quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Senhor dos Destinos

Por Cláudia Magalhães

De Diário de um ladrão


Quarta-feira, 18 de março de 2009

Caro Sr. Fulano,

Possuo uma crueldade excepcional que, quando adormecida, cede lugar a uma ternura intrigante, curiosa, que me entorpece, me alivia. Sou escravo dessas duas realidades. Elas me fazem nascer e renascer, todos os dias, e me tornam humano. Sempre que atravesso a delicada e invisível fronteira que as separam, sou tomado por uma espécie de estupidez execrável que, com o passar dos anos, me fez perceber que o espaço que separa a vida da morte é feito de silêncio, do simples quebrar de um salto, de uma brevidade não medida pelo tempo. Somos movidos por uma bomba-relógio chamada coração, cujo controle não nos pertence. Deixei de sentir revolta, aprendi a não brigar com o que desconheço, perdi o sentido do pecado.

Acredito basicamente em três coisas: na inexistência de Deus, na existência da maldade e na magia da Literatura. Ah... A Literatura! Ela coloca fantasia na sola dos meus pés, arranca minha língua, educa meus ouvidos e, quando dou por mim, sou mais um personagem dos deuses de minha vida. Identifico-me bastante com Édipo, todos os dias, quando acordo, furo meus olhos para não enxergar a podridão do mundo.

O que falar da Literatura que provoca? Que destrói o belo e se masturba quando apresenta as baixezas do homem? Engana-se quem acredita que ela não espera por resposta. Todo bom livro delira de gratidão quando nos arranca uma lágrima, de alegria ou de dor, que usa, sabiamente, para afogar suas traças.

Nada há de extraordinário em minha vida. Rejeitado pelos meus pais, ainda adolescente, eu roubava para sobreviver. Amante da solidão, usava o dinheiro para pagar o quartinho fétido da pensão, comprar comida e livros nos sebos da cidade. Antes de dormir, sentava com alguma bebida barata e escrevia sobre o meu dia, hábito que mantenho até hoje. Escrever é minha única forma de perder a sanidade quando não estou vendo um bom filme ou lendo um bom livro. Não conseguindo viver na “normalidade”, escondo-me em qualquer lugar dentro das infinitas possibilidades das palavras em seus altares devassos, em seus inferninhos divinos, onde o ponteiro do relógio move-se na velocidade e na direção dos meus pensamentos, onde a única lei é a de perder o juízo. Sem escrever, enxergaria minha existência da mesma forma que meus olhos, desprovidos de um espelho, enxergariam minhas costas.

Aos vinte e dois anos cometi o meu primeiro crime. A boa quantia em dinheiro apagou, rapidamente, qualquer possibilidade de remorso. Afinal, aquele pobre homem poderia, ao atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. Quem pode prever o futuro nessa bola que gira manipulada pelo desconhecido? Desde então passei a viver sempre de malas prontas. Não permaneço mais que uma semana na mesma cidade, motivo pelo qual dou de presente meus livros assim que os termino de ler, mas sempre com a dedicatória: Cuide bem deste livro, ele salvará sua vida!

Hoje o senhor me fez viver um fato curioso, mágico. Quero que atire nas duas partes podres do corpo daquela filha da puta: na buceta e no coração! Foram suas últimas palavras no início da noite. Depois de anotar o endereço, seu rosto, antes nervoso, estampou uma sensação de solidão absurda. Seria essa a face do amor contrariado? Por que sofrer por um simples abandono? Desgraça maior é morar num apartamento luxuoso sem estantes, sem livros! Bem, isso, agora, não importa. Saí da sua cobertura elegante, parei num boteco de esquina, em frente ao fatídico hotel e pedi um conhaque. Quanto mais se aproximava a hora marcada, mais aumentava minha excitação. Uma espécie de gozo contido queimava meu juízo e me fazia beber compulsivamente. Não tardou para que ela aparecesse na rua deserta, com um vestido solto, preto, que lhe ia até a altura dos joelhos. Aproximei dela com a fúria de um animal selvagem desprovido de alimento. Assustada com o barulho dos meus passos, ela se virou abruptamente e protegeu o peito segurando com as duas mãos um livro: Diário de um Ladrão, de Jean Genet! Gelei até os ossos. Em minha mente, somente as palavras daquele Deus, cujo túmulo não poderia depositar flores: Conservei-me atento para agarrar esses instantes que, errantes, me pareciam estar a procura, como de um corpo, uma alma penada, de uma consciência que os anote e os experimente. Quando a encontram, param: o poeta esgota o mundo. Essa lembrança eletrizou meus cabelos, escorreu pelas minhas costas, preencheu minha coluna e virei verso. A minha alma, farta de poesia, assumiu proporções indescritíveis. Vestindo de letras as minhas fraquezas e a minha maldade, tornei-me a mais bela das criaturas. Observando a minha cara assassina coberta de vergonha, ela correu assustada, em direção ao hotel. Se prosseguisse com meu plano, desmoronaria. Não poderia matar alguém com um livro que me fez encontrar o vazio, a existência do mundo e a certeza de saber que não o possuo.

Coloco, agora, sob o seu cadáver essa carta para que outros a leiam quando o encontrarem em sua luxuosa cobertura "sem livros". Peço-lhe perdão, embora não sinta o menor arrependimento, afinal, você poderia tentar, novamente, matar o que temos de mais belo e raro: bons leitores! Quanto ao senhor, quem se importa? O senhor poderia atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. O que me resta dizer? Desgraça maior é ser Lady Macbeth e ser coroada com a loucura. É ser Othelo e não poder viver em paz seu grande amor. É viver numa mansão sem livros, é saltar para o nada sem ter conhecido o lirismo de Genet!

Ass.:Um amigo.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O motoqueiro que virou Papai Noel

Por Leila Barros

Em plena noite de 24 de dezembro, Josias corria com sua moto mais que o frango veloz da Sadia, embora não estivesse trabalhando. Ele corria para tentar afugentar o torvelinho de pensamentos que o assolava naquela véspera de natal. E nesse fervor, pensava muito:

“Já se vê que esse moleque vai dar trabalho. Um garoto que resolve nascer na véspera de natal, deve ser problemático e quem sabe até chorão. Eu tive que largar todo aquele rango na mesa para ver ele nascer.”

“Vacilei na hora agá e não usei o preservativo, mas a Josilene também vacilou, homem não é ligado nessas coisas! Agora eu vou ter que deixar de comprar meus CDs de pagode, vou ter que comprar tênis sem marca para arrumar leite para o bacuri, fala sério!”

E então, Josias se vê entrando em uma maternidade na periferia de São Paulo, meio desorientado e sem saber para onde se dirigir. E pensava:

“Não gosto de hospitais, como é que eu estou entrando nesse bagulho para ver um guri chorão, que eu nem sei se vai curtir a minha cara? E se ele resolver torcer para outro time?”.

Chegou finalmente no quarto que procurava e encontrou a sua Josilene.

“Que quarto maneiro, hein Josi? É esse aí o nosso moleque? Até que o guri não é tão feinho. Posso pegar? E aí moleque, tá gostando aqui do lado de fora? Ele é miudinho... Deve estar com frio... Vou sair para comprar um agasalho para ele e já volto.”

