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segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

O carrossel


A primeira vez que vi um carrossel foi numa noite de Natal, depois de admirar a lapinha de tia Pureza. Meu irmão João me pegou pelo braço e me arrastou para o meio da praça, onde fiquei extasiado vendo os cavalinhos subindo e descendo, e a roda girando, e os cavalinhos subindo e descendo, e a roda parando, e o povo descendo, e outros descendo de suas montarias de verdade e subindo nos cavalinhos de madeira que subiam e desciam, e eles riam como crianças ganhando brinquedo. E agora, em frente a esse carrossel, me vejo deslizando nas lembranças e vendo o moço empurrando o carrossel, colocando a roda para girar (não havia eletricidade no Junco) e alimentando os sonhos de quem sequer imaginava que existisse papai noel.

Eram tempos arcaicos, mas a felicidade era autêntica.

 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Seria o papa um herege?



Confesso que nunca entendi esse negócio de ceia de Natal. E que ceia! Tudo que não tinha na manjedoura, principalmente queijo do reino, nozes e castanha do Pará. É inconcebível que em pleno século vinte e um, com um oceano de informações a tempo real, ainda se confunda esbórnia com festejos cristãos. Ou vice-versa.

O Natal começou errado pela própria data. Não por um acaso a ladinice bispal escolheu essa data como o dia da Natividade, vez que tudo aponta ter nascido Jesus em meados do ano. Maria deu a luz ao retornar do recenseamento romano, o que era feito no Verão. Como sabemos, dezembro é Inverno nas bandas de lá. E rigoroso. Com neve, raios, chuvas, trovões, enchentes e atoleiros. O jeguinho que levou a Santa Madre Santíssima com certeza ficaria atolado na lama. E os três reis magos não poderiam enxergar a Estrela do Oriente. E os seus camelos também correriam o risco de atolar.

Na Roma antiga se comemorava a Saturnália, festa pagã em homenagem ao deus Saturno e ao fim do ano agrário e o início do ano novo. Era como o nosso réveillon aqui, e os comes e bebes iam de 17 a 24 de dezembro. Costumavam trocar presentes, não esses comprados em shoppings centers e pagos com cartão de crédito. Também não havia amigo secreto, oculto ou seja lá o que seja. Nem confraternização nas bibocas, cacetes armados ou restaurantes.

O cristianismo primitivo ignorava a Natividade. Nem sabia se o galo cantou de madrugada ou se houve reis magos na manjedoura. Segundo o evangelista Matheus, o encontro dos reis magos se deu na casa de José e Maria, e não no estábulo. E Jesus devia ter uns dois anos. Isso está registrado no Evangelho de Matheus e quem duvidar é só procurar na Bíblia.

Em 336 DC a Igreja romana resolveu cunhar a data de nascimento de Jota Cristo para depois da Saturnália. Era como se fosse a festa da ressaca. Ou o arrastão de Carlinhos Brown na quarta-feira de cinzas. A reação foi muito grande e a Igreja romana foi acusada de heresia pelos cristãos orientais por misturar paganismo com o sagrado. Como não ficou bem na fita, os notáveis de Roma mudaram a data para seis de janeiro. Em 356, DC, o todo poderoso Bispo Libério, de Roma, fez valer sua vontade e o Natal passou a ser comemorado no dia 25 de dezembro.

Vale lembrar que a palavra papa, com o significado de autoridade máxima da Igreja, surgiu em 1093 por decreto do papa Gregório VII. Antes, essa palavra era usada para designar todos os bispos ocidentais.

Mas nada há de me surpreender com a heresia conveniente da Igreja. É como Galvão Bueno gritando “Vai que é tua, Taffarel!” Valia tudo por um pouco mais de ibope. A Páscoa cristã foi mudada para coincidir com a festa em homenagem a Baco, o deus pagão. Por isso a Semana Santa não tem data fixa.

O pior dos piores, o pesar dos pesares, foi o título pagão dado aos imperadores e que o papado surrupiou no Século VI: Pontifex Maximus. Ou, no nosso linguajar, sumo pontífice, o construtor de pontes entre os deuses e o homem. Era assim que os romanos pagãos viam o imperador. E é assim que vemos o papa como cristãos. Quanta heresia disfarçada de sagrado, né mesmo? Não foi à toa que Jesus Cristo, em seu último suspiro, clamor aos Céus:

- Ó, pai, perdoai-lhes. Eles não sabem o que fazem.

