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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Antonio Torres - Flimar: o gol de letra do velho Capita


Foi bonita, simpática, leve, divertida e, sobretudo, inteligentíssima, a terceira edição da Flimar, a Festa Literária de Marechal Deodoro, criada, organizada e animada pelo secretário de Cultura dessa cidade, o admirável homem de letras Carlito Lima, o velho Capita, assim chamado, carinhosamente, por ter sido capitão do exército brasileiro.

Graças ao seu esforço e competência, hoje Marechal Deodoro está inserida na agenda nacional de eventos literários - feiras, bienais, festas e jornadas, realizadas regularmente de Passo Fundo, no Rio Grande Sul, a Manaus; e de Macapá, no extremo-norte, a Foz do Iguaçu, na tríplice fronteira.

Acontecida do dia 28/11 a 1/12, a 3ª Flimar contou com uma variada programação de palestras, oficinas, saraus de poesia, concertos musicais, numa alegre e significativa festa da cultura.

 Frequentador de todas as suas edições até agora, este velho escriba assistiu em todas elas a palestras memoráveis, como as de Marina Colasanti, Ignácio de Loyola Brandão, Luiz Ruffato, Luís Pimentel, Affonso Romano de Sant’ Anna, Salgado Maranhão, etc., etc. No ano passado, porém, o maior destaque da Flimar foi ter o poeta e imortal Lêdo Ivo como o seu autor homenageado. Neste 2012, a honraria se estendeu a dois nomes: o do  folclorista alagoano Théo Brandão - rememorado pelo já citado Lêdo Ivo, assim como pelo jornalista Luiz Rosenberg e outros palestrantes -, e o do baiano que vos escreve, saudado pela professora Vanúsia Amorim, que, em nome de 1.700 alunos do IFAL de Palmeira dos Índios, e a três vozes (com os atores Chico de Assis e Paulo Poeta), leu um poema (Juncomigo) do estudante Lucas Rosendo, proporcionando um dos momentos mais emocionantes da festa.

 Além de Théo Brandão, Monteiro Lobato, Jorge Amado e Luiz Gonzaga, o rei do baião, também foram (bem) lembrados.

 Entre os que contribuíram para o brilho da Flimar 2012 figuram os nomes de Janaína Amado, Maurício Melo Júnior, Miriam Salles, Marília Arnaud, Ovídio Polli Júnior, Valéria Martins, Carla Nobre, Ricardo Cravo Albin, Ricardo Cabus... e o impagável Sebastião Nery – com o devido pedido de desculpas aos não lembrados aqui.          

Que a Flimar entre definitivamente no calendário cultural de Alagoas, para o bem de todos e felicidade geral da nação letrada.

 E palmas para o seu o comandante-em-chefe Carlito Lima, capitão das letras e das artes, semeador de cultura, cultor de amizades. 

 

sábado, 7 de julho de 2012

Antonio Torres - Amado Jorge


                  Recordo aqui o mestre na arte de fazer amigos, apresentar pessoas umas às outras, de recebê-las em sua bela casa na Rua Alagoinhas, 33, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador da Bahia, e nos seus endereços do Rio de Janeiro e de Paris. Missivista incansável, ele sempre dava um jeito de encontrar tempo para ler e responder as cartas que recebia de todo o mundo, numa disponibilidade impressionante em se tratando de um escritor com dedicação exclusiva ao seu ofício, e ao mesmo tempo figura pública frequentemente envolta em múltiplas solicitações. As mais de cem mil páginas guardadas num acervo isolado na fundação que leva o seu nome, na capital do seu estado natal, comprovam o quanto ele dialogou intensamente por via postal. Não foram poucos os ilustres desconhecidos, promissores ou não, que no início de suas carreiras literárias mereceram dele amáveis palavras de incentivo, a serem guardadas como um troféu pelos destinatários mais discretos, ou divulgadas triunfalmente – pelos mais afoitos. 

O autor destas linhas foi um desses felizardos. E de forma tão surpreendente quanto inesquecível, para um voraz leitor de seus livros, e desde a adolescência, quando um deles lhe caiu às mãos. E que o tinha na conta de uma figura inatingível, já que se tratava do romancista brasileiro mais lido, mais traduzido, mais viajado, mais cortejado, mais popular – sua popularidade jamais fora igualada por qualquer outro escritor brasileiro do seu tempo, ou de antes dele, ainda que a crítica, sobretudo a acadêmica, lhe torcesse o nariz. Portanto, este que agora vos escreve não contava com aquele seu gesto, imprevisível, desprendido, atencioso, melhor dizendo, de uma generosidade inimaginável. 

Eis a história:
                       
Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1972.

Já estava aprontando a mala, para uma rápida viagem a São Paulo. Motivo: o lançamento do meu primeiro livro lá, programado para a inauguração de uma livraria no Largo do Arouche, no centro da cidade.

 O telefone tocou. Ao atendê-lo, reconheci a voz de um amigo paulista, que tinha duas notícias, uma boa e outra ruim.

  Pedi-lhe que começasse pela ruim.

  E ele:

  - Para o seu azar, Jorge Amado vai fazer a noite de autógrafos de Tereza Batista cansada de guerra aqui em São Paulo, hoje, no mesmo horário da sua. Como qualquer lançamento dele dá enchente, o seu pode ficar às moscas.   
                     
    Por essa eu não esperava. A coincidência dos dois lançamentos, no mesmo horário, era mesmo preocupante. Mas, fazer o que, se estava tudo marcado e, àquela hora, não dava mais para propor outra data? 

    - Agora conta a boa...
    - Leia “O Estado de São Paulo” de hoje. 

     Claro que, ao chegar ao aeroporto Santos Dumont, no centro do Rio, corri à livraria para comprar o “Estadão”. E lá estava, na página 10 do primeiro caderno, uma matéria de boníssimo tamanho sobre os dois lançamentos, com as capas dos respectivos livros em destaque, o do baiano universalmente consagrado e o do estreante já devidamente avisado de que se preparasse para ser esmagado pelo peso do nome do seu ilustre conterrâneo. No entanto, ao se encaminhar para o avião, o tal estreante já estava mais otimista, achando que de modo algum aquela seria uma viagem perdida. A julgar pelo espaço que lhe coubera no poderoso “Estadão”, e junto logo de quem, a ganhara por antecipação. Só por isso já se sentia no lucro.                                
                         
       São Paulo, 12 de dezembro de 1972.
       Fim de tarde.