E na rua, Josias viu um camelô vendendo gorros de papai Noel. Comprou um e o colocou todo satisfeito! Começou a correr com aquele gorro vermelho na cabeça, com uma sensação mágica, seus pensamentos já estavam mais calmos, e o gosto novo de segurar o seu filho nos braços o envolvia por completo.

Resolveu diminuir a velocidade, queria curtir aquele momento como se saboreia um panetone em uma tarde natalina. E, com um sorriso de anjo nos lábios, sorria e pensava:

“Agora sou motoqueiro e papai Noel de responsa! Tô chegando moleque, seu papai Noel está na área, tá ligado?”



Natal infeliz, Natais felizes...

Por Edna Lopes

(...) Minha vida... Quebrando pedras e plantando flores.”
Cora Coralina

Nossas comemorações se iniciavam no primeiro dia do mês com o aniversário de um dos irmãos. Depois, o de nossa irmã mais velha e de nossa mãe. Em seguida, o natal e o fim de ano. Era um mês de festas. Naquele ano não foi diferente, mas tudo mudou de repente e nos vimos mergulhados num turbilhão de aflição e dor sem precedentes.


Conseguem imaginar infelicidade maior que sepultar alguém que amamos? Fazem uma idéia do que é “viver” isso no dia do Natal? Este foi e ainda é inesquecível. Lembrança indelével da dor da perda, do nosso sofrimento externado nas crises nervosas, nos vômitos, nas lágrimas, no desespero da impotência.

Retornávamos sempre para o sítio, a casa de nossos pais, nas férias escolares, nas festas ou feriados. Éramos dez filhos, genros, noras, neta, primos e sempre alguns amigos. Sempre uma festa o reencontro com nossas origens, porém, nesse dia, voltar era morrer um pouco. Uma dor insuportável em nossos corações ao constatar que havia um carro fúnebre em nosso cortejo, sempre tão animado, tão feliz.

Nossos pais nos aguardavam, não com o farto almoço e as novidades do lugar, mas para sepultar nosso menino-irmão, que me pedia sempre para cantar “o Menino da Mangueira,” contar histórias de grandes aventuras, que havia feito dezenove anos no inicio do mês e fora arrancado do nosso convívio pela fatalidade, pela tragédia. Nossos natais jamais seriam os mesmos.

Alguns anos depois retornei da maternidade ás vésperas de mais um natal e iniciei um novo ciclo de comemorações. Bem antes disso e aos poucos, sobrinhos e sobrinhas que nasciam a cada ano, animavam nossos reencontros e, em especial, os natais com a alegria, com a inocência benfazeja e curativa que é a presença de crianças em nossas vidas. Elas resgataram em nós a possibilidade de ressignificar o natal.

Nos próximos dias, minha grande -enorme família reunir-se-á mais uma vez para rir, orar, brincar, cantar, brigar, fazer as pazes e chorar juntos em mais um Natal. A vida continua. E que bom que temos a oportunidade de celebrá-la com quem amamos. As dores, as perdas, as alegrias, os sucessos, os fracassos, os momentos felizes, são substratos da nossa construção de humanos nessa dimensão.

“(...) A vida pode ser dura, mas tem momentos de alegria que há poesia batendo a porta do sonhador...” O Filho do seu Menino de Rildo Hora, mas que aprendi a amar na voz de Jair Rodrigues


Saudades eternas de nosso menino-irmão Albênio.


Feliz Natal, Meu Irmão.





CARTA ABERTA A UM VELHO RANZINZA


Por Cineas Santos


Prezado Noel:

É escusado dizer o quanto me custou antepor o adjetivo prezado ao seu nome. Como é do seu conhecimento, eu não o prezo,e a recíproca deve ser verdadeira. Quanto à carta aberta, não tome o meu gesto como indiscrição ou exibicionismo. Quis tão-somente poupá-lo do trabalho ingente de localizá-la em meio à avalanche de cartas que, nesta época do ano, ameaça soterrá-lo. Nada além.

Mas vamos ao que (me)interessa: a primeira vez que ouvi falar do seu nome, eu ainda morava nos cafundós do Caracol. Como qualquer moleque do meu tope, campeava nuvens, conversava com o vento e não me ardia o desespero de ser dono de nada, como diria o poeta Dobal. Eis que, numa manhã qualquer de dezembro, minha mãe, que acabara de chegar da cidade, me entregou um balãozinho vermelho, desses que os moleques de hoje se comprazem em estourar com pés nas festinhas de aniversário. Limitou-se a dizer: “Foi o Papai Noel que mandou”.Ressabiado, mas curioso, aceitei o presente e tratei de inflá-lo para atiçar a inveja dos companheiros de traquinagens. Tamanho foi o meu entusiasmo que o balãozinho, depois de um pluft, desfez-se em tirinhas de borracha sem qualquer serventia. Creio ter sido aquela a minha primeira decepção. Chorei tudo o que tinha direito e prometi a mim mesmo que jamais voltaria a chorar por algo perdido ou não conquistado. Assim tem sido. Jurei também odiá-lo para todo o sempre.

Mais tarde, já em São Raimundo Nonato, na véspera do Natal, encontrei, num canteiro mal cuidado, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Fátima. Coberta de poeira, abandonada e triste, parecia ter sido jogada ali por alguém que perdera a fé. Encarei o fato como uma mensagem sua: uma tentativa de reconciliação. Prontamente, aceitei-a. Limpei a imagem da fralda da camisa e voltei correndo para casa. Dona Purcina, precisa como um tiro de lazarina, não se comoveu com a minha versão. ”Quem acha o que não perdeu não é o dono”, limitou-se a dizer e me obrigou a devolver a imagem ao canteiro onde a encontrei. Não podendo odiar minha mãe por razões de ordem prática : medo de taca, descarreguei todo o meu ódio em você. Jurei que, um dia, ainda lhe arrancaria todos os fios da barba com um alicate enferrujado.

Na adolescência, perdidamente apaixonado por uma fulaninha, passei-lhe uma cantada em regra (sou do tempo em que se cantava mulher). Com ensaiada timidez, ela me prometeu a resposta para a noite de Natal. Estávamos em outubro. Foram dois meses de expectativas, sonhos, pesadelos, febres, poluções noturnas e outras coisinhas impublicáveis. Na noite aprazada, coração aos pulos, fui procurá-la. Sem se despedir, a moça deixara a cidade com a família. Chorei, chorei, “até ficar com dó de mim”, como naquela canção do Chico. Jurei que jamais voltaria a chorar por mulher alguma, jura que não cumpri...

Cresci, envelheci, e muitos natais se passaram sem que nada de extraordinário acontecesse. Para ser franco, meu ódio arrefeceu. Cheguei mesmo a ignorá-lo. Como diria um amigo cruel: “Papai Noel é só um velho senil, acompanhado de veados, que se presta ao papel de camelô de ilusões a serviço do capitalismo selvagem”...

