sexta-feira, 22 de maio de 2009

AS EPÍSTOLAS

 A palestra do jornalista e escritor Luiz Gutemberg na terceira bienal alagoana do livro, em 2007, versou sobre literatura e jornalismo, ou seja, quando o primeiro cumpre o papel do segundo. Nessa conferência cultural, ficamos sabendo que houve uma época em Maceió que as cartas anônimas faziam parte do cotidiano, destruindo casamentos e criando desafetos. Descobriu-se, depois, que tais cartas tinham uma única matriz, deduzindo-se, então, que tudo não passava de calúnia de algum invejoso. 
Ele explicou como se escrever carta anônima sem deixar má impressão. Em primeiro lugar o missivista tem que parecer solidário com o infortúnio do outro e não usar da grosseria nem fazer afirmações deliberadas. Deve se escrever assim: “Olha, acho que era sua mulher entrando no motel tal, hora tal, com um cidadão parecido com fulano”. Ou: “Acho que vi você e o seu marido saindo do motel. Não sabia que você tinha pintando o cabelo de loira.” Sempre nessa linha, sutil, deixando o estrago nas entrelinhas. Mas uma coisa é de fundamental importância: jamais se deve assinar uma carta anônima.
Com a globalização e o uso disseminado do correio eletrônico, será que ainda se usa carta anônima? Acho que não. A carta convencional perdeu-se nos meandros da inutilidade, mais por culpa da pressa do ser humano em obter notícias em tempo real, do que propriamente pela falta de assunto. Em segundos, milhões de cartas virtuais cruzam o ar em endereços criptografados e decodificados eletronicamente, sem o calor do manuseio humano nas centrais de triagens, do carteiro e, principalmente, do missivista.
As cartas eletrônicas, se ganham na velocidade, perdem na qualidade, pois, muitas vezes, escritas às pressas, as palavras são abreviadas, as mensagens são curtas, que mais lembram o telegrama de antigamente, aqueles em Código Morse, vistos em filmes de faroeste. Falando nisso, alguém ainda se lembra o que é um telegrama?
A carta, escrita à mão, tem uma inquestionável vantagem sobre a eletrônica: o cheiro. Por mais bacana que seja o chamado e-mail, por mais bem escrito que seja, não terá o cheiro nem o perfume usado naquele momento de devaneios da pessoa que escreve. Como se achar as impressões digitais em um e-mail? Como identificar as lindas caligrafias femininas, que levavam alguns homens a suspirar e a se apaixonar pela missivista? O maior inventor das fontes de editor de texto não conseguiu inventar uma fonte com a caligrafia feminina, pois, coisa que só Deus sabe o porquê, só a elas coube o feitiço e o encanto das letras (e de outras coisas também).
Cartas e telegramas faziam parte do currículo escolar e era obrigatório o seu estudo nas primeiras séries. Uma carta bem escrita, de imediato revelava o aluno para o mundo da Gramática, pois nela havia de tudo um pouco, desde as simples palavras e pronomes de tratamento, ao intricado jogo das orações subordinadas, reforma ortográfica e conjugações verbais. Havia cartas pessoais, cartas comerciais, cartas disso, cartas daquilo e as livrarias vendiam papel apropriado para carta, que não podia ser qualquer um nem escrita de vermelho ou verde, que se dizia ser “antididático”, para não se chamar diretamente o missivista de “grosso”. As editoras faturavam com a venda de livros com modelos de cartas comerciais, de amor, de amizade, modelos para pedir dinheiro a político e de se iniciar um amancebamento.
Havia os floreios, as letras requintadas, desenhadas, verdadeiras obras de arte. Você já imaginou Pero Vaz de Caminha enviando um e-mail para el-rey? D. Manuel, rei de Portugal de então, com o Tesouro Real atolado até o pescoço em dívidas, preocupado com a conta de telefone, com os vírus e spams, deletaria a mensagem e não teríamos testemunha documental do Descobrimento, nem o primeiro escrito de nossa Literatura.
Na adolescência recebi uma carta de uma namorada de Sergipe. O intróito: “Meu amor, você é o lenitivo do meu ser, o refrigério de minha alma.” Estanquei. Eu, com dezessete, ela, com dezesseis anos. Aquilo não era linguagem de adolescente. Mostrei a carta para o meu primo Paulo, que morava na mesma rua, em Alagoinhas. Ele também ficou sem saber o que era lenitivo, muito menos refrigério. “Ser”, ainda dava para decifrar. Paulo sugeriu: “Isso deve ser coisa desses livros de cartas de amor. A minha irmã tem um. Vamos lá dar uma olhada!” Fomos. Realmente ela havia copiado de um livro chamado “Como escrever cartas de amor”

