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De O beijo |

Por que me lembrei desse conto agora? Honestamente, não sei. Sei apenas que, ao acordar na manhã de ontem, lembrei-me de Evanilde, uma menina baiana que parecia feita de porcelana e sonho. Parafraseando o poeta, quando olhada de face, era uma boneca de louça; quanto vista de perfil, a haste de um lírio, prestes a partir-se. Tudo nela reclamava cuidados especiais. Era muito branca, dissimulada e gaga. Falava aos trancos. Às vezes, na tentativa de pronunciar uma palavra, fechava os olhos como se o gesto pudesse livrá-la da gaguice. Aos olhos do menino, era encantadora. Seu passatempo preferido era provocar-me. Sagazmente, aproximava-se de mim, sem jamais me permitir tocá-la. Era um jogo de sedução sofisticado demais para uma garota tão jovem, de aparência angelical.
Uma noite, saímos para acompanhar o Reisado do Manuel Antônio, no bairro Aldeia. Éramos um bando de meninos e meninas do mesmo tope. Lá pelas tantas, ela afastou-se das meninas e, sorrateiramente, aproximou-se de mim. Como peças imantadas, nossas mãos se atraíram e entrelaçaram-se. A cena deve ter durado apenas alguns segundos, mas me fez acreditar na existência de um paraíso terreno... Naquela noite, sepultei de vez o sonho de dona Purcina de me fazer padre. No dia seguinte, ela se comportou como se nada tivesse acontecido, o que me deixou profundamente magoado. Aquele jogo pendular que lhe dava tanto prazer me exasperava.
O tempo e os contratempos nos separaram. Poucos dias depois, numa manhã de sábado, com a leveza de um felino, ela veio até mim e, sem aviso prévio, beijou-me o rosto. Aparvalhado, nem percebi que aquele beijo inusitado se fazia acompanhar um doloroso ADEUS. Como naquela canção do Chico, “agora eu era um louco a perguntar/ o que é que a vida vai fazer de mim?”. Nunca mais a vi. Se bem me lembro, foi a primeira vez que morri de amor. Mas o tempo tudo cura. Com Quintana, aprendi que é tão bom morrer de amor e continuar respirando...