Eis que, na semana passada, um autodoor de uma fábrica de sapatos mexeu comigo. Nele, vê-se uma perna linda, fornida, generosa, enrolada com fitas coloridas, pronta para ser comida (com os olhos), permita-me a liberdade de expressão. Foi aí que me ocorreu a ideia de lhe fazer uma proposta. Já que é final de ano, tempo de paz, por não aproveitamos a oportunidade para fazermos as pazes? É simples: você me manda a dona daquela soberba perna (pode ser zarolha, dentuça ou corcunda) e eu esquecerei todas as nossas divergências pretéritas. De quebra, para mostrar que não guardo ressentimento, passarei a tratá-lo por Papai Noel, com fazem as pessoas normais.

PS: não precisa trazê-la: irei buscá-la pessoalmente.

Fraternalmente, velho Ancião

sábado, 19 de dezembro de 2009

Noite de Natal

Por Luiz Eudes


De Presépio

A tarde vai embora calma e lentamente. A noite chega soberana. O homem para o carro na praça. Há moças na calçada de uma casa grande. São suas primas. O homem está acompanhado da sua filha. Uma das moças os convida a entrar. Eles entram por um corredor. A moça abre a porta da sala ao lado. Um mundo encantado surge num momento mágico: é o presépio de Dona Sinhá que há muitos natais faz brilhar de encantamento os olhos das crianças.


Dona Sinhá foi quem criou aquele espetáculo para animar as noites natalinas do Junco. Hoje ela arma lapinhas com os anjos e santos no céu. Um céu sempre azul e iluminado. Lá de cima ela observa as crianças que todas as noites de dezembro visitam a sua casa e, atentas, observam o músico anunciando por seu tambor a chegada de Papai Noel, que sobe a escada e dança twist. No presépio há um convívio fraternal do animado gorila com o pacato burrinho, do cantante pássaro azul com as silenciosas borboletas, dos peixes e cobras que, de longe, miram os animais sagrados: a vaca e a ovelha, o galo e o jumento.


É noite de Natal e no centro de tudo está a representação do nascimento de Cristo. Dona Sinhá montava o presépio seguindo uma tradição iniciada por São Francisco no século XIII. Quando ela partiu ao encontro com Deus, suas filhas e colaboradoras resolveram homenageá-la colocando uma foto sua na parede da sala e dando seguimento ao seu projeto, sabendo que lá no alto ela iria montar um novo presépio, com anjos e santos de verdade, tendo o Menino Jesus Cristo ao vivo e a cores.


A menina e seu pai estavam encantados com tudo aquilo. O homem se lembrava de antigos natais quando vinha com os seus amigos e ali ficavam horas a contemplar, alegrando-se com tudo. A menina também se sentia assim. A sala foi invadida por uma pequena multidão de curiosos. As crianças chegavam e logo atrás vinham os seus pais que também queriam participar da festa.


O homem se lembrava de quando ia aos grotões dos Pilões buscar ramas de barba de velho, catava pedrinhas nas barrancas do açude, cessava areia da velha praça empoeirada e apanhava barro tauá no barrocão do Junco para fazer as imagens que enfeitavam a lapinha de uma das suas irmãs.


E como era bonito tudo aquilo. E o homem, naquela noite, pensava nos meninos andarilhos pelos caminhos das roças iluminados pela beleza cósmica da Lua e protegidos por São Jorge, o Santo Guerreiro. Aqueles meninos talvez não conhecessem o presépio de Dona Sinhá, talvez nem soubessem o que é um presépio, mas o que lhe confortava era saber que a lua nasce para todos, não importa onde esteja e, quando a noite termina, momentos e palavras se eternizam.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Palhaço

Por Luiz Andrioli



Quando o meu pai me perguntou o que eu queria ser quando crescesse, eu respondi, na lata: palhaço. Ele deu risada. Aí eu percebi que estava no caminho certo.

Uma vez, ainda criança, fui ao circo e ganhei um saquinho de pipoca. Esvaziei-o e coloquei nele um punhado de serragem para deixar embaixo do travesseiro. Assim eu podia sonhar com o circo sentindo o seu aroma. Na escola, um professor me disse:

- Já que você gosta tanto de circo, porque não foge com ele?

Na hora eu fiquei quieto e também não tive coragem de fugir. Nem precisava. Na verdade foi o circo que fugiu comigo. Existe dentro de mim um trapezista corajoso, um malabarista, um mágico, dois ou três equilibristas, uma linda bailarina, aquele punhado de serragem, um picadeiro e uma arquibancada fazendo festa.

Hoje eu sei que, por baixo de toda maquiagem, existe um palhaço triste – e é desta tristeza que o artista arranca sorrisos da plateia.

O circo me ensinou a ser muito prevenido. Sempre carrego uma bolinha vermelha de colocar na ponta do nariz. Para usá-la quando a vida fica séria demais.

Sobre o Novo Colaborador

Luiz Andrioli é escritor e jornalista. Atuou oito anos como repórter de televisão. Trabalha atualmente como apresentador, locutor e diretor artístico de TV. Pós-graduado em Cinema e mestrando em Literatura. Professor universitário e ator profissional. Como escritor, teve várias peças encenadas por grupos de teatro de Curitiba, dentre elas, “Não só as Balas Matam” (2001). Autor da biografia “O Circo e a Cidade – histórias do grupo circense Queirolo em Curitiba” (Editora do Autor, 2007). Para crianças, escreveu “A menina do Circo” (Pró-infanti Editora, 2009). O seu site [ www.luizandrioli.com ] encontra-se linkado neste blog.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A minissaia e a liberdade à brasileira


Por Adriana Berger


De Minissaia x Uniban



Voltei preocupada com a teoria e a prática que se alastram pelo nosso país: o da liberdade à brasileira. Pelo que vi em grandes e pequenas cidades o Brasil passa por um momento de grande licenciosidade, vulgaridade, superficialidade, besteirol. Vi meninas dançando em cima de garrafas. Sexo aberto em bailes e shows. Em novelas, programas de entretenimento, o corpo da mulher é usado e abusado. Noventa por cento da programação nacional da TV aberta é sobre cirurgia plástica, cosméticos, penteados, fofocas, brigas domésticas, rezas e "curas", receitas, remédios, cães e bichos, violência. Piadas, de bêbado e homossexual. "Psicólogos", "conselheiras" sentimentais e familiares usam sofrimentos de pessoas em programas sensacionalistas.


Há "formadores de opinião" para qualquer assunto. Afirmo, sem medo de errar, que nós precisamos é de formadores de caráter. Há um grande apagão cultural. É como se todos estivessem sonâmbulos. Não se discute nada de profundo, alternativas para o país. A juventude sem sonhos e poesia não tem em quê ou em quem se inspirar. Contrabando é crime, mas, artigos contrabandeados são vendidos nas ruas na cara da polícia. O cerrado e a floresta, mais destruídos. As cidades em colapso no trânsito e na urbanidade. Crime e violência por toda parte. Milhões de brasileiros nas filas de atendimento da péssima saúde pública. O Brasil continua exportando matéria-prima e importando bugigangas. Baixa produção científica e tecnológica. Cada vez menos formandos em matemática, engenharias, física, química, biologia, ciências exatas.


Se escolas e universidades se comportassem como instituições a formar cidadãos para o equilíbrio social e moral do país discussões públicas velhas e exageradas como essa da minissaia em universidade paulista não prosperaria. O X da questão não está na altura da saia rosa-choque da aluna, mas como, onde e por que foi usada. O que fez parte da imprensa "séria" onde microfones e páginas estão nas mãos de "formadores de opinião"? Usou o assunto para aumentar audiência e tiragem.