"Que sacana! E agora, Paulo, o que é que faço?!"

"Peraí..." - pegou o livro, folheou, e respondeu - "Diga que a resposta está na página 105."

Nunca mais tive notícias da namorada. 
O escritor Antonio Torres enche o peito de orgulho quando, em suas palestras, diz que se descobriu escritor escrevendo cartas para o povo de sua terra, e que os pés-de-moleque, rosários de ouricuri e outras guloseimas foram seus melhores direitos autorais já pagos até hoje. Siga o exemplo desse insigne escritor e deixe aflorar o escritor que existe em você: escreva uma carta. Sempre haverá alguém querendo saber notícias suas, do seu povo, da sua terra. O correio convencional ainda é o meio mais seguro, mais rápido e mais barato para comunicação interpessoal. A Internet é pra quem tem tempo disponível, paciência de Jó e a grana de tio Patinhas.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

FELIZ, APESAR DE TUDO

Por José Pedreira da Cruz*
Baseado em episódios da vida real



Fotos: http://petropolisnoseculoxx.zip.net/images/APP.jpg [estudantes]
http://progaltuni.blogspot.com/2007/12/retrica-e-o-pragmatismo-da-aliana-para.htm




Fruto de uma árvore genealogicamente humilde, aqui, com o meu primeiro raio de luz, desabriguei-me choroso das entranhas maternas e me inseri numa árida e sofrida região do terceiro mundo.

Surgi tal qual um algarismo a ser inserido nos registros e nas estatísticas de governos, onde, ainda, aqui estou, sedento de justiça, junto a uma leva de milhões de compatriotas que só servimos como dados de referência para a rolagem das dívidas ou, apenas, como ferramenta propícia para o enriquecimento de exploradores da pobreza.

Porém, com tantas mazelas, ainda me sobra tempo e espaço para sorrir e dizer que sou feliz, mas creio que o digo pelo simples e voluntário ato de falar.

– Sim, sou feliz – repito –, apesar de ter saboreado do meu primeiro chocolate aos 14 anos de idade, e isto graças ao “Seu” Kennedy. Foi este bondoso homem que através do programa “Aliança para o Progresso” mandou vitaminar as criancinhas desnutridas do mundo afora e, entre elas, eu. Foi isto o que me disse a professora Teresa, a grande lapidadora da minha negra ignorância. Foi ela quem me confidenciou ser o Tio Sam o remetente daquela deliciosa comida feita à base de chocolate, e eu, na mais pura ingenuidade, julgava ser verdadeiramente sobrinho do Tio Sam.

