sábado, 29 de novembro de 2008

CONTO DE NATAL

De Noel

É difícil dizer qual festa era a melhor em Alagoinhas: micareta, São João ou Natal, cada uma com sua peculiaridade, mas posso assegurar que o Natal era uma festa alegre, de participação popular e de muita animação.

O Clube dos Dirigentes Lojistas espalhava vários alto-falantes pelo circuito comercial e o povo era bombardeado ininterruptamente com mensagens e músicas natalinas. Quem ficava em casa, com o rádio ligado, sofria o mesmo bombardeio da emissora de rádio AM, única modalidade de radiodifusão de então; a freqüência modulada (FM) surgiu muitos anos depois.

Impossível não se envolver com o clima e o espírito natalino. Era uma afronta passar a véspera ou o dia do Natal sem provar da simplicidade da ceia dos parentes e amigos. Simples, porém farta. Bebidas a escolher. Comida a enjoar. Nada de nozes, panetone, castanha do Pará, iguarias que nada tinham a ver com a cultura e tradições da terra. Para azar do galináceo gigante, o peru era essencial.

O ápice da festa era o parque de diversões. Ocupando uma imensa área com seus brinquedos endiabrados, divertia mais do que o trio elétrico na micareta. Trem-fantasma, montanha-russa, autorama, roda-gigante, jogos eletrônicos, tiro ao alvo, caça ao pato e a bizarra Monga, a mulher-macaco, a surrealidade fantástica do jogo de espelho. Todo mundo sabia que era mentira, mas não ficava um valente sem correr quando Monga, uma gostosona em trajes sumários, se transformava em gorila e ameaçava abrir a jaula.

Do mesmo jeito assustador era o trem-fantasma. Mesmo sendo aconselhado a não descer do trenzinho sob qualquer circunstância por causa do trilho eletrizado, um infeliz não suportou o medo e pulou fora, na escuridão, vindo a morrer eletrocutado. Deixou um natal triste para a família e o parque com um brinquedo a menos, interditado pela polícia técnica.

Nessa época a urbe alagoinhense girava em torno dos cem mil habitantes. Desse total, metade ficava em casa recebendo os amigos e a outra metade se divertia no parque, normalmente os casais de namorados ou os solteiros em busca de acasalamento. Estes últimos preferiam sentar à mesa dos vários bares improvisados que circundavam os brinquedos. Paquera, bebidas e tira-gostos, pois ninguém era de ferro.

Eu ajudava um tio em um armazém de secos e molhados, um dos maiores da cidade, e, para compensar o tamanho da loja, ganhava um salário de fome. Ele dizia que se fosse para pagar mais, contratava um estranho. Isso me obrigava a fazer malabarismo com o salário, apenas o mínimo do necessário para ter sempre uma reserva para gastar com a namorada, principalmente em época de festa natalina. Além de pagar os bilhetes dos brinquedos da donzela, tinha também que bancar o pirralho do cunhado, o segurador de vela, o atrapalha-amasso. Não sei se era azar ou trabalho feito, mas toda namorada que arranjava tinha um irmão menor a nos acompanhar.

O Juizado de Menores marcava cerrado nas barracas de bebidas alcoólicas. Quando era flagrado menor de idade bebendo, a barraca era fechada e o dono levado para a Delegacia, onde passava a noite no xilindró. A reincidência valia prisão por mais dias e pesadas multas. Ao menor infrator nada acontecia a não ser o constrangimento de ter que sair da mesa sem pagar a conta.

Havia dois amigos maiores de idade: Luiz de Tenô, vindo do arraial do Junco, e Valdevino, companheiro de outros bares. Havia os menores: meu primo Paulo, meu irmão Décio e eu. A gente ia para o parque junto, exceto Valdevino, e, quando chegávamos lá, parávamos na barraca mais movimentada porque chamava menos a atenção para a presença de menor na turma. Barba e bigode despontando, Paulo e eu passávamos despercebidos, dava para enganar a torcida; Décio, o mais novo, bebia apenas refrigerante. Depois que a gente se instalava, fazia a festa: whisky, tira-gosto e cerveja. Muita cerveja. Às vezes juntava mais gente na nossa mesa e o dono alargava o sorriso, sem desconfiar que quase todo mundo estava abaixo da idade das responsabilidades. Queria vender; queria lucrar.

Por volta da meia-noite aparecia Valdevino, trajando um colete do Juizado de Menores. Policiais militares faziam sua segurança. Dirigia-se à nossa mesa, sem demonstrar a menor intimidade conosco. Pedia nossos documentos. Ameaçava prender o dono da barraca por vender bebida alcoólica à menor de idade. Mandava a gente ir embora sem pagar a conta nem olhar para trás. Obedecíamos como cordeirinhos. Antes de sairmos, na maior desfaçatez, aplicava um sermão em Luiz de Tenô, chamando-o de irresponsável e ameaçando prendê-lo também caso reincidisse na infração. No outro dia nos instalávamos em outra barraca e o processo se repetia, inclusive o sermão.

Essa farra durou por alguns natais, até uma noite que Valdevino não compareceu. Ficamos sem saber o que fazer, especulando motivos para a ausência do salvador da pátria. Esperamos até três horas da manhã, o parque foi esvaziando, a barraca também, e colocamos o plano B em operação. Retirada estratégica. Saía um de cada vez para não dar na vista; o último fingia que ia tirar água do joelho e se mandava no meio do povo. O dono da barraca desconfiou e segurou Luiz de Tenô, o último a ficar. Como a conta estava alta e ele com pouco dinheiro, penhorou sua corrente de prata e o relógio banhado a ouro.

No outro dia fizemos uma vaquinha e resgatamos os objetos do Luiz. Passamos na casa de Valdevino para saber do acontecido. Ele estava no hospital, com algumas costelas fraturadas. Segundo seu irmão, fora atropelado quando se dirigia ao parque e o motorista evadira-se do sinistro. Ninguém anotara a placa do carro. Coitado do Valdevino: passaria duas semanas internado, o que nos obrigou a bebermos a conta-gota, pois ainda havia dez dias de festa e diversão pela frente.

No Natal seguinte eu já morava em Salvador. Apesar de haver festa no Largo na Lapinha, parque de diversão em Água de Menino, e amigo comissário do Juizado de Menores, não foi mais possível aplicar o golpe. A cidade era outra, os amigos eram outros e o Tempo havia devorado a minha inocência.