       Chego à livraria alguns minutos antes da hora marcada e me dirijo ao balcão, para me apresentar. Um rapaz me cumprimenta, se desmanchando em mesuras. E logo revela a razão do seu entusiasmo: Jorge Amado acabava de sair dali.

       E aí é que vinha a surpresa. Antes de ir para a livraria onde estaria autografando seu novo romance, dali a pouco, e certamente para uma multidão, Jorge Amado passara naquela outra, na qual comprara o livro do estreante, que deixou com o vendedor, pedindo-lhe para enviá-lo ao hotel em que estava hospedado, devidamente autografado. Como se isso fosse pouco, deixou uma cartinha com simpáticas saudações ao novo autor, e dando-lhe seu endereço e telefone, para que o procurasse, quando fosse à Bahia. Seria isso algo normal no mundo das letras, ou somente em se tratando de um cavalheiro chamado Jorge Amado? A praxe deveria ser outra: o estreante envidar esforços para descobrir como enviar seu livro para o escritor consagrado, escrever para ele para saber se o havia recebido, se tivera tempo de lê-lo, o que achara etc, tentar uma aproximação através de um amigo que tivesse um amigo que por sua vez era amigo... Não era mais ou menos assim a via crucis em busca de reconhecimento, por caminhos mais longos do que no admirável novo mundo-ego inaugurado pela web? Enfim, para o destinatário daquela cartinha escrita de próprio punho em 12 de dezembro de 1972, Jorge Amado parecia haver descido do topo da montanha em que fora colocado pela força da sua obra para dar uma mão a um mocinho sem currículo recém-chegado à planície das letras.

   Ainda ia haver mais.

    Poucos meses depois, o telefone toca, e era ele próprio no outro lado da linha, convidando para dois dedos de prosa em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro. Perguntou se podia convidar também o artista plástico Calazans Neto, seu grande amigo, capista e ilustrador de alguns dos seus livros. Ora, ora, como não? E lá me fui. Para conhecê-lo pessoalmente, assim como à sua mulher, a escritora Zélia Gattai, e o “mestre Calá”, um conviva espirituoso, encantador, cujo senso de humor preenchia o vazio que ficava na sala toda vez que o telefone tocava e dona Zélia se levantava para atendê-lo. O que acontecia a todo instante. Eram ligações dos jornais, das TVs, dos embaixadores dos mais diversos países. Jorge pedia licença, ia e vinha, se desculpava pelas interrupções à conversa. 

    - Eu queria mesmo era ficar conversando contigo. Mas não me deixam. Vá à Bahia. Quem sabe lá dê para a gente conversar?

     Doce ilusão. Baiano, mas vivendo fora do estado desde cedo, finalmente eu iria ser apresentado a praticamente todo o meio literário local - por Jorge Amado! E isso em torno dos comes e bebes de um almoço de domingo, com os cheiros, cores e sabores carregados da sensualidade que impregnavam as suas páginas. 

      – Chegue cedo, para a gente poder conversar. 

     Só que uma equipe da TV argentina chegou antes, para entrevistá-lo. Sua sala de visitas estava completamente tomada por câmaras, cabos, refletores, que o seguiam por quartos, escritório, cozinha, tudo. E a produção pedia-lhe para trocar de roupa, nas mudanças dos sets de gravação. E ele, tendo nas mãos uma camisa estampada, de cores vivas, bem ao gosto de turista norte-americano no Hawai: - Zélia, esta fica bem?

      Isso não foi tudo: a campainha tocava o tempo todo. E lá ia ele para a porta de casa, para ser fotografado, ora por japoneses, ora por turistas paulistas que chegavam aos bandos, enquanto o convidado que atendera ao seu pedido de chegar cedo se perguntava como ele agüentava esse tranco e ainda era capaz de escrever com tanta regularidade.   

      Voltaria a visitá-lo, na Bahia, no Rio, em Paris. Às vezes – raras vezes - com sorte de encontrá-lo sem o desassossego que o acompanhava em toda parte. E não foram poucas as cartas que recebi dele, enviadas de Salvador, Londres, Lisboa, Martinica... Ou seja, pela vida afora ele acompanhava com interesse o destino do escritor estreante que em São Paulo o levara a fazer um desvio de caminho para comprar o seu livro, naquele fim de tarde de 12 de dezembro de 1972.
        
                                      ***
      Agora recordo a iniciação de um leitor à obra de Jorge Amado. Foi através do Mar morto, no qual navegaria em duas noites, para desembarcar ao raiar de um dia com o mesmo arrebatamento com que já havia lido um célebre vate, e ícone do romantismo no Brasil, o também baiano Antônio de Castro Alves. De tão poético, o romance de Jorge Amado parecia uma versão contemporânea, em prosa, da lira flamejante, libertária, daquele que tanto colocou a sua pena a serviço de um mundo mais justo, comprometida com a construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista, quanto também arrebatava os corações como o grande poeta do amor e da melancolia do século XIX. (“Por que Castro Alves e Jorge Amado estão ainda por merecer estudos analíticos mais amplos e mais profundos”? – pergunta o escritor e crítico literário Hélio Pólvora, num ensaio intitulado Jorge Amado e o romance do mar. E responde: “Justamente porque expõem sentimentos comuns, ânsias comuns, esperanças disseminadas. E, sobretudo, porque são eloquentes: exprimem logo o essencial sem o recurso ao debate de ideias, dispensam os mistérios do texto. Dizem verdades essenciais – e isso, como ficou bem dito de Máximo Gorki, é uma arte do coração”). Mar morto seria então uma comprovação disso, embora não tenham sido poucos os críticos que o combateram, chegando-se até a acusá-lo de sentimentalismo quase pueril, amontoado de lugares comuns e banalidades que de modo algum poderiam ser elevadas à categoria de poesia. 