Isto É critica a Uniban por seu interesse mercantilista. O que fez a revista ao dar capa à minissaia com reportagem cheia de frases do movimento feminista dos anos 60/70? Nenhuma palavra sobre regras, normas, comportamento nas escolas, em sala de aula, respeito mútuo. Destacaram mulheres com os seios de fora em Brasília, defensoras da garota da capa.


A star is born (Nasce uma estrela)


Com apoio da TV Globo nasce uma estrela nos costumes e no showbiz brasileiro. O cenário se repete. A moça já foi convidada para posar nua. Vai desfilar na escola de samba Porto da Pedra. Em breve poderá ter seu espaço televisivo e ser mais uma formadora de opinião. No programa "Altas Horas" ela sentou-se na cadeira da fama, mas de jeans. Mandou recado para milhões de garotas: "a roupa é minha, visto como quiser, às sextas sempre vou a baladas e já saio de casa vestida e não devo satisfação a ninguém, aquele vestido é um dos mais discretos que uso". Recebeu apoio de universitárias de Brasília com os seios à mostra: "se quiser ir nua que vá é a liberdade de cada um, o corpo é meu, ninguém tem nada com isso". O apresentador do programa com cara de pateta, cercado por estudantes-tietes achando-se o máximo por promover a "liberdade". Uma aluna de minissaia, saltos altos, super maquiada, produzida para baladas, em aula noturna, no meio de marmanjos, ou está com problemas de aceitação, chamando atenção para ser notada; ou não sabe a diferença entre o vulgar e o popular; ou esta querendo bagunçar com um confronto premeditado. Nas escolas do mundo todo há normas, uniformes, regras de comportamento onde muçulmanos, cristãos, budistas, ateus, ricos e pobres, educam jovens que continuarão a defender valores e princípios de seus povos e países.


Psicólogos, professores, ao perceberem o comportamento da aluna deveriam ter conversado com ela, orientá-la, ajudá-la a superar fobias e rejeições. Não o fizeram. A reação de estudantes foi desmedida, vazia de conteúdo. Sem instituições sólidas, cria-se a liberdade à brasileira. Em que ou em quem se espelha a aluna do micro vestido? O que tem aprendido em ética, valores, comportamento e convivência social? O que ela ouve e vê a seu redor? "Sou livre, visto o que quiser a hora que quiser". Num país sem retentores morais, com apatia política e cultural, sem critérios, a garota não tem a quem responder ou dar satisfação. Nem em casa, nem na escola, nem à sociedade, nem ao país. "Se, juiz e desembargador podem, eu posso; se deputado e senador fazem, eu também posso fazer; se o presidente, seus ministros, o prefeito, podem, eu também posso". A TV incentiva quebradores de regras. Cria espaço para mulher-melancia, samambaia, melão, morango. Popozudas ensinam danças, abrem as nádegas e, se abaixam, para mostrar mais. O programa Fantástico da TV Globo no dia 15 de novembro entrou em milhões de lares promovendo o livro e o filme da ex-prostituta Surfistinha, a garota da mina saia e o concurso Menina Fantástico. A Proclamação da República, data histórica do povo brasileiro não interessa. Não dá IBOPE. Em dez minutos, a TV Globo daria a milhões de jovens uma necessária aula da queda do império, a velha República, a era Vargas, JK, a ditadura militar e em 15 de novembro de 1989 a Nova República. Estão rasgando páginas de nossa história. A memória nacional se extingue.


Com tanta noticia que precisa ser dado ao povo o noticiário noturno (Globo), no dia 16/11, se despediu destacando prostituta de noticia velha de tablóide inglês. O que ensina e estimula a mais rica e poderosa escola do Brasil? Não há na TV aberta brasileira (concessão pública) incentivo ao cumprimento de leis, a regras de respeito mútuo, à solidariedade e cooperação. Destaques, astros e estrelas, são os da marginalidade, corruptos bem-sucedidos, políticos mentirosos, os da sexualidade vulgar.


Meu querido Brasil: rico por natureza, mas pobre de cidadania, princípios e ética.


Adriana Berger é professora de História e Literatura Brasileira. A publicação no blog foi autorizada pela autora.



quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

NO FUNDO DA REDE


Cineas Santos


De Flamengo
A rede, como qualquer pessoa saudavelmente preguiçosa sabe, foi a maior contribuição que os índios nos legaram. Graças a ela, passamos mais tempo pensando que fazendo bobagens. É simples: quanto mais tempo passarmos
deitados, menos danos causaremos aos nossos irmãos, à Natureza, ao Planeta... Mas isso será tema de outro arremedo de crônica em futuro próximo. O objeto dessa arenga é outro.

Há coisa de três anos, o poeta Paulo Machado, irmão e amigo, presenteou-me com uma bela rede, larga, generosa e acolhedora como um colo materno. Feita sob encomenda por mãos peritas, tem varandas de crochê e tudo mais. Não bastasse isso, ostenta as cores do brioso Mengão. Uma rede supimpa, diriam os antigos. Presente de tal monta só poderia ser usado em momento festivo. E o momento se me apresentou quando minh’alma andava meio embaçada pela tristeza. Uma cabeçada certeira de um zagueiro, cuja carreira quase se encerrou de modo trágico, e a bola foi aninhar-se, carinhosamente, no fundo da rede. Num átimo, a nação rubro-negra contagiou com sua alegria transbordante todas as almas sensíveis dessa República enxovalhada por escândalos de todas as versidades. Um cometa luminoso brilhou no céu da pátria... Do Oiapoque ao Chuí, o grito uníssono: “Uma vez Flamengo/ Flamengo até morrer”!

Depois de um jejum de 17 anos, sob o comando de Andrade, um dos remanescentes daquela máquina de triturar adversários, o Mengo tornou-se hexacampeão, tendo como principais estrelas dois jogadores problemáticos e, para muitos, “acabados”: Petkovic e Adriano. O primeiro, “velho demais” para a função de meio-campista; o segundo, “um farrista bipolar”. Peti, repetindo as lições de Didi e Gérson, demonstrou que quem precisa correr é a bola; o Imperador, por seu turno, abiscoitou o título de artilheiro do campeonato. “Capricho dos deuses do futebol”, diria um cronista paulista, repetindo um chavão desbotado.

Como não sou torcedor de sair por aí atirando pedras nos adversários, curti a conquista sem muito barulho. Sou um flamenguista atípico: torci (e como!) para que o Vasco ascendesse à primeira divisão e, principalmente, para que Fluminense e Botafogo não fossem rebaixados. Gosto de ver o meu time vencer adversários fortes: ser lobo entre cordeiros é a “glória” dos fracos. E fraqueza não combina conosco.

O Flamengo já nasceu vitorioso: no primeiro campeonato que disputou (em 1912), com Buena, Píndaro, Nery, Curiol, Gilberto, Galo, Baiano, Arnaldo, Amarante, Gustavo e Borgerth, derrotou o Mangueira pelo placar de 16x2, levando aquela brava gente a desistir definitivamente do futebol para dedicar-se ao samba. Bater em tamborim é bem mais fácil que bater o Mengão.