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Diminuíram-se assim minhas fraquezas e adquiri mais ânimo e energias com o dito alimento, do qual, se bem me lembro, estava higienicamente embalado em saco plástico – creia, eu nunca tinha visto um saco plástico –, e nele o slogan:

“USA X BRAZIL”
“ALIANÇA PARA O PROGRESSO”
“ALIMENTO PARA A PAZ”

Repleto de incredulidade com o tal slogan, eu me indagava: por que alimento para a paz se a guerra com o Paraguai cessara há décadas? Estariam inventando outras? Deus que nos acuda! Ficava eu falando a sós, enquanto alisava o saco do chocolate estampado com uma bandeira listrada rubramente e divinamente estrelada. Foi ai que decorei a flâmula americana e passei a achá-la muito bela. Ela ocupava quase toda a embalagem do chocolate, enquanto que a de destino, a auriverde, bem miudinha, lá num cantinho do saco, mal se podia ler o recado que nos foi atribuído numa faixa branca cortando o céu do Brasil: “Ordem e Progresso”. “Ordem nós temos em demasia, mas o tal progresso só vem de muletas, assim nos dizia a professora Teresa”.


**

Meu status como comedor de chocolate americano estava em alta, e eu nem imaginava que naquela mesma época as criancinhas da Biafra, lá no além–mar, eram tão desnutridas quanto eu, e se empanturravam, também, do dito alimento, e que em suas angelicais inocências, tais quais as minhas, acreditavam piamente serem verdadeiros sobrinhos do tal Tio Sam. Éramos irmanados nas necessidades calóricas e nas ignorâncias.

Mas, num entardecer de certo dia, o destino cumprindo seus planos me fez sentar num banco de jardim d’uma cidadezinha interiorana, aonde eu me deliciava com as músicas dos serviços de alto-falantes, quando, abruptamente, a melodia cessou e o locutor com uma voz embargada e trêmula, balbuciando, alertou:

– Agência Press - “Estados Unidos, Dalas, Texas”, urgente:
“O presidente John Fitzerald Kennedy acaba de falecer vitimado em atentado”.

Estupefato com aquela estupidez eu me arrepiei dos pés à cabeça.

– Mataram “seu” Kennedy?! Mataram o presidente! – gritei exclamando aos ventos e interrogando a mim mesmo.

– Mataram Kennedy?
– Valha-me Deus!

Era só o quê se dizia; era só o quê se ouvia.

Com certo pesar o homem do alto-falante repetia aquela lastimada notícia por seguidas vezes sem fundo musical e sem nenhum comentário e em seguida desligava o som deixando a população da cidade em êxtase, mas, passados alguns minutos, ele voltava a noticiar a mesma fala. Parecia que só queria se recompor.

Num piscar de olhos surgiram tarjas negras em portas, janelas e carros, e tudo parou; e o luto foi iminente; e a comoção transformou-se em lágrimas nos olhos dos habitantes do planeta.

Momentaneamente tive uma sensação de ter perdido alguém da familia.

Levantei-me do banco do jardim e silenciosamente me recompus monologando:

“Não, ele não é meu parente, nem tampouco meu presidente!”

Tive calafrios ao imaginar que alguma coisa muito grave estaria acontecendo nos bastidores da guerra fria, e que o mundo, doravante, corria sério perigo frente à temida corrida atômica. Só havia um Kennedy para frear a escalada da morte que se imaginava iminente. E agora, como seria sem ele? Morreríamos? Será que nunca mais eu comeria um chocolate em pó? Indaguei-me, e nesse instante me lembrei de um tristonho diálogo que há anos atrás ouvira entre minha mãe e nossa vizinha Don’ana que nervosamente eufórica punha a cabeça para fora da janela e gritava:

– Comadre Maria! Ôôô comadre!

– O quê é comadre Ana? – respondeu-lhe mamãe, segurando-me ao colo.

– O presidente Vargas morreu! O rádio disse que foi suicídio.

– Valha-me Deus! Suicídio não, comadre! Suicida não entra no Céu! – questionou mamãe pondo em pauta um dos princípios da sua fé e concluiu sua tristeza dizendo: e agora, comadre? O que vai ser dos pobres?

Não deu para segurar a emoção e aparei uma gota que rolando do seu rosto caiu na minha mão.

– Estamos perdidas, comadre! – retrucou Don’ana, também lacrimosa.