        O leitor aqui recordado ainda não lia os críticos. Era um adolescente mais chegado à poesia do que à prosa. Ainda assim já havia lido com interesse um romance de Machado de Assis, outro de Graciliano Ramos, alguns contos de Monteiro Lobato, e de uma série de antologias intitulada Maravilhas do conto (hispano-americano, russo, norte-americano etc). Mar morto o conquistara definitivamente para a prosa de ficção. Ponto para o poder de sedução da humaníssima fala baiana que Jorge Amado tão bem sabia captar para a linguagem escrita, trazendo à literatura brasileira um colorido encantador, até, ou principalmente, para um leitorzinho baiano como o que aqui se rememora, pois, sendo natural do interior do estado e nele ainda vivendo, desconhecia a vida e as lendas do mar, os cenários míticos amadianos, pintados pelo seu viés sincrético, a retratar uma deslumbrante visão utópica de mundo.

           E a descoberta desse mundo fabuloso deveu-se a um professor – de Geografia! -, que chegara, procedente do Rio de Janeiro, para dar aulas no único ginásio da cidade, surpreendendo os seus alunos com seus vastos conhecimentos de serras, mares, rios, lagos, pontos culminantes, continentes, capitais, países. Aos poucos, ele revelaria outros domínios, que abrangiam da Matemática à Literatura. Esse mestre de nome estranho – chamava-se Carloman, por extenso, Carloman Carlos Borges -, fora das salas de aulas empenhava-se em falar de livros e autores jamais falados naquele estabelecimento de ensino, parado no tempo do Romantismo. Para o professor Carloman, compreenderíamos melhor o país em que vivíamos, se lêssemos a literatura brasileira moderna, muito bem representada pelos romancistas do Nordeste, que, com a cearense Rachel de Queiroz, o alagoano Graciliano Ramos, o paraibano José Lins do Rego e o baiano Jorge Amado haviam inaugurado o mais poderoso ciclo literário nacional, no século XX, o do “romance de 30” – ou seja, da década de 1930. – Para começar a gostar da obra de Jorge Amado, leia este – ele disse, ao me emprestar o Mar morto.  Quando se começa a ler Jorge Amado, não se para mais. 

          Estávamos na segunda metade da década de 1950, numa cidade de 50 mil habitantes, luzes verdes, sonhos dourados, e vida cultural limitada. Nosso imaginário era povoado pelos personagens interpretados pelos astros e estrelas de Hollywood, e nós, os rapazes, ora saíamos do cinema andando como um cowboy que acabava de apear do cavalo, ora  iríamos passar horas e horas diante de um espelho, caprichando num pimpão que nos deixasse parecidos com o Elvis Presley. Nos bailes, porém, só sabíamos dançar mesmo era o bolero. Aquele que ousou os primeiros requebros do rock and roll foi aplaudido de pé, como um herói. Ler Jorge Amado significou descobrir um outro heroísmo. 

           Começando o Mar morto em tom de conversa pessoal, íntima, de pé do ouvido, ele seduz o leitor desde a primeira linha - Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia -, e daí por diante leva-o em ondas, deixando-o completamente envolvido pelas dores das labutas dos seus marinheiros, tanto quanto pelo prazer de um texto amoroso, memorável: Vinde ouvir estas histórias e estas canções. Vinde ouvir a história de Guma e Lívia que é a história da vida e do amor no mar. Uma história de aventura e de liberdade, de mitos oriundos de tradições culturais tão próximas e tão desconhecidas daquele leitorzinho interiorano:
                       
                        Estrela matutina. No cais o velho Francisco balança a cabeça. Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de saveiro faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela quem vai agora de pé no Paquete Voador? Não é ela? É ela, sim. É Iemanjá quem vai ali. E o velho Francisco grita para outros no cais:
                         - Vejam! Vejam! É Janaína.
                         Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a segunda vez que ele a via.
                           Assim contam na beira do cais. 

       “De todos os mitos que sustentam os romances amadianos e lhes dão a profunda ressonância da fatalidade, nenhum é tão amplamente utilizado quanto o de Iemanjá que empresta a Mar morto a sua estrutura, o seu sopro poético e a sua força dramática. A história de Guma é, em certas ocasiões, tão comovente quanto a de Édipo. O sistema das relações entre os personagens se reproduz graças à presença mediadora do mito afro-brasileiro, o velho esquema da ficção grega que nada mais é, talvez, do que a expressão das relações inerentes a todos os grupos humanos desde sempre”.
Salah, Jacques. O cenário mítico em Mar morto. In: Colóquio Jorge Amado – 70 anos de Mar morto. Salvador: Casa de Palavras, 2008.
                                                           
                       Fim de uma história. Começo de outra. Com a seguinte epígrafe: Buscaba el amanecer/ y el amanecer no era. Foi a primeira vez que este leitor bateu os olhos no nome de Federico Garcia Lorca, que, descoberto via Jorge Amado, um dia iria lhe inspirar o romance Balada da infância perdida.   
                                                     ***

                       Salve, salve, capitão de longo curso:
                       
             Recordo-o em O país do carnaval: “Fica-se vivendo a tragédia de fazer ironias”. Pois não deixa de ser irônico que o mundo acadêmico, que costumava jogá-lo num saco de gatos, para malhá-lo como a um Judas, esteja fazendo uma reavaliação da sua obra. Chega a parecer que agora você “era o herói” (copyright para Chico Buarque), o herói popular ao qual alguns círculos eruditos fazem justiça, ainda que tardia. Seja como for, não custa recordar que essa virada começou em 2010, quando duas venerandas instituições do ensino superior, uma de São Paulo e a outra da Bahia, realizaram um seminário em torno do seu nome, e com auditórios lotados. Agora se descobre que “ainda há terrenos férteis a serem explorados” em sua obra, como a homossexualidade em alguns de seus romances, e “o grande potencial da literatura amadiana para a pesquisa histórica”, conforme avaliação acadêmica feita em recente edição da bela Revista da Biblioteca Mário de Andrade, também de São Paulo. Era agora que você iria se perguntar: “Mudou a universidade brasileira ou mudei eu”? E são tantos os workshops em torno dos seus livros – e da sua vida - pelo país afora, e tantas as homenagens a você around the world, neste seu centenário, que o espaço aqui ficou pequeno para dar conta de tudo, até porque não poderia encerrar estas mal-traçadas linhas sem repassar um recado da Bahia. Nosso conterrâneo Aleilton Fonseca, doutor em Letras e escritor, manda dizer que na sua obra, Jorge, “somos nós que estamos representados, com a nossa cultura mestiça, nossas marcas étnicas e sociais, e os diversos aspectos da nossa formação”. E que ela revela “a nossa experiência particular do mundo”. Assino embaixo. Saudades eternas, 

