dizia a mensagem.

Seria cômico se não houvesse a maledicência por trás da falsa notícia. No oba-oba, os mais fracos de espírito acreditam que realmente isso aconteceu e que Dilma colocou sua alma à venda a troco de um simples ano de governo. É o desespero dos neonazistas na tentativa de se reverter a iminente derrota de Serra, um candidato sem brilho, sem proposta, e repleto de promessas eleitoreiras. Esse negócio de prometer dar aumento irreal para o salário mínimo e aposentados beira à irresponsabilidade e loucura. Como o brasileiro tem memória curta, vale a pena relembrar: no governo FHC foi a maior briga no Congresso Nacional para se elevar o salário mínimo a 70 dólares. E os trabalhadores sofreram oito anos sem aumento de salário. O atual governador de Alagoas, do partido de José Serra, vai deixar o governo sem dar um centavo de aumento ao funcionalismo público. São quatro anos de arrocho salarial e agora o representante maior do PSDB vem com promessas mirabolantes, achando que o povo é idiota.

No mês de junho as enchentes devastaram uma parte de Alagoas, matando dezenas de pessoas e desabrigando milhares. Santana do Mundaú, a cidade mais atingida, e ainda praticamente destruída, ressurgiu dos escombros para entrar no noticiário policial. O prefeito de lá, e os respectivos secretários, foram afastados do cargo por gastar quase um milhão de reais em campanha eleitoral para um candidato da coligação peessedebista. Como se não bastasse, a polícia apreendeu toneladas de doações guardadas na casa do alcaide, que só distribuía aos necessitados mediante o compromisso do voto nos candidatos do mesmo. Alguns secretários, verdadeiros ladrões, encontram-se foragidos, pois também fora decretada a prisão dos mesmos.

No mês de agosto esse mesmo prefeito apareceu na imprensa local reclamando da rigidez na aplicação das verbas federais na reconstrução das cidades atingidas pela catástrofe, que, em vez do dinheiro parar nas contas das prefeituras, fora criada uma conta sob a responsabilidade do governo estadual, cujo uso deveria passar pelo crivo do Ministério Público e Tribunal de Justiça. Dentre outras coisas, ele, o prefeito, disse: “O Governo Federal está tratando os prefeitos como bandidos.”

Diante dos últimos fatos, eis a constatação:

- E não é que Lula tinha razão!


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Plantio - Luís Pimentel



Um poema de Luís Pimentel com cheiro de infância no arraial do Junco.

De Semeando a terra

Plantio

É assim que se faz:
com uma enxada pequena
abre-se a cova, também pequena,
acumulando ao seu lado a terra retirada.
De um saco de pano pendurado na barriga
retiramos a semente - de milho ou de feijão -
e a jogamos dentro da cova.
Com o pé empurramos a terra,
que vai cobrir, aninhar, esquentar a semente
até que ela fomente, se inflame, renasça um dia
- como a cada dia em que renascemos.
O trabalho pode ser desempenhado a dois.
E é bem mais interessante quando feito
por um menino e sua avó.
Um menino, uma avó, uma enxada pequena,
uma sacola de pano cheia de sementes
- quase sempre de milho ou de feijão -
pendurado no peito murcho da avó.
As mãos da avó na enxada,
esburacando a terra com tanto carinho
que acho até que a terra nem sentia.
O pé miúdo empurrando a terra
e ordenando ao menino que fizesse sua parte.

Que era jogar com o pé a terra dentro da cova,
cobrindo a semente de milho ou de feijão
ali despejada pela avó,
completando o ritual que - como saber? quem saberia? -
ficaria para sempre na memória.



E em seguida era
torcer pela chuva e acompanhar a gravidez da terra.
E o seu parto, brotando a primeira folha,
promessa do esperado fruto,
e em todos os passos, passo a passo o caminhar da avó,
o seu silêncio do plantio à colheita,
da semente à panela,
o gosto do feijão e do milho,
o cheiro da avó que o tempo levou em covas:
foi assim que se fez.




