quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Luís Pimentel - Lembrando o velho Graça

Conta a lenda que o jovem repórter procurou o velho revisor, no covil dos copidesques do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, para pedir uma opinião sem compromisso sobre texto literário. O velho revisor chamava-se Graciliano Ramos, escritor já consagrado que ainda precisava suar a camisa em redações para pagar as contas. Chegando à sexta ou sétima linha do texto, levou o primeiro susto, sublinhou uma palavra mal-empregada e devolveu os papéis ao iniciante, com um comentário sucinto:

– “Outrossim” é a puta que o pariu!

Graciliano detestava conversa fiada. Quando a conversa era escrita, então, nem se fala. Economizava na fala e chegava a ser mesquinho no texto:

“Escrever é cortar palavra” era a sua máxima. E mais:

“Quem escreve deve ter todo cuidado para a coisa não sair molhada. Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal. Naquela maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lava. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer”.

Tenso como seus parágrafos e seco como o chão do seu sertão alagoano, onde nasceu em 1892 (Quebrangulo), o Velho Graça nos deixou no ano de 1953. Apreciador de aguardentes e fumante inveterado, não foi correspondido no amor devotado por mais de 40 anos aos cigarros Selma. Teve os pulmões bombardeados pelos bastões cancerígenos.

A fogueira das vaidades vive a incendiar corações e mentes de escritores, sempre achando que tudo o que escrevem deveria estar no index das obras-primas da humanidade. Diante desses, vale sempre a pena a gente se lembrar de Graciliano Ramos, que passou a vida a desconfiar de tudo e de todos, sobretudo dele mesmo.

Ao ser comunicado da premiação pela Prefeitura do então Distrito Federal dos originais de sua ficção infanto-juvenil A terra dos meninos pelados (publicado em 1941), torceu o nariz para o júri, em carta à mulher, Heloísa Ramos: “Premiaram uma bobagem, sem qualquer valor literário”. Diante do contrato para edição, foi além: “O Zé Olympio quer editar Os meninos. Problema dele, se está querendo jogar dinheiro fora”.

Graciliano Ramos interrompeu e retomou inúmeras vezes o ótimo Angústia (1936), por não enxergar ali qualquer valor literário (como também não enxergava nos anteriores, Caetés, 1933, e São Bernardo, 1934). O livro só não foi interrompido de vez (o que talvez interrompesse também a sua carreira literária) por conta da insistente cobrança de Rachel de Queiroz. O desconfiado queixou-se com Heloísa: “Julgo que terei que continuar o Angústia, já que a bandida da Rachel cobra e diz que é bom (...) Escrevi ontem duas folhas, tendo prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria”.

O livro que o projetou no cenário nacional foi São Bernardo (mereceu adaptação histórica para o cinema, com Othon Bastos e Isabel Ribeiro nos principais papéis. Vidas Secas também foi adaptado e filmado – com Átila Iório de protagonista –, pelo hoje imortal da ABL Nelson Pereira dos Santos). Ali desponta o narrador rigoroso de períodos curtos e contundentes, linguagem crua, magra e fria, contando a história do bruto homem da roça Paulo Honório:

“Aqui nos dias santos surgem viagens, doenças e outros pretextos para o trabalhador gazear. O domingo é perdido, o sábado também se perde, por causa da feira, a semana tem apenas cindo dias e a Igreja ainda reduz. O resultado é a paga encolher e essa cambada viver com a barriga tinindo”.
Não há uma palavra fora de lugar.