    Antônio Torres

terça-feira, 22 de maio de 2012

Antonio Toores - Na cidade do invisível Dalton Trevisan


Aproveito a festa do grande Dalton Trevisan pelo Prêmio Camões, maior prêmio da Literatura de Língua Portuguesa em termos de prestígio e cifrões, para republicar uma crônica de Antonio Torres, do seu livro "Sobre Pessoas" em que fala da invisibilidade do autor numa feira de livro de Curitiba.


Tudo que sabia dela era de ouvir dizer. Coisas assim: que no fundo de cada filho de família dorme um vampiro, como o Nelsinho, o Delicado, ou o Dalton, o Contista, suplicantes de beijos das virgens - e de suas carótidas. Mesmo sendo refratários à luz do dia, tornam-se invisíveis, só para contrariar os bisbilhoteiros que a visitam na vã esperança de identificá-los. Quais seriam eles, entre aqueles encostados num balcão, de olho nas meninas que passam, sem lhes prestar atenção? Se é isto o que você quer saber, pode ter certeza de que perdeu a viagem. No entanto, acredite: bem diante dos seus olhos, um deles estará às raias do êxtase, ante a esplêndida visão de uma viúva que acaba de sair de um carro: ''Ela está de preto... Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!''. 

Impossível não associar Curitiba ao ritual de seus pequenos vampiros, súditos de Onã, priápicos inofensivos a enxugar conhaques, para afogar os dissabores de uma adolescência espinhenta. Ou a um humorístico jogo de palavras que certamente lhe soa tão espirituoso quanto incômodo: ''Ritiba quer dizer 'do mundo'''. E ainda à definição que lhe cunhou a roqueira Rita Lee: ''Uma cidade arrumadinha, bonitinha, com uma gente educadinha''. Só que esta cidade, justa ou injustamente reduzida a diminutivos, é uma das que mais crescem no país. 

Fiz um bordejo por lá, a convite da Confraria da Palavra. Palestras. Na PUC-PR e numa simpática Feira de Livros na Praça Osório. Quando cheguei, Carlos Heitor Cony já tinha pegado o avião de volta. Logo outro carioca talentoso, o Fernando Molica, deu o ar da sua graça para um reforço à programação cultural do evento e, a bem dizer, preencher um pouco a lacuna deixada pelo experiente Cony. 

Para mim, foi como ir a Roma e não ver o papa, pois Dalton Trevisan, o sumo pontífice das letras paranaenses, ficou famoso também pela invisibilidade. Recluso sistemático, não se sabe se o ermitão Dalton existe ou é ficção. Modo de dizer. Miguel Sanches Neto, um novo valor que se alevanta no Sul, uma vez me garantiu que costuma bater em seus umbrais, e que ele lhe abre a porta, numa prova inequívoca de que sua existência é real, embora escondida a sete chaves da curiosidade pública. 

Esse ourives de palavras - um gênio minimalista - foge do assédio como o diabo da cruz. E nisso faz lembrar o finado Scott Fitzgerald, quando dizia que não podia suportar a visita de celtas, ingleses, políticos, estrangeiros, virginianos, lojistas, intermediários em geral, todos os escritores (evitava os escritores com o maior cuidado, porque eles podem perpetuar a agitação e o desassossego melhor do que ninguém) - e todas as classes como classes, a maioria delas pelos seus membros... 

Seja lá qual tenha sido o motivo, o certo é que o criador de O vampiro de Curitiba não foi à feira. Ainda assim, a praça atraiu de poetas a loucos. Nenhum dos autores convidados conseguiu causar mais impacto do que uma mendiga. Esta roubou a cena diante de uma mesa de autógrafos, ao bradar, insistentemente: ''Senhor vereador, eu quero uma saia nova!''. Acabou sendo tratada respeitosamente. Aí dei razão a Rita Lee: em Curitiba há uma gente bem educada, sim senhora! 


sábado, 5 de novembro de 2011

Antonio Torres - Um escritor na biblioteca


Antônio Torres, quinto convidado do projeto “Um Escritor na Biblioteca”, relembra sua infância com livros no interior da Bahia, fala de seu processo de criação, da influência do jazz em sua literatura e da relação de amizade que tinha com Moacyr Scliar, que morreu no começo deste ano

Não são poucos os escritores que creditam sua entrada na literatura a algum fato pontual ocorrido em suas vidas. Dalton Trevisan, por exemplo, “virou” escritor depois de um acidente, que quase o matou, sofrido na fábrica de vidros de seu pai. J.D. Salinger, que lutou na Segunda Guerra Mundial, teve sua trajetória como escritor marcada pelo desembarque na Normandia, no Dia D.

Antônio Torres não teve nenhuma experiência traumática, mas lembra-se bem o dia em que nasceu como ficcionista. Nascido em 1940, em um povoado da Bahia à época chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), Torres virou escritor ainda na infância, quando foi desafiado por uma professora a escrever uma redação sobre “um dia de chuva”.