Na noite de domingo, enquanto meus irmãos de credo e cor desfilavam pelas ruas da cidade, cantando e batucando, armei minha rede rubro-negra, “cheirando a guardado de tanto esperar”, abri uma garrafa de vinho e, com ardente paciência, esperei a chuva que se anunciava. E ela veio: suave, silenciosa e acariciante como os dedos da mulher amada. E meu coração de velho, encharcado de alegria, voltou a pulsar no ritmo dos tambores. Como já afirmei tantas vezes: Deus é velho, muito velho e não abandona os Seus.




segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A Primeira Vez Que Vi Noel




Viera da roça, fugindo da seca e da precisão. Chegara à véspera do Natal e no dia seguinte crianças brincavam na rua exibindo seus presentes: bolas de futebol, carros, bonecas, bicicletas. Ele observava todo o movimento de sua janela. Um garoto o viu e se aproximou:

– Oi! Sou Mário. Pegue seu presente e venha brincar conosco!

Ele desviou o olhar para o chão. Envergonhado, procurou a mãe.

– Mãe, quem é esse Papai Noel que deu brinquedo a todos os meninos da rua e a mim não?

 
A mãe não soube responder. De onde vieram, papai noel se chamava cesta básica e carro-pipa.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Sobre o Natal

(Quando não tinha Papai Noel)

Antonio Torres

De Presépio


Era uma vez um lugar esquecido nos confins do tempo, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas, num remoto sertão onde ninguém jamais ouvira falar de Papai Noel. Esse lugar existe. Eu nasci lá.

E se lá não tinha Papai Noel, não havia presentes, ceias, cartões de Boas Festas, propaganda, votos de um Feliz Natal. Desconhecíamos essas coisas, o que era bom. Não faziam falta. O nosso Natal era uma festa singela. Para o menino Jesus.

Como era? Quando dezembro chegava, a meninada se assanhava. “Oba!” Estava na hora de reunir a turma, dormir uns nas casas dos outros, aninhados aos magotes em camas, redes e esteiras, na maior algazarra. Na verdade, ninguém queria dormir. E isso era o melhor da festa, que começava com uma espécie de desafio: vencer o sono e a noite numa animação sem fim, à espera do sol raiar, quando finalmente pegaríamos a estrada, a caminho dos pés de serra e dos tabuleiros, em busca dos ornamentos para a lapinha. E o que era a lapinha? Um presépio. A representação da manjedoura onde nasceu o Menino Jesus. Meninos, eu conto: íamos ao mato em bando, em bíblica alegria. Priminhos de mãos dadas com priminhas, que não escapavam de uns beliscões safadinhos, incentivados por animadíssimas tias. E assim íamos: cheios de prosa e dando muita risada, à cata de jericó, uma planta prateada que seca sem morrer, e de gravatá, que vocês conhecem com o nome de bromélia, para a instalação da lapinha no melhor canto da sala de visitas.

Passávamos dias e dias na montagem de um cenário que correspondesse ao imaginário do velho povo, como rezava a tradição, que vinha dos pais de nossos pais e assim para trás, desde que o mundo, aquele mundo, passou a comemorar o Natal. Depois era esperar as visitas para contemplar a nossa réplica da gruta sagrada, feita de pedras e galhos de árvores, ao fundo de uma planície de areia, repleta de boizinhos de barro, rios de cerâmica com peixinhos de verdade e os reis magos em seus cavalos. E tudo sob uma tênue luz de um candeeiro, porque assim eram as nossas noites, tão simplesinhas quanto no tempo de Jesus.

Um dia chegou o motor da luz no povoado. Fechamos a casa, lá na roça, com lapinha e tudo. Fomos ver as novidades de perto. A igreja estava toda acesa, promovendo quermesses e anunciando a Missa do Galo. Era um novo tempo. Ali na praça iluminada, cheia de atrações nunca antes vistas ou imaginadas, íamos de casa em casa, disputando espaço em suas janelas, para apreciar os presépios, cada um mais deslumbrante do que o outro, graças aos efeitos da eletricidade. Com o motor da luz, chegava o Serviço de Alto Falantes A Voz do Sertão. E com ele, as músicas de Natal. Começava outra história, um outro Natal.

Era a chegada de Papai Noel.



sábado, 12 de dezembro de 2009

O nascimento da crônica


Uma boa crônica de Machado de Assis sobre a origem da crônica.
De Machado de Assis



Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

Não afirmo sem prova.

Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, e dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?




quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Encosto

Carol chegou carregada. Literalmente carregada. De malas e de encostos. No aeroporto, a esteira de bagagens travou. O taxista lhe cobrou excesso de peso. O elevador do prédio se recusou a cumprir sua nobre função do sobe-desce. Sobrou para o zelador, que teve que se curvar para o peso das malas em dez andares.
De todos os males, o menor. Porém Carol optou pelo maior ao descumprir as recomendações do seu pai-de-santo: não levou oferenda pra Iemanjá no dia dois de fevereiro, não deu cachaça pro santo na primeira talagada do ano, nem vestiu branco na sexta-feira. Viajou sem tomar banho de folhas e se esqueceu dos seus patuás. O seu corpo ficou totalmente vulnerável ao olho-gordo, quebrantos e maus-olhados. Seus músculos esmoreceram, suas pernas se negaram a andar e sua boca só abria para seguidos bocejos. Seu olhar perdeu o brilho e suas pálpebras se recusaram a obedecer ao comando cerebral. Carol estava, mas não atinava. Existia, mas não participava. Via, mas suas retinas só enxergavam o vazio. Suas férias expiravam, em Maceió e, até então, não tinha percebido nada de interessante, nem mesmo a beleza do encontro das águas do Rio São Francisco com o mar. Era um encosto tamanho família, urucubaca para babalorixá nenhum botar defeito. Carol, que no passado fora inspiração de música de ritmo alucinante, estava definhando. Mal inspirava réquiem. Um dia, passeando pelos canais de tevê em busca de um que não falasse de corrupção, parou em um programa evangélico, onde cego dava testemunho de ter voltado a enxergar, surdo dizia que estava ouvindo muito bem e um paraplégico se levantou e chutou a cadeira de rodas, em urros alucinados de agradecimentos. Um perneta jogou as muletas fora e saiu andando, normalmente. Não teve dúvidas: anotou o endereço da igreja, pegou um táxi e em meia hora participava da sessão de descarrego. Estava concorrida a sessão. Era o dia da vigília dos quatrocentos pastores. Aproximadamente um pastor para cada fiel. Foi atendida de imediato por um pastor jovem, com ares de louco, cara de ex-drogado arrependido: 
 - O que você sente, irmã? 
- Queimação no estômago, azia, mal-estar, câimbras, formigamento, moleza no corpo, flatulência, febre, dor-de-cabeça, dores no ovário, muito sono quando não durmo direito e tensão pré-menstrual. 
- Você vai se curar, irmã, aleluia! Ó Deus, exijo que cure esta mulher, expulse o Capeta do seu corpo, aleluia! Sai Capeta, do corpo desta mulher, pelos poderes sagrados de Jesus, filho de Jessé, cuja vara e cajado expulsaram Adão do Paraíso! Sai, Capeta, que esse corpo não te pertence mais! Retorna para o fogo do Inferno, onde Belzebu reina. Aleluia! Vá pra casa, irmã, que você já está curada. Aleluia! Antes, deixe a sua contribuição para ajudar nas obras de Cristo. Aleluia! 
 Voltou pra casa a pé porque a depenaram na igreja. Esvaziaram sua bolsa, os bolsos, e surrupiaram-lhe o relógio e a corrente de ouro, apesar de relutar por ter sido presentes de aniversário e de Natal, respectivamente. Tomaram-lhe também os cartões de crédito, sob a deslavada desculpa de que o dinheiro plástico simbolizava a vaidade e o consumismo, a própria representação do Capeta. Ungida com óleo santo produzido, segundo o pastor, nas fontes termais de Jerusalém, onde Cristo se banhava aos domingos, seu corpo foi revestido por um escudo invisível polarizante que neutralizava as cargas negativas produzidas por invejosos e olhos-de-seca-pimenteira. A bênção e o óleo tinham garantia de sete dias, quando ela deveria retornar para mais uma sessão de descarrego. 
Chegando a casa, exausta da longa caminhada, capotou no sofá. Dormiu vinte e quatro horas seguidas. Despertou alegre, disposta, descansada. Seu mal era sono atrasado, disse-lhe sua irmã Sílvia, companheira de viagem.
Diagnóstico descoberto tardiamente. Além de ficar sem dinheiro, retornaria a São Paulo na manhã do dia seguinte.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A TRISTE SINA DO GATO VELHO