Naquele instante uma onda de tristeza apoderou-se de mim, e também chorei, mas certamente foi o choro de uma criança que nem mesmo sabia o significado da palavra suicídio. Creio que aquelas pequenas lágrimas foram pelo fato de me sentir um pobre prematuramente desamparado, e que, sequer, havia até então degustado um chocolate.

Depois me senti calejado com o descaso que me impuseram, e me consolei ao ver-me equiparado a outras tantas milhões de almas desamparadas que perambulam pelo mundo, e que, provavelmente, ainda vivem na mais promíscua necessidade sem nunca se ter deliciado de um chocolate em pó made in USA, made in Brazil, nem made in lugar nenhum, mas, mesmo assim, se diz feliz.


*José Pedreira da Cruz é mais conhecido como Tico de Tiago, irmão de Delosmar e Zé Walter.



terça-feira, 19 de maio de 2009

COISAS DO JUNCO

Esta foi contada por Jânio Esiquiel.

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"Em meados dos anos 90 o então prefeito Wilson Cruz fez um carnaval fora de época no Junco para comemorar a emancipação política da terra. Trouxe um dos melhores trios elétricos da Bahia. Era um caminhão tão grande que alguns amigos e eu ficamos com medo quando o vimos descendo a Ladeira Grande.

A cidade estava em festa. Meios-fios pintados, foguetório explodindo no céu e o povo exibindo suas melhores vestimentas. O trio elétrico começou a tocar e o povo, em vez de pular, ficava olhando admirado. Por volta do meio-dia, quando a cachaça subiu à cabeça, alguns arriscaram abrir a rodinha. Um gaiato, bêbado, deu um soco no motorista do trio. Confusão maior não teria se tivesse batido no prefeito. O trio parou, o povo cercou o valentão e a polícia o levou preso.

Como é costume em toda cidade pequena o prefeito mandar prender ou soltar, uma fila se fez ao redor de Wilson pedindo para que o arruaceiro fosse solto. Era coisa da cachaça e coisa e tal e, sob tal argumento, Wilson pegou o microfone do trio e ordenou que os policiais o soltassem. Outra fila de descontentes se formou, alegando que o cara era arruaceiro, sempre arranjava confusão e ia terminar com a festa. Wilson tornou a pegar o microfone e mandou os policiais prender novamente o valentão. Nova fila de cabos eleitorais pedindo a favor do preso, que era coisa da juventude e que ele ia se comportar.

Quando os soldados iam chegando à porta da Delegacia, ouviram nova ordem do prefeito mandando soltar o preso. Antes que o mesmo desaparecesse no meio da multidão, o prefeito deu nova ordem de prisão. Com a polícia ainda no meio do caminho, o arruaceiro subiu no trio, pegou o microfone e falou revoltado para o prefeito:

– Porra, Wilson! Afinal de contas, vai me prender ou vai me soltar?! Resolva logo essa porra!"



segunda-feira, 18 de maio de 2009

TRIBUTO A DOIS POETAS:


2 - Eurico em Alagoinhas.


Uma temporada entre luz e sombra

(Texto escrito para a revista "Légua e meia", da Universidade Estadual de Feira de Santana, em homenagem ao centenário de nascimento do poeta feirense Eurico Alves Boaventura - 1909 - 2009)


Por Antonio Torres




Eurico Alves Boaventura Foto: http://www.unicamp.br/~boaventu/eur5.gif



Todos os crepúsculos agora estão em mim...

Almas estranguladas passeiam com a minha alma de confidências,
pelas escuras alamedas do passado...

Porque vens, agora, sombra amiga,
quando esta longa noite do tempo veio para esquecer,
por que vens aflorar no meu caminho a sinfonia do meu tormento?
Perdi sonhos, perdi desejos infecundos, perdi de ouvir a música do tempo.