Pétalas - Cineas Santos

De Convite - Pétalas - Cineas Santos

IRMÃOS E IRMÃZINHAS: FAZIA UM TEMPINHO QUE EU PROCURAVA UM PRETEXTO PARA REUNI-LOS E PODER ABRAÇÁ-LOS. POR FALTA DE COISA MELHOR, ENGENDREI UM LIVRINHO DE POEMAS CIRCUNSTANCIAIS E UMA EXPOSIÇÃO COM FLORES DE MONTURO. DE QUEBRA, TEREMOS A BOA MÚSICA DE JOSUÉ COSTA E UMA TAÇA DE CAJUÍNA.ENTÃO FICA COMBINADO: DIA 30 DE SETEMBRO (QUINTA-FEIRA) NA OFICINA DA PALAVRA (R. BENJAMIN CONSTANT-1400) - ÀS 20 HORAS.

FRATERNALMENTE,

VELHO ANCIÃO
(Cineas Santos)

domingo, 26 de setembro de 2010

Das Inconveniências da Fama - Cineas Santos

Adoniram Barbosa, cujo centenário de nascimento se comemora este ano, era uma figura singular: sendo um dos maiores compositores da MPB, comportava-se como um cidadão comum. Meio triste, um tantinho irônico, percorria os bairros de sua predileção- Brás e Bexiga - com seu indefectível chapéu de feltro, bigodinho cafona, gravatinha borboleta e paletó de cor inescrutável. Gostava de fumar, beber e prosear com gente do povo. Foi, seguramente, o maior cronista musical de São Paulo. O sambista que deu voz aos “despossuídos”, inclusive, aos vagabundos.

Conta-se que, certa vez, a Prefeitura de São Paulo resolveu homenageá-lo por um pretexto qualquer. Armou-se um belo palco, convidaram-se intérpretes famosos, autoridades, imprensa e picaretas em geral. Meio deslocado, Adoniram recebia cumprimentos e empurrões. Lá pelas tantas, o homenageado já estava no fundo do palco. De repente, passa por ele o secretário de cultura do município. Sem levantar a voz rouca, o compositor perguntou: “Ô meu, não dá pra transformar isso tudo em...” e esfregou o indicador no polegar. O secretário sorriu amarelo, deu um tapinha nas costas do sambista e misturou-se aos notáveis. Sem ter o que fazer naquele palco estrelado, o autor de Saudosa Maloca desceu, procurou o botequim mais próximo e foi tomar sua cerveja e pitar um cigarrinho sossegado. Na hora de pagar a conta, comentou, irônico: “Tudo isso não me rendeu uma birita”.

Por que me lembrei disso? Bem, na semana passada, fui procurado por uma cidadã jovial, elegante, loquaz. Depois dos elogios de praxe, o pedido: “Professor, o senhor poderia me indicar um bom professor de português? Com essas novas regras, está todo mundo confuso. Queremos oferecer um curso básico de português aos nossos funcionários”. A cidadã é diretora de uma instituição. Provoquei-a com a pergunta: Pode ser velho? . A moça sorriu: “Claro, professor”. Fechei o diálogo: Estou à mão. Contrate-me e começaremos amanhã mesmo. A jovem senhora não escondeu o espanto: “O senhor?! Impossível: o senhor é famoso e não podemos pagar-lhe”.

Sem querer comparar-me a Adoniram: ele era um gênio; eu, um simples come-giz, repito, com outras palavras, o que ele afirmou: a minha ‘fama’ não me rende um mísero contrato temporário de trabalho. Curiosamente, sou solicitado a cada instante para proferir palestras, escrever prefácios, e “abrilhantar” festa de formatura, de batizado de cachorro, de casamento de boneca, de enterro de anão... De graça, é claro!

Minhas irmãs, meu irmãos: espalhem aos quatros ventos que sou apenas um professor; que não quero cargo, homenagens, louvações. Quero apenas que me contratem para ministrar aulas. É certo que não sei muito, mas como já errei o bastante, posso evitar que meus alunos cometam os mesmos erros que cometi. Posso ensinar-lhes, por exemplo, distinguir fama de brilhareco.