Graciliano Ramos correu atrás de bode, trabalhou em balcão de armazém, vendeu tecidos, foi professor, instrutor de ensino, prefeito em Palmeiras dos Índios (AL), preso pelo Estado Novo sob acusação de comunismo (a experiência de cadeia mais valiosa do mundo, pois ao mundo legou Memórias do cárcere, publicado no ano de sua morte) e mais tarde até comunista. Mas jamais precisou de coerência partidária para exibir, ao longo da vida, coerência e apego ao povo mais necessitado do seu sertão ou encontrado por ele nas inúmeras pensões por onde viveu no Rio de Janeiro.



quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Eu sou eu, nicuri é o Diabo



Tá lá um corpo estendido no chão. Em vez de um rosto, a foto estampada de um político sorrindo debochado para a sorte do eleitor. Antegoza o mórbido prazer de sacanear o povo. Mas o defunto não parece se importar com a foto nem se importunar com os homens de branco pisando seu corpo em pose para a posteridade. A multidão reunida, ora olha o corpo, ora olha o assassino, revólver fumegante na mão, em pose de valentão. Em outros tempos alguém gritaria:

- Corre que é Lampião! – e a galera debandava.

Mas não era o caso em questão. O morto, em vida, nunca tivera importância, por que teria agora que já não pode mais comer feijão? Morreu porque todos nós haveremos de morrer um dia e ele só fez se antecipar aos fatos. Pelo seu sorriso de morto estampado na cara, parece que morreu feliz. Mas, espere... não é o morto que sorri. É o seu assassino na fotografia que cobre o seu rosto.

Do meio da multidão surgiu serelepe o rapazinho do Site local. Finalmente uma crônica policial para ensanguentar o seu palavreado confuso. Antevia a manchete: “Dez tiros acidentais e à queima-roupa leva cidadão a conhecer o Paraíso antes da hora. O prefeito, autor dos disparos, pede desculpas à população por perturbar a ordem pública”. Não, assim não está bom. Está muito confuso. É melhor assim: “Prefeito atira no que não viu e mata quem queria matar. A família do morto pede perdão ao assassino pelo incômodo e promete pagar as balas que ele gastou”. Assim está melhor. Quem sabe se com essa manchete não ganhará o Prêmio Esso de Jornalismo?

O delegado, que ninguém nunca viu nem mais gordo nem mais fino, finalmente deu o ar de sua graça. Cumprimentou os homens de branco e puxou conversa com o assassino. Pareciam velhos amigos confabulando à mesa de um bar. Riram desenxabidos de uma piada sem graça. Os homens de branco também riram, e a multidão de puxa-sacos, que não ouviu a piada, aplaudiu. O delegado pediu aos homens de branco para se afastar, pois era necessário fotografar o morto para o laudo cadavérico. Era praxe. O caso já estava esclarecido: legítima defesa do prefeito.

Enquanto o delegado fotografava o corpo, o prefeito dava entrevista a uma rádio local. Estava no ar, ao vivo, pena que não fosse a cores. Falou e falou e falou bonito, disse um bajulador, mais tarde, à sua mulher. Ela não disse nem que sim, nem que não, só fez, “hum, hum”, e o bajulador interpretou como aprovação. 

Alguns vereadores apareceram distribuindo aparelho de rádio ao povo para que pudessem ouvir a entrevista. A torre de celular, que nunca funcionou, nessa hora liberou sinal para que se pudesse ligar para a Rádio e se solidarizar com o assassino, mas logo deixou de funcionar devido ao congestionamento da linha. Todo mundo queria dizer “Alô, prefeito, eu te amo!”, segundo o noticiado no Site local, horas depois.

O prefeito alegou legítima defesa da honra. O cidadão, logo cedo, estava no hospital esperando uma brecha na consulta, mas como só foi atendido três horas depois, reclamou das pessoas que furaram a fila. Ele, como prefeito e médico, podia atender de acordo com o grau de interesses políticos, vez que não precisava do financeiro para clinicar. Era rico. Podre de rico e podia tudo. E quem era aquele Zé Mané para contestar suas preferências? Dias antes deixara bem claro naquela rádio quem era que mandava no pedaço: uma paciente reclamou das longas horas de espera no consultório e ele a mandou tomar naquele lugar. Ela, e quem mais se atrevesse a reclamar do seu procedimento. Fazia um favor ao povo sendo prefeito daquela cidade e ai daquele que ousasse lhe contrariar. 

Nesse dia a Oposição o intitulou de Dr. Arrogância. Ah! Não. Não foi a Oposição. Esta se vendeu no segundo dia de mandato do Zeca Diabo do Sertão. Mas quem foi afinal?

