sábado, 21 de janeiro de 2012

Quando se nasce duas vezes

Tomou o último gole do café observando o crepitar da lenha no fogão. Havia um cheiro inconfundível de infância: o leite direto do peito da vaca, o cuscuz de milho moído por ele mesmo, o café torrado pela sua mãe e a carne seca pendurada sobre o calor do fogão. Não havia geladeira na casa, portanto, só se comia carne fresca no dia da feira.

Pegou um tição, acendeu um cigarro industrializado e dirigiu-se à janela soltando longas baforadas. Os irmãos, quase todos reunidos na cozinha, esperaram uma bronca do pai, ou até mesmo uma recriminação da mãe, pois nenhum filho se permitia fumar na frente deles. Os dois se mantiveram calados. Agora ele era o filho pródigo que a casa retorna. Podia fumar na presença dos pais sem que isso importasse em desrespeito. Era jornalista de um grande jornal no sul do país e as pessoas de sua terra tinham-no como um ser especial, alguém de muita consideração. Um genro que todo pai queria ter, um herói que todo povo precisa.

Olhou pela janela e viu um dos seus irmãos pequenos brincando com o cachorro no terreiro. O menino que ele viu nascer já estava um homenzinho. Lembrou-se de um detalhe, uma curiosidade:

– Mamãe, como é o nome de Tonico?
– Tonho de Lisboa.
– Como?!
– Antonio de Lisboa. É que esse seu irmão desde a minha barriga que é tinhoso. Deu um trabalho danado pra nascer e eu fui obrigada a fazer promessa pra Santo Antonio de Lisboa, senão morreríamos os dois.
– Mas mamãe, Tonho de Lisboa é lá nome de gente?! Esse menino, sem nome, já é problema, imagine com um nome feio desse!
– Mas foi promessa que fiz a Santo Antonio de Lisboa, meu filho!

Jogou a bituca do cigarro janela afora, pegou um chapéu de palha no sofá da sala, montou na jega de seu irmão Guidório e tomou rumo do povoado. Foi direto para o Cartório de Registro de Pessoas Naturais. Dez minutos depois saiu sorridente, com um registro na mão. Puxou a jega pelo cabresto até a casa do seu avô, que era perto. Entrou na casa e encontrou o avô sentado na cozinha, caneca de café na mão.

– A sua bênção, padrinho!
– Deus lhe abençoe, meu neto. Como vai Doralice?
– Vai bem. Mandou lhe pedir a bênção – mentiu.
– Tá abençoada. Foi bom você aparecer aqui hoje, pois estou com um dilema pra resolver. Você que é um caboclo setenta e que conhece os quatro cantos do mundo, me diga uma coisa: que devo fazer com um moleque que anda pegando minhas ovelhas pra fazer safadeza?
– Ora, padrinho, dar meia dúzia de bolos nele!
– Foi o que pensei em fazer, mas vou fazer pior: vou lhe dar uma surra de cansanção.

O visitante sentiu o corpo coçar. Surra de cansanção é castigo medieval. Além de coçar, o cansanção arde, queima, dor terrível por mais de semana.

– Quem é esse moleque, padrinho?
– É o safado do Tonico, seu irmão.

Um sentimento de culpa doeu-lhe a consciência. Precisava prevenir o irmão para ele não pisar na casa do avô enquanto ele estivesse com essa ideia de castigo brutal. Pediu licença, montou na jega e retornou à casa.

– Mamãe, conversei com Maricas Coxeba e ela deu um jeito. Tonico agora se chama Antonio Ronaldo. Ronaldo em homenagem a um colega meu, fotógrafo do jornal onde trabalho, e Antonio do seu santo. Santo Antonio não vai reclamar pela falta do Lisboa, que não era sobrenome dele. Tá aqui a certidão de nascimento.

Palavra de primogênito tem lá seu valor e peso. Palavra de primogênito e ídolo do povo da roça e da cidade tem mais valor ainda. O que ele dissesse, estava dito e bem dito, mas Tonico não gostou nem um tantinho do sermão aplicado em nome da moral e dos bons costumes. Antes a surra de cansanção ao lengalenga de intelectual, com algumas palavras, a maioria talvez, totalmente ausentes do seu vocabulário. Que diabo é zoofilia?!

O tempo no meio da caatinga custa a passar, mas passa, como em qualquer outro lugar. Assim, chegou o dia da partida do jornalista. O prefeito fez questão de mandar a Rural da Prefeitura conduzi-lo até a capital, onde pegaria um ônibus para São Paulo. Mas, antes do embarque, os estudantes foram obrigados a cantar louvores ao filho ilustre na porta da Prefeitura.