É como se fosse a vida que imitasse a arte. Assim pensa o autor destas linhas num dia do mês de março de 2009, ao ler um poema que Eurico Alves Boaventura escreveu em 1951. Trata-se do belo e melancólico Rondó das sombras consoladoras, cujo trecho acima ilustra à perfeição a memória de uma tarde de 1970, quando o poeta recebeu em sua casa, numa ensolarada e solitária rua que se chamava Manuel Bandeira, uma alma estrangulada pelo excesso de horas presa à poltrona de um ônibus comum, do Rio de Janeiro a Feira de Santana.

Foi uma breve visita. E de surpresa. Nada além de uma pausa a meio do caminho para outros nortes, e para acorçoar-se ao sabor de um café e dois dedos de prosa, que resultariam num passeio de confidências pela longa noite do tempo em alamedas escuras do passado, e que, revisitadas agora, desembocam na página de Luz em agosto na qual William Faulkner escreveu: É o conhecimento – e não a dor – que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.

Erma, sim. Selvagem, não – poderia ter concluído o recém-chegado à ruazinha àquela hora deserta, e ao ser recebido com a fidalguia peculiar a um homem de letras citadino de reconhecível herança aristocrática rural. E Juiz de Direito, ainda por cima, embora já a viver os crepúsculos da aposentadoria na sossegada Rua Manuel Bandeira, a quem o autor da Estrela da vida inteira devia a homenagem, por razões que a esta altura, imagina-se, poeta algum ignora, pelo menos na Bahia.

Recorda-se aqui a entrada da casa por uma varanda lateral, onde havia uma cadeira de balanço. Acrescente-se ao impacto visual das singelezas à chegada, portas e janelas azuis, e paredes brancas, tudo a trazer para a arquitetura urbana do século XX uma evocação da era das mansões coloniais, se é que não se delira nessa recordação.

De certeza é que àquela hora o sol amenizava-se, já em queda para o poente. E que um vento morno regia a música do tempo, numa orquestra a farfalhar em memorável concerto a sua Antífona para depois de amanhã: O vento marca o tempo, o tempo que ouço uivando/ nas marchas dos moços sem rumo.

Elegantemente trajado, como de hábito, o doutor Eurico Alves Boaventura encaminhou o seu visitante a uma mesa senhorial ao centro da sala, na qual reinava o silêncio, quebrado apenas quando surgiu uma senhora (parente sua, talvez) para cumprir o sagrado ritual da hospitalidade sertaneja, ao portar uma bandeja com um bule e duas xícaras de café. O que faltava ali? Os convivas de outra sala há onze anos atrás, numa cidade chamada Alagoinhas, onde o anfitrião era o mesmo dessa tarde que parecia mais propícia a uma soneca do que a recepções não programadas.

Mas não. O protagonista desta história era, antes de tudo, um ser gregário, um mestre na arte do convívio. Recebeu a inesperada visita de braços abertos, e de forma tão calorosa que preenchia o vazio das ausências, a começar pela dos familiares, àquela hora cuidando de seus afazeres fora das instâncias domésticas. E de que cuidava ele, agora, à sombra dos seus sessenta e um anos? Dos retoques finais num livro de mais de mil páginas datilografadas, que lhe havia consumido, em pesquisas e elaboração, a maior parte dos anos já vividos. Com o calhamaço à mesa, de repente a sala povoou-se dos vaqueiros que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que Portugal criou neste lado do Atlântico, na saga que levaria à civilização do pastoreio. Ler em voz alta era para ele uma praxe que vinha há muito do tempo, certamente bem anterior às tertúlias na biblioteca de sua casa de Alagoinhas, em noites em que cintilava uma nova constelação da poesia brasileira, que em sua voz descia redonda em ouvidos até então mais afinados com a lírica d’antanho, que os anos não traziam mais, numa cidade que ainda se movia ao ritmo dos boleros, embora já a ensaiar os primeiros passos de Rock’n roll.