Por Cineas Santos



De Monalisa siliconada




Vivemos sob a insuportável ditadura da estética, garantem os entendidos. Poderiam acrescentar: patrocinada por uma indústria que fatura, anualmente, bilhões de dólares. Sob suas asas, agasalham-se fabricantes de cosméticos, laboratórios farmacêuticos, cirurgiões plásticos, esteticistas, nutricionistas, agências de publicidade e charlatões em geral. O cientista inglês Aubrey de Grey, presidente da Fundação Matusalém, afirmou que, num futuro próximo, o homem poderá viver mais de mil anos sem maiores problemas. Para o sábio da Universidade de Cambridge, “a fonte da eterna juventude está na reparação dos danos moleculares e celulares que ocorrem no organismo do homem ao longo do tempo”. Como ferramenta para reparar as “peças danificadas”, o cidadão pretende utilizar vírus modificados, glóbulos brancos e bactérias. Hoje, no entender dos sábios, só envelhece quem quer; só morre quem não se cuida. Consternado, todos os dias, ao barbear-me, coço a carapinha recoberta de algodão, confiro os sulcos deixados pelo tempo em minha face e me sinto um suicida...

Houve uma época, não muito distante, em que quem se submetia a uma cirurgia plástica fazia tudo para ocultá-la; hoje, o (a) paciente pede ao cirurgião: Doutor, o senhor poderia pôr sua assinatura aí embaixo para eu matar os amigos de inveja! Por oportuno, vale lembrar que Martha Rocha perdeu a coroa de miss universo “por duas polegadas a mais nos quadris”; Hoje, todas as concorrentes ao cetro são esculpidas a bisturi ou recheadas de silicone. O tempora! O moris!

Certa feita, Millôr Fernandes escreveu (estou citando de memória): Não entendo essas moças que fazem o possível e o impossível em busca de um corpo perfeito e depois qfirmam que não querem ser julgadas apenas por sua beleza física. Pois eu queria ser julgado, pelo menos uma vez na vida, por outro atributo que não fosse a minha inteligência.

Lembrei-me dessa tirada quando, na semana passada, fui abordado por uma carroceira. Negra, pobre, idade inescrutável, aquela cidadã não fora poupada pela vida. Humildemente, pediu-me que fizesse uma matéria com ela para o programa “Feito em Casa”. Expliquei-lhe que, infelizmente, o programa não possui esse viés assistencialista. Por falta de coisa melhor, dei-lhe os caraminguás que trazia no bolso. A cidadã invocou as sete mil virgens para que derramassem bênçãos sobre minha cabeça. Não bastasse isso, delicadamente pegou no meu braço e disparou: - Que Deus lhe faça ainda mais gato! Diante do meu espanto, repetiu, escandindo as sílabas: - DEUS LHE FA-ÇA A-IN-DA MAIS GA-TO!

Ao longo da vida já fui chamado de quase tudo: feinho, feioso, feião e, ultimamente, feivéi. Gato, nunca! Pensei comigo: finalmente, alguém descobriu em mim aquela beleza recôndita que não se mostra aos olhos levianos. Infelizmente minha existência felina durou menos de meia hora. Eufórico, contei o ocorrido a uma dileta amiga, que se limitou a dizer: - Em vez de esmola, você bem que poderia ter conseguido uma consulta com um oftalmologista para aquela pobre velha. Desacorçoado, desci do telhado e voltei ao chão da feiura que me acompanha desde sempre como um encosto. Está escrito: ninguém foge à sua sina...


segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Sobre Pessoas - 6

Idéias de Jeca Tatu

Mais uma crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De Jeca-Tatu


Primeiro, vejamos qual é a origem etimológica do seu nome. E o que simboliza. Personagem criado por Monteiro Lobato em 1918, Jeca Tatu seria dicionarizado como substantivo comum, significando o habitante do interior brasileiro, especialmente o caipira da região Centro-Sul. É daí que surge o popularíssimo jeca. Tanto serve para definir o matuto bronco quanto qualquer pessoa sem refinamento. Em outras palavras: cafona, brega, ridícula.

Para o autor de Urupês, Jeca Tatu era “um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie”. Eis o protótipo criado por ele: modorrento, a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso; soturno, fatalista, sem noções de pátria, de civismo, nem do país em que vive; e com um suculento recheio de superstições. “Todos os volumes do Larousse não bastariam para catalogar-lhe as crendices, e como não há linhas divisórias entre estas e a religião, confundem-se ambas em maranhada teia, não havendo distinguir onde para uma e começa outra”.

Na verdade, tal tipo nada heróico contrapunha-se à galeria de heróis da vertente literária que Lobato chamava de “caboclismo”. Ou seja, a que recorria, extemporaneamente, a um romantismo tardio, gerador de subprodutos do indianismo de José de Alencar, com suas incomparáveis idealizações do homem natural “como sonhava Rousseau” - de tantas perfeições humanas que sobrelevava aos ditos civilizados, em beleza de alma e corpo. “A sedução do imaginoso romancista criou forte corrente. Todo o clã plumitivo deu de forjar seu indiozinho refegado de Peri...”

Monteiro Lobato se interpôs nas encruzilhadas entre esses cultuadores dos Peris de segunda ou de terceira geração, e os modernistas de 1922. Se não chegou a exclamar, como Flaubert a respeito de sua mais famosa personagem – “Madame Bovary sou eu!” -, pelo menos imaginou que criador e criatura tivessem a mesma visão do Brasil daquele tempo. Ao reunir em livro uma série de artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo, e em outros, intitulou-o Idéias de Jeca Tatu, justificando o título desta maneira: o coitado, se pensasse, pensaria assim.