O delegado deu os trabalhos por concluído, o repórter desligou o microfone, o rapaz do Site pediu a alguém para fotografá-lo beijando o prefeito, e este, antes de ser carregado nos braços do povo até o bar ao lado, receitou remédio para lombriga a um rapaz que se queixou de surdez temporária por causa dos estampidos.

Enquanto o carro do lixo não levava o corpo para o monturo, um cachorro se deliciou com o sangue espalhado na calçada.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Moraes Moreira - Sonhos Elétricos

De Moraes Moreira - Livro

 Hoje à noite, a partir das 19 horas, o cantor e compositor Moraes Moreira estará autografando o seu livro "Sonhos Elétricos", na Livraria Cultura, que fica no Shopping Salvador.

O livro narra a trajetória bem sucedida desse ícone do carnaval baiano, que passou alguns anos esquecido pelos organizadores do carnaval de Salvador, e que ressurgiu no carnaval deste ano arrastando uma multidão pela Avenida e no trajeto Barra-Ondina. Tive a sorte de participar desse momento mágico, inclusive fui matéria no Jornal A Tarde, de Salvador, cujas fotos e texto de Edna Lopes podem ser vistos no link "Carnaval", deste blog.

O livro custará apenas uma rodada etílica sem a gorjeta do garçon, em qualquer espelunca de Salvador, ou seja, R$ 39,90.