Se foi um privilégio privar dos saraus na intimidade do seu lar alagoinhense, a partir do que seus convivas não mais leriam poesia da mesma maneira, imagine o que dizer da honra de ser brindado com as primeiras páginas de uma obra inédita, cuja envergadura sociológica e histórica transcendia a dimensão do volume e o esforço ciclópico do autor para realizá-la. Mas de repente ele parou. E não por cansaço ou para fazer algum comentário. Com uma mão sobre a página (devia ser a quinta ou a sexta), cuja leitura interrompera, e, abaixando ainda mais os olhos, que se apertavam por trás dos óculos, disse, em tom sussurrante, como se falasse para si mesmo:

- Quando eu me lembro...

Perturbado pelos sinais de desgosto que a repentina lembrança estampava num rosto àquele instante visivelmente sulcado de mágoas, o eterno ouvinte do poeta, ensaísta etc. e mestre informal Eurico Alves Boaventura eclipsou-se entre a luz externa, porta e janelas afora, e a sombra interna em uma alma martirizada do tempo. Restava saber que martírio era esse.

- Você sabe o que aconteceu comigo?

A cena congela aqui, no retrospecto que se tenta fazer agora. Porque a memória só alcança até aquela pergunta, diante da qual o seu ouvinte não se sentiu uma sombra consoladora, mas uma presença incômoda, desassossegadora, que trazia para aquela sala a lembrança da cidade onde o que acontecera fora abominável demais para ter consolo ou remissão, embora não saiba, agora, se já chegara àquela mesa, naquela casa de Feira de Santana, e naquela tarde de 1970, sabendo o que se passara com o Meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas no terrífico ano de 1964, na sequência das arbitrariedades militares, cuja dolorosa lembrança o tornava (a ele, o Juiz) refém do estribilho do rondó que escrevera vinte e três anos antes: Todos os crepúsculos agora estão em mim... Pois agora, e por ironia do destino, ele devia estar sentindo deveras a dor que poderia então ter sido apenas um fingimento.


O que foi mesmo que lhe aconteceu?

- Sim, eu me lembro – diz Valdemar Paraguassu, que há muitos anos vive em Salvador, mas em 1964 morava em Alagoinhas, e a poucos passos da casa do doutor Eurico, como o chamam todos daquela cidade que o conheceram. – Fomos presos num mesmo dia. Assim que me soltaram, fui embora, para assumir um emprego no Banco do Brasil em outro lugar. Por isso não soube o que aconteceu com ele depois da sua prisão. O que me lembro é do clima de terror daqueles dias, quando um comerciante encrenqueiro de lá passou a acusar de subversivo todo aquele com quem ele tinha alguma contrariedade, ou simplesmente a quem não simpatizava. Foram tantas as prisões por denúncias desse tipo, que elas viraram uma esculhambação, a ponto de o comando local das repressões ter de exigir que só fossem feitas por escrito. E com firma reconhecida!

O que dizer disso agora? Que teria sido cômico se não fosse trágico?

No caso específico do doutor Eurico, porém, a maledicência fora engendrada por um Oficial de Justiça. É o que recorda Aristóteles Freitas Costa, que àquela época era um dos alunos que mais se destacava no Ginásio de Alagoinhas, e que, como outros estudantes intelectualmente inquietos, tinha em doutor Eurico um mentor extra-classe. Costumava visita-lo no Fórum, às vezes acompanhando-o a caminho de casa, parando numa esquina e outra, em conversações que podiam ultrapassar uma boa meia hora. Formado em Direito, o velho Arica hoje mora no bairro de Icaraí, em Niterói, RJ. O que lembrou mais, ao telefone:

- Ele me aconselhava a não parar de estudar. E me indicava autores, me incentivava a ler muito. E bem. Uma vez me emprestou um livro de poesias traduzido por Manuel Bandeira, que não devolvi, porque não o vi mais, depois da sua prisão.

- E por que você não o viu mais?

