Diziam
que o Menino Jesus nasceu numa manjedoura. Só o dizer já complicou, porque, na
minha terra, ninguém sabia o que era manjedoura. Depois, outro padre menos
metido a besta foi para lá e disse ao povo que Jesus nasceu em um estábulo,
dentro duma gamela de dar comida aos cavalos. Um senhor da roça, com humildade e respeito, perguntou ao pároco o que era um estábulo. “Curral!”, disse o
santo padre, sem desdenhar do roceiro. Diante de tão escabrosa revelação, o povo fez “oooohhh!!! num misto de decepção, consternação e revolta. Os mais
afoitos queriam ir à Galileia tomar satisfação a Herodes. Só não foram porque ninguém sabia como chegar lá.
A
partir desse dia a gente ficou sabendo, de maneira explícita, o que aconteceu de fato no Ano Zero: o
Menino Jesus, apesar de ser filho do Todo Poderoso dono do mundo, nasceu na maior pindaíba,
pobre de Jó, sem ter onde cair morto: veio ao mundo como indigente, teve uma gamela como berço e o feno como
colchão. Bebeu leite desnatado de jega e, como seu pai terreno não tinha dinheiro para
comprar rojão, seu outro pai mandou uma estrela anunciar o nascimento. Quando o galo
cantou de madrugada, o papa celebrou uma missa em sua homenagem.
A
história do Menino Jesus é mais ou menos igual à minha. Não nasci num curral,
mas o meu colchão foi de capim. Não teve rojão nem estrela, mas o galo cantou,
porque é da natureza de todo galo cantar nas madrugadas, tal qual boêmio em
serenata. Pelo menos nos tempos que havia galos, noites e quintais. E serenatas.
Bebi
leite de jega que era para não pegar defluxo e o padre, quando me viu no dia do
batizado, quis fazer uma sessão de exorcismo antes de jogar a água benta em mim.
Nenhum
rei ou plebeu me presenteou com nada. Em toda infância só ganhei um presente:
uma boneca que um dos meus oito irmãos mais velhos arrematou em um leilão. Ele
ia dar de presente à namorada, mas ela recusou. Estava na idade de brincar com
outra coisa, mas ele não entendia dessas necessidades vitais.
Minha
alegria durou pouco. No dia seguinte chegou um tio lá em casa e disse à minha
mãe que menino homem não brincava de boneca. Isso era coisa de mulher ou de xibungo.
Minha mãe levou a mão à boca e exclamou: “Meu Deus!” E foi assim que, em
nome da macheza sertaneja, o meu primeiro e único presente foi surrupiado e
entregue a uma das minhas irmãs.
No
natal lá na minha terra não havia ceia especial, árvore de natal piscante nem
troca de presentes. Muito menos jingobéus, acabou o papel, papai noel e amigo
secreto que, de tão secreto, todo mundo sabe quem tirou quem desde o dia do
sorteio. Missa do galo ninguém sabia o que era, embora houvesse missa normal, quando o padre aproveitava a onda para meter a faca nos fiéis, com a cantilena do ano todo
de que a igreja precisava de reforma.
A
diversão era visitar as lapinhas. Rústicas, mas bem criativas. A maior e a mais
bonita era a de dona Pureza. Ocupava metade da sala. E o povo fazia fila na
porta para ver. E ela, numa simpatia contagiante, ficava o tempo todo atendendo
ao povo em conversa de amigo. Só fechava a porta quando o gerador de
eletricidade dava sinal de que ia ser desligado ou então quando o sino batia em
convocação de missa.
Não
havia folguedos, auto de natal ou qualquer coisa parecida. Numa cidade com
fortes traços indígenas, a cultura do colonizador não se sobrepôs. O branco que
por lá aportou, não trouxe em seus alforjes as tradições populares da Corte como
aconteceu na maioria das cidades brasileiras. Tratou-se da elite falida
importada por D. Pedro II com o objetivo de dar um caráter de nobreza ao
interior brasileiro, até então povoado por índios, negros fujões e brancos
fugitivos da justiça. Mas, para contrariar os cortesães, havia a folia de reis
no dia seis de janeiro. Os foliões saíam de casa em casa, de roça em roça,
cantando e dançando ao sabor da pinga queimada com vinho de Jurubeba Leão do
Norte. Era uma festa quando eles chegavam. Todo mundo entrava na folia, que
terminava em samba de roda.
No
dia seguinte as pessoas desmontavam as lapinhas conforme mandava o manual do padre.
Guardavam-se os bois e jumentos de barro cozido, os santos voltavam aos seus
nichos e a vida continuava como dantes no quartel de Abrantes, sem que ninguém
desejasse um feliz natal, boas festas ou coisas que tais, mas, mesmo assim,
durante o ciclo natalino, o povo da roça e o da cidade vivia em sincera e
alegre confraternização. Sem saberem, praticavam o verdadeiro espírito de
natal.