“O lugar era chegado numa seca. Escrever sobre chuva exigia muita imaginação. Eu acho que foi nesse dia que ela fez de mim um ficcionista”, disse o autor durante o bate-papo “Um Escritor na Biblioteca”, promovido pela Biblioteca Pública do Paraná.
Apesar da relação estreita com o Nordeste brasileiro e o modo de vida sertanejo, Antônio Torres, no entanto, nunca deixou que esse traço biográfico fizesse dele um escritor monotemático, guiado apenas por sua biografia. Seu primeiro romance, Um cão uivando para a lua, não é um livro sobre o Brasil profundo, mas sim uma obra que transita com a mesma desenvoltura por cenários rurais e urbanos.

Seu grande sucesso veio em 1976, quando publicou Essa terra, narrativa de fortes pinceladas autobiográficas que aborda a questão do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas grandes metrópoles do Sul e Sudeste.

Em 2000, Torres ganhou o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. Em 2001, foi o vencedor, junto com Salim Miguel, do Prêmio Zaffari & Bourbon, da 9ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, por seu romance Meu querido canibal.

Aos 70 anos e depois de onze romances, Torres ainda persegue o livro perfeito. “A essa altura já não tenho nenhuma ilusão de que vou ganhar Prêmio Nobel, de que vou fazer e acontecer. O que quero é viver mais para escrever bastante e tentar, quem sabe, me superar naquilo que eu já fiz.” Confira os principais trechos da conversa, mediada pelo jornalista Luiz Andrioli.

Como nasce o leitor

Eu vim de um interior em que o interior de hoje seria impensável naquele tempo. Era um lugar sem notícias das terras civilizadas, como cantava o Luiz Gonzaga, rei do baião. Uma terra sem livros. Ali, naquele lugar, não existia nem escola. Existia um professor particular que era mestre mais na palmatória do que nas letras. Esse homem virou uma celebridade no lugar. O nome dele era Laudelino Mendonça, conhecido como “Pai Lau”. Porém, eu não fui aluno dele. Eu tive a sorte de pegar a primeira escola pública que apareceu no lugar, já na segunda metade dos anos 1940. Era a escola – até hoje muito criticada – que vinha no bojo dos projetos ufanistas do Governo Vargas. Era uma escola criada pelo Villa-Lobos, na verdade. A marca dessa escola era a cantoria, diariamente, de hinos e a leitura de poemas patrióticos. Isso me marcou muito, porque quando cheguei à escola – eu nasci na roça, num mundo rural completamente isolado, diferente do que ele é hoje – já estava semialfabetizado pela minha mãe. Um dia ela chegou em casa, num dia de feira, e apresentou para o filho mais velho um objeto não identificado. Que era um ABC. É a imagem mais forte que eu tenho da minha infância: eu sentado no chão, onde estava brincando de bola de gude, e minha mãe chegando com aquele presente. Abre e começa a me mostrar o que era o ABC. As letras. Eu via aquele conjunto enigmático diante de mim e fiquei fascinado. Pela descrição que ela fazia das letras, percebi que cada letra tinha um desenho e cada desenho criava para ela uma personalidade própria, um nome. Fiquei encantado, maravilhado. Ela percebeu e, no embalo, já passou para o “be-a-bá”, para a formação de palavras, começou a me explicar que aquilo dava nome a tudo que havia no mundo. Tudo começava ali, naquele ABC.

Influência da primeira professora

Minha mãe fazia parte do projeto de cataquese elaborado por uma professora que tinha vindo de fora para abrir a primeira escola pública da minha cidade, que por sinal, naquela época, ainda não contava com alunos, porque os pais não queriam que os filhos fossem estudar. As filhas mulheres para não aprender a escrever cartas para os namorados. E os filhos homens para não desfalcar a mão de obra na lavoura. Era um drama para a professora. Ela teve que fazer toda uma catequese junto às mães. Esse ABC que minha mãe me deu já fazia parte desse projeto. Então, quando minha mãe me levou para a professora, ela deu graças a Deus, tinha um aluno já adiantado no processo de alfabetização. Aí, nesse encanto, tome poema patriótico, tome leitura em voz alta – que são minhas oficinas literárias até hoje: são essas leituras que eu tive na escola primária. Depois de velho que eu percebi o quanto foram importantes aquelas leituras em voz alta. Eu sei que no primeiro sete de setembro, ela me pôs num palanque na frente da escola, numa praça empoeirada, entupida de gente, eu tremendo. Calça curta azul marinho, uma fitinha verde e amarela, uma bandeira do Brasil numa mão e Castro Alves na outra! “Auriverde pendão de minha terra/ que a brisa do Brasil beija e balança/ estandarte que à luz do sol encerra/ as promessas divinas da Esperança...” Eu achando que ia cair de tanto tremer. Quando olho, o povo chorando. Rapaz, eu acho que é por isso que até hoje faço palestra, porque esse negócio tem uma resposta. O povo chorava, o povo não entendia o que era auriverde, o que era pendão da esperança, estandarte muito menos, mas estava achando um grande barato aquele garoto da roça ter tido a coragem de decorar todas aquelas palavras bonitas. Era que nem a missa em latim, ninguém entendia nada, mas era bonito demais. Depois que traduziram a missa, ficou sem graça. “Introire altare Dei” é muito mais bonito que “Introduza o altar de Deus”. Então, era essa coisa da força do Castro Alves, o poeta romântico, que certamente pouco se entendia, mas não tinha importância. Entender aquilo era uma questão também de licença poética.

José de Alencar

Uma das lembranças que tenho, é de minha professora Tereza chegando e abrindo as janelas da escola, aquele solão de sertão, então ela põe os livros na mesa, coloca os meninos em fila e abre o livro, chamado “Seleta escolar” – uma antologia de contos, crônicas, poemas e trechos de romances. Ela abria e mandava um menino ler. Isso me marcou muito também. Abria-se: “verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba”. Começo da “Iracema”, de José de Alencar, que é um poema em prosa, do qual eu nunca esqueci. Imaginem vocês o que era a leitura desse trecho, falando desses verdes mares, para um menino que vivia num lugar que não havia nem rio, quanto mais verdes mares. O que era uma jandaia? Uma carnaúba? Passei noites e noites sonhando com os verdes mares. Quando eu fui a Fortaleza pela primeira vez, colocaram-me num hotel na beira-mar. Eu abri as cortinas e vi os verdes mares. E dos verdes mares eu vi a professora saindo, com aquele livro na mão. Eu fui descobrir o que era uma carnaúba no ano passado, no Salão do Livro do Piauí, quando o Cineas Santos, que é o escritor local que organiza o Salão, foi me levar para conhecer a cidade e me mostrou um pé de carnaúba, que é uma árvore frondosa, imensa. Eu olhei e disse: “bom dia, dona carnaúba, a sua fama vem de longe”. E a carnaúba não se moveu, orgulhosa de si. Então, as primeiras leituras foram isso, em uma terra que não tinha biblioteca, não tinha livros, não tinha nada.