- Eu trabalhava numa sorveteria do meu pai e um dia vi o policial que prendeu o doutor Eurico parado na porta, me encarando. Deduzindo que ele estava de olho em mim, fui me esconder numa fazenda que a gente tinha, e por lá fiquei um tempo, esperando a poeira baixar. Quando voltei, o doutor Eurico já não morava mais na cidade. Os comentários eram de que ele havia sido transferido para Vitória da Conquista.

Foi o que aconteceu, confirma Juraci Dórea em seu ensaio Eurico Alves e a Feira de Santana. Está no livro A poesia de Eurico Alves – Imagens da cidade e do sertão, organizado por Rita Olivieri-Godet, e publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia em 1999. Amigo de Eurico de longa data, o artista plástico, arquiteto e também poeta Juraci Dórea esclarece: “[...] com exceção dos períodos de férias, Eurico pouco viveu em Feira de Santana. Aos 14 anos de idade (1923) ele já se encontrava em Salvador, matriculado no Ginásio N. S. da Vitória [...] Em 1934, recém-formado, estava em Feira de Santana, porém logo no ano seguinte transferiu-se para Capivari, hoje Macajuba”... E daí em diante: Tucano, Riachão de Jacuipe, Poções, Canavieiras, Alagoinhas, Vitória da Conquista “e, finalmente, Salvador”. O que significa que o doutor Eurico Alves Boaventura só voltou a viver na capital já perto de aposentar-se, e isto pouco ou nada influiria mais em seu destino literário.

Voltemos à sua temporada de Alagoinhas (1959-1964), não necessariamente Une Saison en Enfer, mas que só não se tornou uma página em branco na história de Eurico graças às incansáveis buscas biobibliográficas de Juraci Dórea e à memória de Maria Eugênia Boaventura, que era bem pequena naquele tempo, mas ainda se lembra que a casa ficava à Rua Carlos Gomes, 63, com a biblioteca na sala de visitas, e que era frequentada pela professora Normândia Azi Lacerda, o advogado Murilo Cavalcanti, um funcionário da Justiça do Trabalho chamado Giése (José Giése da Cruz, primo do autor destas linhas), o alfaiate que fazia os blazers do seu sempre elegante pai, que por sua vez fundou o Lyon’s Clube da cidade, tendo sido o seu primeiro presidente. Maria Eugênia recorda-se ainda que o doutor Eurico foi professor do Ginásio de Alagoinhas, onde dava aulas pautadas pela pluralidade de conhecimentos.

Entre as pessoas lembradas pela professora Maria Eugênia, há uma que poderia emergir das sombras reivindicando este epitáfio:

Tropeço, dentro da noite em cadáveres de sonhos...

Porém, mãos de suicidas,
As dolorosas e augustas mãos dos suicidas,
Vêem ensombrar a minha fronte para eu sonhar...

Todos os crepúsculos agora estão em mim...

No contexto destas memórias, esses versos evocam o trágico fim de um dos convivas das tertúlias à Rua Carlos Gomes, 63, Alagoinhas, Bahia. Nascido num distrito de Inhambupe chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), onde fora batizado e registrado com um sobrenome de origem alemã como nome próprio, aposto ao de José, Giése cometeu o tresloucado gesto na casa do bispo de Juazeiro da Bahia, aí pelo ano de 1971, deixando uma carta cujo conteúdo o bispo jamais revelaria, por considerá-lo um segredo de confissão. Para que não se avente premonições do poeta, lembremos que o Rondó das sombras consoladoras é de 1951, e, também, que Eurico e Giése só vieram a se conhecer em 1959. Mas como evitar a tentação de dizer outra vez que foi a vida que imitou a arte?


1959-2009: Memórias, Sonhos...



Assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram os passos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do silêncio...


- Atirador 22, sentido! Marche, marche! Do Tiro de Guerra 110 ao Ginásio de Alagoinhas, e de lá ao Fórum ou à Rua Carlos Gomes, 63 – em 1959!