Depois que a poeira da estrada assentou, a vida continuou como dantes no quartel de Abrantes. Tonico continuou sendo Tonico, apesar de se chamar Antonio Ronaldo. Evitou ir a casa e, principalmente, aos pastos do avô, até o dia que a família se mudou para uma cidade maior e lá o tempo passou mais rápido. Quando ele precisou dos documentos para fazer o Exame de Admissão ao Ginásio, descobriu que Antonio Ronaldo nunca existiu e que talvez precisasse começar tudo outra vez como alguém que acaba de nascer. A data de nascimento, que gostava de se gabar de ter nascido em plena terça-feira de carnaval segundo afiançara sua mãe, havia mudado de 21 de fevereiro para um mês antes, 21 de janeiro, dia comum no mundo todo.

Assim, de repente, o menino Tonho de Lisboa, pisciano de nascença, passou a se chamar Ronaldo, um aquariano nascido por decreto do seu irmão e da escrivã Maricas Coxeba.


sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Cineas Santos - O casarão dos mistérios


De Fazenda Serra Negra - Aroazes - PI

Na aridez do sertão de Aroazes, a 180 km de Teresina, um casarão de meados do século 18 resiste bravamente à ação corrosiva do tempo. Cercada de lendas e mistérios, a sede da Fazenda Serra Negra continua instigando a curiosidade de quem se dispuser a visitá-la. Até o nome da fazenda está mergulhado em mistérios. Reza a lenda que se deve ao fato de um dos primeiros proprietários da gleba, Luís Carlos Pereira Bacelar, ter serrado uma escrava viva, como castigo por um ato de desobediência. De concreto, existe uma data esculpida numa pedra: 1766. Alguns pesquisadores afirmam que a fazenda é bem mais antiga. Em documento datado de 1693, o Pe. Miguel de Carvalho já faz referência a uma fazenda situada à margem do Rio Negro (hoje, Riacho Serra Negra), com a presença de três homens: um branco e dois negros. Não é improvável tratar-se da Serra Negra.

Tombado desde 2006, o casarão, em péssimo estado de conservação, espera as ações de restauro previstas em documento firmado entre as autoridades piauienses e o Grupo Edson Queiroz, atual proprietário do imóvel. Em audiência pública realizada na sede da fazenda, em 30 de março de 2010, foram estabelecidas metas e determinados prazos a serem cumpridos com celeridade. O documento termina assim: “...o anteprojeto arquitetônico de restauração da sede antiga da Fazenda Serra Negra será apresentado pelo representante do Grupo Edson Queiroz e submetido à apreciação da FUNDAC no prazo de 60 (sessenta) dias contado desta data; por sua vez, a FUNDAC analisará o projeto e buscará dados com as instituições pertinentes no prazo de 90 (noventa) dias, contado do recebimento do projeto, também sendo de sua incumbência informar ao Ministério Público do Estado do Piauí acerca da apresentação do projeto, bem como de outras notícias relacionadas ao caso”. Até o momento, nenhuma das ações previstas no texto firmado entre Ministério Público, FUNDAC, IBAMA, UFPI, UESPI e Grupo Edson Queiroz saiu do papel. 

Na semana passada, na companhia do arquiteto Olavo Pereira da Silva e do cinegrafista João da Mata, visitei a fazenda e constatei que os estragos provocados pelo tempo e pela ação dos homens são visíveis em toda parte. Como não sou especialista em nada, limitei-me a registrar tudo o que vi para mostrar no programa “Feito em Casa”. O arquiteto Olavo Pereira é taxativo: “Serra Negra não é apenas uma das fazendas mais antigas do Piauí; é um patrimônio de inestimável valor histórico a ser cuidadosamente preservado”. Com a palavra os que têm o poder de decidir.

Ê, saudade!!!!

Quem viu, viu, e pode ver pela segunda vez; quem não viu, eis a oportunidade de ver: um clip de marchinhas com Raul Seixas e Wanderléa produzidos para o Fantástico de 1978.

Alô, alô, carnaval, uma raridade com Carmen e Aurora Miranda, Lamartine Babo, Almirante e Bando da Lua

Clip do musical Alô, Alô, Carnaval, dirigido por Adhemar Gonzaga e lançado no cinema em 1936. A ideia era levar ao público que não tinha acesso aos cassinos os grandes nomes da época de ouro do rádio, como Carmen Miranda, Aurora Miranda, Almirante, Lamartine Babo e Bando da Lua. Gastei a manhã recuperando o áudio desse clip para mostrar aos acauãzeiros e acauãzeiras um momento raro da nossa Música Popular Brasileira.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Yes, nós temos Braguinha e Miúcha!

Braguinha e Miúcha cantando marchinhas em 1984, para televisão italiana.

Luís Pimentel - Neblina e mormaço

Começo 2012 – ano que vem à luz carregado de nuvens cinzas e de ameaças nada poéticas de final dos tempos – com uma crônica em versos: homenagem à poesia e àqueles que tem esperanças de que o futuro seja melhorzinho. 



O velho está quieto e cansado.
Feito um animal, um burro de carga.

Está triste, está só e mal-amado.
Ninguém lhe redime, nada o absolve.

Nos olhos do velho, uma chuva fina.
No peito, neblina. Mormaço nas costas.

O velho não deve, não teme, não foge.
Mas identifica o calor nas veias:

como um descompasso, uma coisa feia.
O velho já teve a vida no braço.