Nasce o escritor

Na verdade, o método da mina professora era uma oficina literária. Hoje eu sei. Era fantástico. Ela começava com a leitura em voz alta, depois ela lia para a gente copiar. Depois, tinha o ditado, ela ditava, e depois vinha corrigir. Depois ela ensinava a fazer cartas. Tinha um começo determinado: “inesquecível amigo, o motivo destas mal traçadas linhas é dar-te as minhas notícias, e ao mesmo tempo, receber as tuas. Como tem passado? Bem, não é?” O começo estava armado. Depois, ela ensinava a fazer composição escolar. Os temas eram ligados à nossa realidade. À casa. À roça. Um dia ela pegou pesado. O tema seria “um dia de chuva”. O lugar era chegado numa seca. Escrever sobre chuva exigia muita imaginação. Eu acho que foi nesse dia que ela fez de mim um ficcionista. Fui desafiado. Era muito seco aquele lugar.

Literatura ritmada

O ritmo marca muito minhas frases. Mas isso vem da escola, vem dessas leituras em voz alta. Nelas, você pega o ritmo das palavras, som, cor, imagem, até sabor. A leitura em voz alta leva muito a isso. Por isso que as minhas oficinas são marcadas por essa leitura, por essa música. Um tema recorrente na minha cabeça é o “Blue Monk”, do Thelonious Monk. Na minha fantasia, cada “frase” da música é uma frase que eu escrevo. Fecha-se um bloco substantivo, bem definido, ritmado. Depois entra o saxofone, a bateria, a cozinha toda, aí você solta a franga, desmunheca. Manda entrar todos os adjetivos, advérbios, tudo que te proibiram usar. Se você já foi capaz de fazer um bloco todo substantivado, você tem moral suficiente de fazer o que quiser no próximo bloco. Claro que isso é uma viagem de quem escreve. Mas eu acho que o ritmo marca muito o que escrevo, me dá uma pontuação de fato. Eu sinto isso em determinados momentos. Por exemplo, no começo do meu romance Meu querido canibal: “era uma vez um índio. E era nos anos quinhentos nos séculos das grandes navegações – e dos grandes índios”. Esse travessão para o leitor não significa nada, mas para mim significa tudo. Uma quebra, uma dissonantada à Thelonious Monk. É isso que eu gostaria de atingir.


Miles Davis 

Às vezes fico ouvindo Miles Davis tocar uma música chamada “Enigma”. Um solo maravilhoso. Se eu conseguisse amarrar isso e trazer para o mundo das palavras, eu seria o escritor mais feliz do mundo. Mas o Miles Davis me deu o título do meu primeiro livro. Um cão uivando para a lua é o Miles Davis tocando uma música chamada “My Funny Valentine”. Eu ouvindo em São Paulo com uma amiga, em uma noite de breu sem luar, bem paulistana mesmo, nos anos 1970. Comecei a ouvir aquela música e de repente minha amiga disse: “parece um cão uivando para a lua”. E eu retruquei: “não, parece um boi berrando para o sol”. Ficamos nessa discussão a noite toda. Quando saiu o romance, veio essa imagem fortíssima, porque aquele solo sustenta uma nota no ar durante um tempo sem fim, com uma densidade impressionante. É um cão uivando para a lua mesmo.

Redator de publicidade

Trabalhei numa multinacional chamada Ogilvy & Mather, que tinha comprado uma grande agência brasileira chamada Standard. O Ogilvy, dono da agência, mandava para mim um material com aulas, treinamentos para redator. Realmente, ele foi um dos maiores redatores que já houve no mundo. Eu sou de uma geração que aprendeu muito com ele e com outro cara, chamado Willian Bernbach. O Olgivy sabia de todas as regras, censuras e proibições. Mas ele também dizia que as regras existem para ser quebradas. O Bernbach dizia para os redatores dele: “leia seu texto em voz alta e morra de vergonha”. Isso já é uma aula. Lendo o texto em voz alta, você mesmo pode se corrigir, perceber onde há palavras demais, onde há uma palavra que bate como um tijolo no ouvido, algo mal empregado, uma pontuação capenga. Mas eu digo o seguinte: “leia seu texto em voz alta, morra de vergonha ou espere o aplauso”. Nem sempre o cara vai ler em voz alta e morrer de vergonha. Tem o risco de ser aplaudido.

O que o leitor busca na literatura?

É difícil determinar uma coisa só. Porque há buscas de leituras das mais variadas. Uma, muito óbvia para mim, é a questão da receita: a receita de viver, a receita da felicidade, etc. Isso é um nicho. Majoritário, até. O camarada entra na livraria e vê lá “como ser feliz em um mês”. Passa esse tempo, o cara não fica feliz, mas fica viciado naquele tipo de leitura – e continua comprando. Agora, por outro lado, há pessoas em busca de um conhecimento mais amplo, um entendimento maior deste tempo, que é um tempo confuso, complexo. Não há nada de mão única.