Há um fabuloso tempo a ser reencontrado nessa marcha de volta.

Chegou a hora de fazer-se a luz sobre a sombra dolorosa e inexpressiva como um sonho morto que até aqui pairava na sua memória, porque você, por mais que se esforçasse, não conseguia enxergar com nitidez todo o impacto causado pela chegada do juiz-poeta Eurico Alves Boaventura àquela cidade das luzes verdes nas fachadas, em um ano de sonhos dourados de uma juventude que ele mesmo faria crer-se promissora. “Memória! Junta na sala do cérebro...” Sobre o que vocês conversavam? Nas tertúlias que promovia, ele lia seus próprios poemas? E que poetas lidos ou recomendados por ele foram verdadeiras revelações? Alguns deles chegaram a ser tão decisivos para sua formação literária, quanto os ficcionistas – Jorge Amado e Graciliano Ramos, por exemplo -, que o professor Carloman Carlos Borges levou você a conhecer, dois anos antes? Enfim, qual foi o seu real legado?

Resposta: só agora, e graças à memória do caro colega do Ginásio de Alagoinhas Aristóteles Freitas Costa, me dou conta de quem pode ter me levado a ler um poema de Federico Garcia Lorca traduzido por Manuel Bandeira, e que começa assim:

Cantam os meninos
na noite quieta;
arroio claro,
fonte serena.

OS MENINOS:
Que tem teu divino
coração em festa?

EU:
Um dobrar de sinos
perdido na névoa.

A lembrança desses versos, muitos anos depois de os haver lido em algum lugar do passado, e certamente num livro emprestado pelo doutor Eurico, levou-me a escrever o romance Balada da infância perdida, cuja primeira edição é de 1986, e que foi traduzido para o inglês com o melódico título Blues for a lost childhood. E agora também me lembro do meu segundo dia de trabalho como aprendiz de repórter policial no Jornal da Bahia, ao desembarcar de Alagoinhas em dezembro de 1959. Como no dia anterior eu havia fracassado na cobertura do movimento do porto de Salvador, onde não fui capaz de farejar uma manchete espetacular – um tiroteio cinematográfico entre policiais e contrabandistas -, me empurraram para o Necrotério Nina Rodrigues. Dali não iria voltar sem assunto. Logo à entrada via-se, estirado num estrado, o cadáver de um rapaz que se matara.

Corri para o jornal e comecei a matéria com um poema de Godofredo Filho que falava do absurdo de se morrer aos 20 anos, entregando-a em seguida, e com a ansiedade imaginável, ao chefe de reportagem, o poeta João Carlos Teixeira Gomes, que a passou ao chefe da reportagem policial, o também poeta Jeová de Carvalho, que por sua vez mostrou-a ao editor-chefe, o ficcionista Ariovaldo Matos que, de dedo em riste, disse ao aprendiz de repórter que ele estava ali para fazer jornalismo e não literatura, que poesia era coisa de... Bom, felizmente não perdi o emprego. Mas o que importa aqui é que com certeza foi Eurico quem me levou a ler Godofredo Filho. E Cassiano Ricardo. E Jorge de Lima – com quem se correspondia - de cuja obra hoje se diz que “permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”.

... Reflexões


Não dá para imaginar que Eurico um dia tenha tido pretensões de ser posto pela posteridade nas mesmas alturas de seus mais festejados (e fraternos) pares Manuel Bandeira e Jorge de Lima. Ele não era, como Gilberto Freyre – que reconhecia como grande escritor - “uma pessoa feita para se ver no espelho”. E sua obra continua “restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata Juraci Dórea, mesmo em se tratando de “uma figura de proa nos primórdios do modernismo na Bahia”, no dizer do consagrado poeta Florisvaldo Mattos.

Tiremo-lo das sombras. Para que este não seja um tributo a cem anos de solidão.