Ou algo assim.
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terça-feira, 24 de dezembro de 2013

De onde eu vim não tinha missa, mas tinha galo





Diziam que o Menino Jesus nasceu numa manjedoura. Só o dizer já complicou, porque, na minha terra, ninguém sabia o que era manjedoura. Depois, outro padre menos metido a besta foi para lá e disse ao povo que Jesus nasceu em um estábulo, dentro duma gamela de dar comida aos cavalos. Um senhor da roça, com humildade e respeito, perguntou ao pároco o que era um estábulo. “Curral!”, disse o santo padre, sem desdenhar do roceiro. Diante de tão escabrosa revelação, o povo fez “oooohhh!!! num misto de decepção, consternação e revolta. Os mais afoitos queriam ir à Galileia tomar satisfação a Herodes. Só não foram porque ninguém sabia como chegar lá.

A partir desse dia a gente ficou sabendo, de maneira explícita, o que aconteceu de fato no Ano Zero: o Menino Jesus, apesar de ser filho do Todo Poderoso dono do mundo, nasceu na maior pindaíba, pobre de Jó, sem ter onde cair morto: veio ao mundo como indigente, teve uma gamela como berço e o feno como colchão. Bebeu leite desnatado de jega  e, como seu pai terreno não tinha dinheiro para comprar rojão, seu outro pai mandou uma estrela anunciar o nascimento. Quando o galo cantou de madrugada, o papa celebrou uma missa em sua homenagem.

A história do Menino Jesus é mais ou menos igual à minha. Não nasci num curral, mas o meu colchão foi de capim. Não teve rojão nem estrela, mas o galo cantou, porque é da natureza de todo galo cantar nas madrugadas, tal qual boêmio em serenata. Pelo menos nos tempos que havia galos, noites e quintais. E serenatas.

Bebi leite de jega que era para não pegar defluxo e o padre, quando me viu no dia do batizado, quis fazer uma sessão de exorcismo antes de jogar a água benta em mim.

Nenhum rei ou plebeu me presenteou com nada. Em toda infância só ganhei um presente: uma boneca que um dos meus oito irmãos mais velhos arrematou em um leilão. Ele ia dar de presente à namorada, mas ela recusou. Estava na idade de brincar com outra coisa, mas ele não entendia dessas necessidades vitais.

Minha alegria durou pouco. No dia seguinte chegou um tio lá em casa e disse à minha mãe que menino homem não brincava de boneca. Isso era coisa de mulher ou de xibungo. Minha mãe levou a mão à boca e exclamou: “Meu Deus!” E foi assim que, em nome da macheza sertaneja, o meu primeiro e único presente foi surrupiado e entregue a uma das minhas irmãs.

No natal lá na minha terra não havia ceia especial, árvore de natal piscante nem troca de presentes. Muito menos jingobéus, acabou o papel, papai noel e amigo secreto que, de tão secreto, todo mundo sabe quem tirou quem desde o dia do sorteio. Missa do galo ninguém sabia o que era, embora houvesse missa normal, quando o padre aproveitava a onda para meter a faca nos fiéis, com a cantilena do ano todo de que a igreja precisava de reforma. 

A diversão era visitar as lapinhas. Rústicas, mas bem criativas. A maior e a mais bonita era a de dona Pureza. Ocupava metade da sala. E o povo fazia fila na porta para ver. E ela, numa simpatia contagiante, ficava o tempo todo atendendo ao povo em conversa de amigo. Só fechava a porta quando o gerador de eletricidade dava sinal de que ia ser desligado ou então quando o sino batia em convocação de missa.

Não havia folguedos, auto de natal ou qualquer coisa parecida. Numa cidade com fortes traços indígenas, a cultura do colonizador não se sobrepôs. O branco que por lá aportou, não trouxe em seus alforjes as tradições populares da Corte como aconteceu na maioria das cidades brasileiras. Tratou-se da elite falida importada por D. Pedro II com o objetivo de dar um caráter de nobreza ao interior brasileiro, até então povoado por índios, negros fujões e brancos fugitivos da justiça. Mas, para contrariar os cortesães, havia a folia de reis no dia seis de janeiro. Os foliões saíam de casa em casa, de roça em roça, cantando e dançando ao sabor da pinga queimada com vinho de Jurubeba Leão do Norte. Era uma festa quando eles chegavam. Todo mundo entrava na folia, que terminava em samba de roda.

No dia seguinte as pessoas desmontavam as lapinhas conforme mandava o manual do padre. Guardavam-se os bois e jumentos de barro cozido, os santos voltavam aos seus nichos e a vida continuava como dantes no quartel de Abrantes, sem que ninguém desejasse um feliz natal, boas festas ou coisas que tais, mas, mesmo assim, durante o ciclo natalino, o povo da roça e o da cidade vivia em sincera e alegre confraternização. Sem saberem, praticavam o verdadeiro espírito de natal.