Leitura hoje

Há, hoje, uma mudança grande no Brasil. Eu vejo o interior, por exemplo. Eu vou ao interior da Bahia e hoje tem escola, tem ginásio, tem ônibus da escola rural levando e trazendo os alunos, tem biblioteca pública. Já há uma consciência nacional da necessidade da leitura e da sua difusão, porque creio que uma parte considerável da sociedade está finalmente compreendendo os prejuízos que nós temos com esse déficit de leitura, tão imenso. Ao longo de nossa história, nos descuidamos muito da questão da educação. Se formos comparar com a Argentina, aqui do lado, a gente leva uma surra tremenda, porque a Argentina resolveu isso na passagem do século XVIII para o XIX, eles tinham uma burguesia esclarecida que se empenhou em erradicar o analfabetismo. Nós tivemos um atraso enorme nesse sentido. Que só começa a melhorar um pouco com a vinda do D. João VI, em 1808, que traz bibliotecas, escola de ensino superior, escola de astronomia, missão artística francesa para formar os arquitetos e engenheiros brasileiros. Mas isso em 1800. Para trás, parece que não ficou nada. Um tempo perdido, um vácuo imenso. Claro, nós estamos muito atrasados nessa busca de corrigir todo esse passado, mas a verdade é que eu percebo, e que acho que todo mundo percebe, é que há um esforço sendo feito, e há uma preocupação maior com essa questão da leitura. Nesse processo, os escritores, professores e agentes públicos da área cultural passam a ter um papel bastante significativo.

Academia Brasileira de Letras

Quando me telefonaram dizendo para eu fazer a carta de ingresso na Academia – que eu fiz só porque soube que o Ferreira Gullar não iria participar, porque caso ele se candidatasse, já estaria eleito –, fiz sustentado apenas pelo fato de ser a cadeira de Moacyr Scliar, que foi um grande amigo, a ponto de frequentar um a casa do outro.Então achei que tinha tudo a ver eu me candidatar na vaga do Scliar. Só que quando cheguei lá e apresentei minha carta, exatamente cinco minutos depois de decretada aberta a vaga, eu senti o clima. A Academia já estava fechada com o Merval [Pereira, jornalista que foi eleito]. Eu estava entrando atrasado no processo. As candidaturas são pavimentadas antes, e o Merval já estava muito bem articulado naquele pedaço. Eu vi que, de cara, saiu um grupo me apoiando. Começamos então a fazer contas e percebemos que eu estava perdendo, mas por pouco. Era a segunda vez que eu me candidatava. O candidato que ganhou de mim a primeira vez, o Luiz Paulo Horta, ficou muito meu amigo. Quando entrei na segunda disputa, vi que também estava perdida, mas deixei rolar. Não é fácil perder, é muito chato. Mas, por outro lado, descobri uma coisa fantástica nesta segunda candidatura, algo do qual eu não tinha o menor conhecimento: que há uma afeição nacional pela minha pessoa e pelo meu trabalho. Fiquei comovido com isso.
Escritor não tem muita noção do alcance de sua obra. Eu, por exemplo, procuro me manter na minha anônima condição de autor que não é da mídia, que não tem poder político, não tem poder econômico – e fazer disso a minha limonada. A essa altura já não tenho nenhuma ilusão de que vou ganhar Prêmio Nobel, de que vou fazer e acontecer. O que eu quero é viver o bastante, para escrever bastante e tentar, quem sabe, me superar naquilo que eu já fiz. Um dia escrever um romance que me encante mesmo. Como diz o poeta: “que faça acordar os homens e adormecer as crianças”.

Machado de Assis 

Pergunto-me como o Brasil do século XIX pode ter gerado um autor desses? Um camarada que mal tinha o curso primário, que era órfão, filho de ex-escravos, numa cidade que, apesar de ser a capital do país, tinha uma população analfabeta – o Brasil tinha 84% de analfabetos no tempo de Machado de Assis. O orgulho do Brás Cubas é nunca ter precisado ganhar um pão com o suor do seu rosto. Eu digo: “poxa, acusaram Machado de Assis de ser um preto de alma branca, e isso aqui é uma porrada geral na história do Brasil. Isso aqui diz mais sobre nós, do que somos e do que fomos, do que muitos compêndios. Compêndios levam páginas e páginas para tentar provar isso. Aí, vou ler Dom Casmurro. Reler. Na primeira vez, você lê pelo enredo, pela história, você não sabe ler aquilo. Mas você vai ler bem mesmo depois de velho. Aí que você aprende a ler. Depois, pego a tradução fantástica do Rubens Figueiredo de Anna Kariêninna. Eu leio 800 páginas e digo “fantástico”. Tolstói pegou o século XIX inteiro e botou nesse romance. Anteviu nele até o evento do comunismo. Porém, tudo parte de um caso de adultério. Mas Machado fez melhor. Ele criou um enigma, sutil. Ele é mais artista. Claro que Tolstói é um grande romancista, como o século XIX inteiro é o século do apogeu do romance. Mas Machado era melhor. Era mais artista. Sutil. Fantástico.

Moacyr Scliar

Nós nos conhecemos na Alemanha, em 1985, em Frankfurt, a nossa tradutora era a mesma. Ele ficou na casa dela com o Antônio Callado; eu fiquei no hotel com Silviano Santiago. Era uma delegação de quatro escritores, de dia universidade, de noite biblioteca pública. No primeiro dia me botaram para falar com o Scliar na universidade de Frankfurt. Pronto, ficamos amigos para sempre. Viajamos juntos. Criamos uma relação fantástica. O Rogério Pereira, que eu conheci na Feira do Livro de Porto Alegre, em 2002, me foi apresentado pelo Scliar.
Uma das últimas vezes que o vi foi na Fliporto, de Pernambuco, que ainda era em Porto de Galinhas. Colocaram eu e o Scliar para fazer a palestra de encerramento. Foi um negócio sensacional. Tinha um tema, tinha tudo, mas o Scliar falou: “vamos esquecer esse tema”, e começou a me entrevistar. Para vocês verem como a coisa funcionava.