domingo, 12 de dezembro de 2010

O Sertão Vai Virar Mar






Fim de ano é tempo de viagem, principalmente no mês de janeiro, por isso escrevo sobre um oásis artificial no meio da caatinga nordestina: a barragem de Xingó. O acesso a ela pode ser feito por três lugares: Canindé de São Francisco, em Sergipe, Paulo Afonso, descendo o rio de catamarã, ou pela cidade histórica de Piranhas, em Alagoas.
Piranhas é uma das cidades históricas do Nordeste, às margens do Rio São Francisco, na divisa de Alagoas com Sergipe, distante trezentos quilômetros de Maceió, porém, para as operadoras de turismo baseadas na capital alagoana, é como se ficasse do outro lado do planeta: simplesmente ignoram esse filão turístico-histórico-arquitetônico.
O descaso começa pela própria Secretaria Estadual de Turismo, que não mantém nenhum serviço de atendimento ao turista na região nem divulga a beleza do lugar. Nem mesmo na Sala de Visitantes da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), um pouco antes da barragem de Xingó, cuja parada é obrigatória para o turista que queira visitar a parte interna da barragem, ninguém sabe informar sobre o que acontece na parte externa dos imensos paredões. Se sabem alguma coisa, não fazem a mínima questão de passar adiante.
Cheguei lá, não por informação dos alagoanos, mas por matéria publicada no Caderno de Turismo do jornal “A Tarde”, de Salvador. Porém a matéria omitia informações importantes e fundamentais para o conforto mínimo do turista: a falta de estrutura básica, como restaurantes e hotéis.
Para o turista avulso e acidental como foi o meu caso, me instalei na cidade de Delmiro Gouveia, e lá, fiz o meu centro de operações, vez que fica perto de Xingó, Piranhas e Paulo Afonso, havendo transporte regular de “Van's” a cada vinte minutos para essas cidades.
Delmiro Gouveia deve sua importância histórica à Fábrica da Pedra, primeira indústria da região nordestina e que desafiou o monopólio britânico na industrialização de linhas de algodão, cuja versão não oficial, dá conta do assassinato do industrial Delmiro Gouveia, em 1917, como crime de mando da Coroa britânica, por ele ter desafiado o poderio econômico de Sua Majestade. Deve-se a ele, também, a construção da hidrelétrica de Angiquinhos, na cachoeira de Paulo Afonso, a primeira hidrelétrica construída aproveitando a energia da queda d'água.
Piranhas se localiza a vinte quilômetros de Delmiro Gouveia. São duas cidades: Piranhas Nova, construída no planalto, ao nível da barragem de Xingó, e Piranhas Histórica, a cidade remanescente da cheia do São Francisco, em 1989, que destruiu metade da cidade. A Piranhas Histórica é rica em seu patrimônio arquitetônico, encravado nas rochas e tendo como cenário as tranquilas águas do Rio São Francisco à saída das turbinas da hidrelétrica, e os cânions formados ao longo do seu leito. Existe um mirante natural, de uns cinquenta metros de altura, ampliando a visão do horizonte.
Na cidade há também o Museu do Cangaço, aberto diariamente das oito às dezoito horas. É lá que funciona a Secretaria de Turismo de Piranhas, mas ninguém sabe dar informações a respeito do lugar ou de qualquer evento cultural. Indicaram a Prefeitura como ponto de informação turística e, na Prefeitura, indicaram o Museu.
Não existem hotéis nem restaurantes; apenas duas pequenas pousadas. O transporte ligando as duas cidades é feito por moto-táxi, cujo ponto de apoio localiza-se na entrada de Piranhas Nova.
Na outra margem do Rio São Francisco localiza-se a cidade de Canindé de São Francisco, mais estruturada por ter sido uma cidade planejada com a represa, vez que  a Canindé primitiva ficava às margens do Rios São Francisco e foi engolida pelo lago de Xingó. Fica a um pouco mais de duzentos quilômetros de Aracajú, em pleno coração da caatinga, e nela está o Xingó Parque Hotel, bem estruturado, mas, por ser o único, dá vontade de chorar na hora de pagar a conta. É este hotel o responsável pela organização do passeio de catamarã, com duas opções: diariamente e duas vezes ao dia, cruza a imensidão do lago artificial e navega em contracorrente pelos cânions do rio até as proximidades da barragem PA- 4, em Paulo Afonso. O ponto de partida é no Bar Flutuante, um bar, restaurante e atracadouro na barragem de Xingó, feito com imensos cilindros flutuantes.  O outro passeio é programado apenas duas vezes na semana e o embarque é feito cerca de um quilômetro depois da descarga das turbinas. O barco segue a correnteza do Rio São Francisco, passando por Piranhas, adentrando outros cânions e aportando em Angicos para um passeio pela trilha do cangaço, onde Lampião, Maria Bonita, e mais nove cangaceiros tiveram suas cabeças cortadas a facão.
Em ambos os passeios é preciso fazer reserva no Hotel Xingó. Contudo, para quem perdeu a reserva ou chegou de última hora, existe a opção de se fazer outro passeio de barco pelo espelho d'água da barragem, parando para um banho entre uma muralha de cânions, a uma profundidade de 80 metros, onde existe uma plataforma flutuante e é obrigatório o uso de coletes salva-vidas durante o banho. Ficam vários guarda-vidas de prontidão na plataforma. A reserva para essa excursão é feita no Bar Flutuante e há dois passeios diários: às onze e às quinze horas. O embarque e desembarque são feitos no atracadouro do próprio bar. A capacidade do barco é de 150 passageiros, fora a tripulação. A desvantagem é que essa excursão não sobe o leito do rio, em direção de Paulo Afonso, como o catamarã.
Caso o caro leitor esteja interessado em participar de um passeio à região, sugiro que faça através das operadoras de turismo de Aracaju, que fazem excursões regulares para Xingó e Paulo Afonso. Também pode obter informações pelo e-mail: mariojorgeturismo@yahoo.com.br. Ou então seguir direto para Paulo Afonso e desfrutar de toda sua estrutura de atendimento ao turista, e, uma vez lá, participar das excursões diárias pelas barragens e cidades históricas ribeirinhas. Uma sugestão é visitar a casa das máquinas das usinas PA-2 e 3, oitenta metros dentro da rocha, e conhecer, in loco, a gigantesca transformação da energia que gera o progresso na Região Nordeste.
Paulo Afonso é um oásis em um deserto de rochas e cânions, paraíso das águas represadas, e o mais novo “point” dos amantes e praticantes dos esportes radicais, principalmente o rapel. Mas, essa aí, é uma história para outro dia de prosa.