Assim como? “Em prol da nossa personalidade”. E contra os macaqueadores do dernier cri “dos homens e das coisas de Paris”, incapazes de uma atitude própria na vida e nas artes. “Convenhamos: a imitação é, de feito, a maior das forças criadoras. Mas imita quem assimila processos. Quem decalca não imita, furta”.

Ao entrar na pele do bronco Jeca Tatu, e emprestar-lhe a sua própria consciência, Monteiro Lobato mais parecia um tribuno indignado contra os imitadores de toda espécie, que ele chamava de macaquitos e macacões. A edição do livro que tenho, da Brasiliense, é a 13ª., publicada em 1969. E abre com a seguinte nota dos editores:

“Temos aqui um bem estranho livro. Monteiro Lobato fala de arte, e revolucionariamente, como de costume. Sua rebeldia mais acentuada nós mal a compreendemos hoje: contra o francesismo, a francesia, a nossa completa emulação de personalidade diante da França. Hoje está tudo mudado. As idéias de Monteiro Lobato venceram em toda a linha. Não só desapareceu a unicidade da influência francesa, como o que Lobato queria, a arte nacional, a coragem das coisas nacionais e até dum estilo arquitetônico nacional, fizeram-se lugares comuns. Abrimos o rádio e ouvimos dez números de arte roceira – ao passo que naquele tempo, quando pela primeira vez apareceu Pernambuco a cantar o ‘Luar do Sertão’ de Catulo, o acontecimento foi de tal monta que provocou um artigo seu”.

É curioso ler-se isso agora, quer dizer, em plena era globalizada, quando o nacional parece ir aos poucos sumindo do nosso horizonte. E quando chamar alguém de nacionalista, dependendo do tom de voz, pode parecer uma grave ofensa. Mas continuemos com a leitura da nota dos editores de Lobato, a propósito do livro “Idéias de Jeca Tatu”:

“Em numerosas páginas deste volume a ‘terra’ aparece em suas onímodas expressões – o interior, a roça, a gente da roça, os costumes e comidas da roça. E Lobato atrevidamente antepõe tudo isso à ‘chinfrineira do litoral’ – essa ‘civilizaçãozinha de arremedo e de empréstimo onde tudo são mentiras à terra”. Em resumo, segundo aqueles editores, ali estava um Lobato em mangas de camisa, integralmente ele próprio no pensamento e no modo de expressá-lo – vivo, alegre, brincalhão e com uma ironia às vezes levada até a crueldade.

A primeira cipoada dele é na imprensa: “Anda para cinco meses que abrir um jornal vale tanto quanto abrir um porco de cerva, tal o bafio de sangue que escapa dos telegramas, das crônicas, de tudo. Ora, isto afinal engulha, e sugere passeios por veredas afastadas do matadouro, onde os pés não chapinhem em lama de sangue nem se raspem os nossos olhos na rês humana carneada a estilhaços de obus”. O que diria Lobato da imprensa, hoje, tanto quanto do noticiário televisivo?

Bem, tudo o que sabemos é sobre o que ele pensava então e não sobre o que ele poderia vir a pensar no futuro, que, afinal, é o nosso presente. Melhor dizendo: se, de fato, pensasse, Jeca Tatu teria pensando por vezes de forma politicamente incorreta, ou jocosa, no que concerne à sua visão da História do Brasil, por exemplo:

“Enquanto colônia, era o Brasil uma espécie de ilha da Sapucaia de Portugal. Despejavam cá quanto elemento anti-social punha-se lá a infringir as Ordenações do Reino. E como o escravo indígena emperrava no eito, para cá foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível. Até a vinda de D. João, o Brasil não passava de índio e mataréu no interior e senhores, feitores e escravos nos núcleos de povoamento da costa, muito afastados entre si e rarefeitos. Em toda essa fase o Brasil não dá de si nenhum bruxoleio de arte.

E assim vai até que um tranco de Napoleão dá com o rei de Portugal para cima do Rio de Janeiro. Apesar da pressa com que arrumou as malas, D. João VI trouxe todos os ingredientes para uma boa implantação aqui: fidalgos de orgulhosa prosápia, nobres matronas, almotacés, estribeiros-mores, açafatas da rainha, vícios de bom tom, pitadas de arte e ciência e mais ingredientes básicos de uma monarquia preposta a pegar de galho”.

Ele vê a fuga da corte de D. João VI, quando da invasão napoleônica, de modo bem irônico, beirando o sarcasmo:

“Na lufa-lufa do embarque em Lisboa muita peça se quebrou, outras caíram ao mar, outras ficaram esquecidas lá no palácio. Perderam-se sobretudo muitos parafusos e porcas, e disso veio que, ao armar-se novamente, o Estado ficou meio bambo, frouxo de mancais e ferro.

Entre as coisas avariadas pela água do mar apareceu a Urna – a Urna das Eleições! Remendaram-na como puderam, mas nunca funcionou a contento nas terras do Brasil. Algo essencial se perdeu na travessia”.

Dois frasquinhos de drogas homeopáticas ninguém descobriu onde paravam: um com a Noção do Dever, e outro com a Noção da Responsabilidade”.

As idéias de Jeca Tatu sobre a criação do estilo:

“Não vem dos grandes mestres das artes plásticas a feição estética duma cidade. Vem antes de humildes artistas sem nome – do marceneiro que lhe mobília a casa, do serralheiro que lhe bate o ferro dos portões e grades, do entalhador de guarnições e molduras, do fundidor, do estofador, do ceramista, de quantos direta ou indiretamente afeiçoam o interior da casa urbana. Como tais obreiros são numerosíssimos, dilata-se-lhes a zona de influência. Sai-lhes inteirinha das mãos a casa popular como ainda a burguesa, e em boa parte o palacete rico”. Ele segue dizendo que era preciso cuidar da educação artística do operário, ensinando-lhe o bom gosto, desabrochando-lhe o senso da arte, norteando-lhe o impulso da criatividade, para dar moldes indeterminados, mas individualíssimos, à cidade futura.

Para ele, era assim que se criava estilo: como feição peculiar das coisas, um modo de ser inconfundível, a fisionomia, a cara da obra de arte. Em síntese, Jeca Lobato ou Monteiro Tatu definia toda a arte como produto conjugado do homem, do meio e do momento, mas que só adquire caráter pelo estilo. E aí vem uma cacetada em quem não o tem, a começar pela arquitetura:

“Não ter cara é um mal tamanho que as cidades receosas de criá-la própria importam máscaras alheias para fingir que têm uma”.

Ele conta que quando Anatole France esteve no Brasil, mostraram-lhe nossos monumentos, crentes de que ele iria esboçar uma exclamação diante deles. Mas que nada. O requintado artista só torceu o nariz:

- Já vi isto mil vezes – ele disse.

- Onde?

- Em toda parte. Europa, Bombaim, Port-Said.

“De quanto viu só lhe interessaram velhas igrejas. Descobriu nelas uma arte ingênua, porém mais eloqüente que o esperanto arquitetônico da Avenida Paulista”.

E tome diatribe. Contra as nossas casas, que “mentem à terra, ao passado, à raça, à alma, ao coração. Mentem em cal, areia e gesso, e agora, para maior duração da mentira, começam a mentir em cimento armado”.