Quando a luz se apaga, sonha dias antigos.
Uma calça curta, uma estrada inteira,

um carro de bois, certa pasmaceira,
um pai que era duro, um cão que era meigo,

um calor-castigo, porcos e galinhas,
enxada no ombro, espinhos na pele,

um cabrito enjeitado, que o velho-menino
tratava com zelo – mamadeira e carinho no pelo.

Quando o dia se acende, vem tudo de novo:
levanta em silêncio, caminha com modos,

Se lava com métodos, se enxuga com calma,
Se arrasta sem júbilos ao café com leite,

ao remédio certo, ao jornal sem cura,
ao final da fila, ao sinal da espera.

Vai à janela e contempla o céu, ainda o mesmo.
Não faz qualquer pedido de ano novo,
qualquer promessa.


domingo, 15 de janeiro de 2012

Do barroco ao pós-marginal, afinal, quem você lê?


Em qual palavra impermeável
Posso amarrar hoje
Meu pescoço
Pra não afundar nesse charco?
Âncora – Jeane Hanauer em Cronópio Godot

No dia 31 de dezembro conversava eu com o grande poeta e compositor Salgado Maranhão sobre a penúria dos poetas brasileiros. Os bons e os remediados. Se for verdade que quase todo brasileiro é um técnico de futebol, pode-se afirmar, também, que cada brasileiro é um poeta nato. Ou assim pensa que é.

Essa nação de poetas seria maravilhosa se o ego poético da esmagadora maioria não atrapalhasse o trâmite natural da poesia: os poetas que acham que sabem versejar, invariavelmente nunca leem seus pares, ímpares ou afins. Mal leem bula de remédio. E quando o milagre acontece de se ler outro poeta, é para se usar como espelho, nunca por prazer ou lazer. Comprar um livro? Nunca, jamais, em tempo algum! São adeptos do “eu só me basto e fim de papo” e a vida continua.

Coincidentemente, na semana seguinte, noutra conversa com o poeta piauiense Cineas Santos sobre o sucesso que Salgado Maranhão está fazendo nos Estados Unidos, com agenda cheia para palestrar nas universidades de lá, e ele, o Cineas, reclamou de como era difícil se vender livro de poesia no Brasil justamente “porque os poetas tupiniquins não gostam de ler outros”, disse ele. Acrescentou, indignado: “Uma então amiga, poetisa, veio me dizer que não lia outros poetas porque ela só se bastava”. Ele não me disse, mas, pela indignação, há de se supor que ela perdeu um grande leitor.

Esta semana recebi o último livro da poetisa paranaense Jeane Hanauer, “um ótimo livro por sinal”, disse a minha musa e também poetisa Edna Lopes, que leu “Cronópio Godot” em uma só talagada. No prefácio deste livro, o escritor paulista Pedro Bandeira puxa o mesmo assunto logo no primeiro parágrafo:

“Em minhas andanças, muito fazedor de verso me procura, desalentado, cansado de insistir, ansiando pela orientação de um veterano que lhe aponte algum caminho por onde seus versos possam penetrar a sensibilidade do “outro”. Pobre guia dos turistas da alma sou eu, que jamais pude levar pela mão um artista para fora do labirinto de seu isolamento! E eu perguntava quantas vezes ele mesmo, o poeta solitário, tinha entrado em uma livraria em busca de livros de poetas novos? Ou até mesmo dos velhos!? (...)”

O meu irmão mais velho Antonio Torres, hoje um romancista traduzido quase no mundo inteiro, sonhava em ser poeta quando conheceu Castro Alves. Para sua sorte, a minha mãe descobriu seus poemas debaixo do colchão, espalhou pela vizinhança e a ignorância arcaica de nossos tios refreou a veia poética do meu irmão. Mais tarde, em Alagoinhas, um professor deu o tiro de misericórdia, que foi a sua salvação: “Vá fazer prosa, seu Antonio. O senhor é muito ruim de verso”. Grande e sábio professor! Privou-nos de um poeta chifrin e deu ao mundo um grande escritor. Por isso que dizem que os anjos falam pela boca dos professores.

Na mesma conversa do dia 31, sugeri a Salgado Maranhão – que tempos atrás esteve envolvido com Geraldo Carneiro no Manifesto “Os Desmandamentos”, cujo objetivo era resgatar o papel político e poético da poesia – que abraçasse outro movimento lançado por mim, o da “Pirâmide Poética”, que consiste em cada poeta brasileiro comprar dez livros de outros poetas, como naquelas pirâmides financeiras que se fazia antigamente, assim o Brasil se tornará um grande sucesso editorial no gênero poesia.

E se você é poeta e quer entrar no topo dessa pirâmide, inclua na sua lista o livro “Cronópio Godot”, de Jeane Hanauer, uma divinamente meiga criatura que escreve versos delicadamente contundentes.

Ou, como me disse Antonio Torres, o ex-poeta que virou escritor, “Jeane é simplesmente uma grande poetisa”. Agora eu sei que é, meu mano!