O indignado Jeca Tatu não via sequer um trinco de porta que lembrasse coisa nossa. E desancava:

“Dentro de um salão Luis XV somos uma mentira com o rabo de fora. Porque por mais que nos falsifiquemos e nos estilizemos à francesa, Tomé de Souza e os 400 degredados berram ao nosso sangue; Fernão Dias geme; Tibiriçá pinoteia...

É acerba a sua crítica à maneira como o brasileiro mobíliava-se:

“Nosso mobiliário dedilha a gama inteira dos estilos exóticos, dos rococós luizescos às japonezices de bambu laçado. O interior das nossas casas é um perfeito prato de frios dum hotel de segunda. A sala de visitas só pede azeite, sal, vinagre para virar salada completa. Cadeiras Luis 15 ou 16, mesinha central Império, jardineiras de Limoges, tapetes da Pérsia, ‘perdões’ da Bretanha, gessos napolitanos, porcelanas de Copenhague, ventarolas do Japão, dragõezinhos de alabastro chinês – tudo quanto o comerciante de missanga importa a granel para impingir ao comprador boquiaberto”.

Então ele se admirava dos povos capazes de individualidade. E ensinava:

“Na casa holandesa o estigma local começa no telhado e desce aos mais humildes utensílios da cozinha. Tudo nela cheira à raça; o jardim com sua tulipa, os móveis esculpidos, os ornatos, os quadros – tudo é emanação de terra, criação lógica do ambiente”.

Para Jeca Lobato Tatu o que nos faltava em estilo sobrava aos outros:

“No lar britânico o inglês está dentro de uma moldura natural; nada destoa da sua psíquica fleumática de pirata enriquecido.

Na casa nipônica, que maravilhosa harmonia entre a gaiolinha incapaz na aparência de resistir às brisas mas que agüenta terremotos, e o japonês de aspecto frágil mas que derrancou o russo!”

E de casa em casa pelo mundo ele conclui que a China tem estilo e o americano (do Norte!) impõe o seu, “filho do ‘big’, do ferro e do milionarismo”, que resulta num estilo missionário, haurido nas velhas igrejas e conventos da era espanhola da Califórnia e do Texas. Monteiro Tatu via nisso uma forma superior de arte.

A nossa falta de estilo era uma simples questão de incultura – ele avaliava. “Como não nos educam o gosto e não nos ensinam a ver, não temos a bela coragem do gosto pessoal”. Daí porque o nosso homem culto, quando endinheirado, e bem situado no mundo político, quando ia comprar um objeto de arte olhava ansioso para o nome do autor, e só por ele se guiava.

Em resumo, no limiar da década de vinte do século passado tínhamos o seguinte quadro: incultura nos incultos; meia-cultura nos cultos; esnobismo nos “entendidos” e cubice paranóica nos paredros supremos. E dentro dele evoluía a feição estética da cidade.

E qual, afinal, seria o estilo que devíamos buscar?

Jeca Bento Monteiro Lobato Tatu achava que este devia ser decorrente do que os avós nos dotaram, coando-se a alma colonial através dum temperamento profundamente estético, filho da terra, produto do ambiente, alma aberta à compreensão da nossa natureza: e a arte colonial surgiria “moderníssima, bela, fidalga e gentil e moderníssima de um verso de Olavo Bilac”.

Ele prossegue:

“Seja assim a nossa arquitetura: moderníssima, elegantíssima, como moderna e elegante é a língua do poeta; mas, como ela, filha legítima de seus pais, pura do plágio, da cópia servil, do pastiche deletério”.

De acordo com as idéias de Jeca Tatu, a obra de arte, além dos elementos que lhe são intrínsecos - e que são permanentes, tais como os regidos pelas leis eternas das proporções e do equilíbrio -, não pode prescindir desse outro, mais sutil, por vezes abstrato ou indefinível, digo eu, mas visível, chamado estilo. É ele que revela a personalidade do artista, e o vínculo forte do seu temperamento emotivo. E as artes mais suscetíveis de se impregnarem desse coeficiente pessoal seriam a poesia, a pintura e a escultura. Já na arquitetura, não seria apenas o homem, e sim o meio, que imprime estilo à obra. Neste caso, mesmo que o elemento individual dê algo de seu, quem dá tudo é a coletividade.

Eis aí um rascunho do Idéias de Jeca Tatu, que foi o quarto livro de Lobato, conforme a cronologia de suas obras completas. E o consagrou como crítico, na opinião pública. Homem de múltiplos interesses, Lobato, muito antes de celebrizar-se como o nosso incomparável autor de histórias para crianças, imprimiu a sua marca de contista e ganhou notoriedade como polemista. Não perdoava São Paulo, do ponto de vista arquitetônico, a seu ver um puro jogo internacional de disparates.

Homem de múltiplos interesses, envolveu-se em temerárias causas. Uma delas, foi a sua campanha contra os modernistas, seus conterrâneos: “’Arte moderna’: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira [...], como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena... que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras-primas de quantas deixaram marcas de luz na história da humanidade”.

Mas a sua luta insana mesmo foi a que chamaria no título de um de seus livros de O escândalo do petróleo. Hoje, pareceria até improvável que um dia um brasileiro tenha ido parar na cadeia por querer provar de todos os modos a existência de petróleo em nosso país, quando todo o aparelho do Estado, em conluio com uma empresa norte-americana chamada Standard Oil, fazia de tudo para negá-la. Por ironia do destino, o primeiro poço de petróleo aberto no Brasil surgiu no Lobato, aqui na Bahia. Aconteceu isto em 1939. O curioso é que, menos de dois anos antes, em 1937, na primeira edição de O Poço do Visconde, o livro em que Monteiro Lobato ensina a geologia do petróleo às crianças, há um capítulo com os pontos onde ele deveria jorrar. Vejamos o quão profético se tornaria este trecho: “A Bahia perfurou na zona dos camamus e encheu-se de petróleo; e até na zona do Lobato, nos subúrbios da capital, abriram-se poços de excelente petróleo”.

José Bento Monteiro Lobato deu dez anos da sua vida a essa campanha, da qual saiu esgotado, esmagado, mas podendo proclamar-se um vencedor. Não tardou ao país passar a colher o que ele semeou. Sim, nós temos petróleo. Por proclamar isso, com convicção, Lobato acabou sendo condenado pelo Tribunal de Segurança da ditadura de Getúlio Vargas, o mesmo que quando presidente democraticamente eleito, criaria a Petrobras.

Terminemos com uma avaliação feita pela sua própria filha Ruth:

“Misto de filósofo, homem de ação e artista, sofria conflitos entre a razão e o sentimento. Tolerante por princípio, não o era por temperamento. Equânime por filosofia, perdia a cabeça quando se lhe antepunha obstáculos. ‘Blaguer’ e irritadiço, calmo nas horas de tumulto e inquieto nas horas de paz, era todo um conjunto de qualidades aparentemente paradoxais mas bastante compreensíveis para quem o conhecia bem”.

Para ela, o maior legado que Lobato deixou foi sua coerência de caráter. Nela residia sua força e também sua coragem, num mundo de hesitações e canalhices.

E não é que estamos necessitados de homens públicos com o caráter, as idéias, a coragem para defendê-las, de um Jeca Tatu?