Livro digital

Acho que ninguém tem uma resposta. Por enquanto, o livro nunca esteve tão forte. Acredito até que as novas tecnologias estejam trazendo benefícios. Descobri recentemente uma livraria virtual que é uma grande maravilha, a Estante Virtual. Num país desse tamanho, com duas mil livrarias, é muito pouco. A Estante Virtual preenche um vazio nacional. Acabei de assinar um contrato com a Record. Antes, os contratos eram um para cada livro, um monte de páginas, e tal. Agora fizeram todos os títulos num só contrato, e está autorizado para tudo: impresso, e-book, etc. Me disseram que daqui a três meses todos estarão em formato e-book. Para nós, escritores, tudo está sendo muito bom. Estão sendo criadas outras vias, outros acessos à leitura. Pelo menos durante um bom par de anos, não acho que isso seja excludente. Eu acho que as duas formas vão marchar juntas. Há livros que só vão funcionar em papel, há livros que perfeitamente podem funcionar no virtual, a questão é muito ampla. E uma questão curiosa: acabo de ser contratado para ser curador de uma biblioteca virtual, chamada Nuvem dos Livros. Ou seja, um velho autor de livros impressos cuidando disso. Estou achando um barato porque de repente são novas informações. Para o cérebro isso é bom, quem sabe isso me ajude a driblar o alemão [Alzheimer], do qual nós todos passamos a ter um medo terrível depois de certa idade.

Rotina de escritor

Eu morava em Copacabana, com todos os barulhos do mundo, de frente para um prédio enorme, e conseguia escrever. Aí me mudei para a Serra. Minha janela dá para árvores, passarinhos cantando de manhã. Eu fiquei mais de um ano sem conseguir escrever uma linha ali. Consegui as condições ideais para um escritor: silêncio, exílio e astúcia, na receita do James Joyce. Tive o silêncio e o exílio, mas faltou a astúcia, e isso você não compra. Tem que estar dentro de você. Aí, percebi o seguinte: naquele meu escritório de Copacabana tinha uma porta, uma parede falsa, e eu olhava para dentro de casa. Nesse escritório da Serra, eu olho para fora. Então, eu tinha que trazer esse olhar de fora para dentro de mim. Isso me criou uma complicação.
Às vezes, tenho períodos em que escrevo todos os dias. Mas agora interrompi um romance. E não vou correr para entregá-lo e cumprir prazos. Não tenho mais a ansiedade do livro na prateleira. É duro, porque corre-se o risco de passar muito tempo sem escrever e desaparecer. Como muitos amigos meus desapareceram, grandes escritores da minha geração. Eu já enfrentei empregos diários, de começar cedo, terminar tarde, tempos de boemia, muito cigarro, muita birita, muita pancadaria. Mas sempre consegui escrever. Até como forra. Hoje já não tenho esse pique. Recentemente eu escrevia um parágrafo, achava que estava legal e não escrevia mais nada para não estragar. Vocês sabem que baiano tem fama de preguiçoso.

Insight 

Uma noite eu tive um sonho – isso já havia me acontecido, ter um sonho e escrever um romance, que foi Um táxi para Viena d’Áustria. Este livro nasceu de um sonho. Aí, agora tive outro sonho. Meu inconsciente me tirou da letargia, me tirou do zero, trabalhou por mim enquanto eu dormia. Mas não é tão fácil assim. Depois de 11 romances publicados e um livro de contos, fica mais difícil. Escrever, com o passar do tempo, fica mais difícil. Deveria ser mais fácil, mas não é. Até você vencer a autocensura, o medo de escrever – e escrever besteira –, isso leva tempo. O que é um grande barato também, porque se fosse fácil, não tinha graça. O [Ignácio Brandão] Loyola outro dia me escreveu: “poxa, será que eu ainda tenho o que dizer?” Eu disse: “Ih, Loyola, não me pergunta isso, não. Eu tô me fazendo a mesma pergunta”.

Acesso ao livro

Claro que o ideal seria se o livro fosse barato e pudesse chegar a todo mundo. Iríamos acabar ganhando mais. Eu vejo quando o governo faz uma compra grande de livros, em pacotões, e o livro que custa trinta reais passa a custar dois reais. E assim mesmo, rende um bom direito autoral, por causa do volume. Mesmo sobre dois reais, ainda é lucrativo. Eu não sei como se resolve isso. A dimensão do país também complica, porque a distribuição também é cara. Mandar livro do Paraná para o Rio de Janeiro é uma coisa complicada. Aí, tem que devolver, tem todo um processo, os intermediários também. Por exemplo, a Record criou uma alternativa para o livro caro, que foi a BestBolso. Eu estou lá, com Essa terra. Muitas livrarias se recusam a vender esses livros porque são baratos. É pouco lucrativo. Quer dizer, a editora tem que tirar uma edição normal também. Todas as editoras estão fazendo isso, buscando alternativas de mercado. Mas acho que nós, escritores, não temos competência para isso. Pode ser que um ou outro tenha talento de economista, de administrador, mas acho que a maioria de nós não tem. Não conseguiríamos gerir toda essa máquina. Mal sabemos resolver nossos próprios textos.

Edições baratas

Sempre pensei o seguinte: por que no Brasil não se faz livro com papel jornal, capa menos sofisticada, etc? Já me explicaram que não funciona. Já foi feito e não deu certo. Porque no fundo, também, a gente vive nessa grande vitrine capitalista, onde o que funciona é aquilo que é atrativo, aquilo que é caro, assim como o automóvel, o tênis, tudo é caro, e é feito para uma determinada classe.


Olho (Torres):

“O que eu quero é viver o bastante, para escrever bastante e tentar, quem sabe, me superar naquilo que eu já fiz.”

“Não tenho mais a ansiedade do livro na prateleira.”

“Miles Davis me deu o título do meu primeiro livro. Um cão uivando para a lua é o Miles Davis tocando uma música chamada 'My Funny Valentine.'”


quarta-feira, 15 de junho de 2011

Na PUC, Antônio Torres critica cultura dos best-sellers

O escritor Antônio Torres, reconhecido no mundo literário pelo conjunto de sua obra com o Prêmio Machado de Assis em 2000, foi o convidado da vez na segunda rodada do ciclo de palestras “De lá para Cátedra”. Organizado pela Cátedra Unesco de Leitura e pelo Departamento de Letras da PUC-Rio, o encontro traz, todo o mês, um dos nomes da literatura brasileira contemporânea. O romance mais conhecido de Torres, Essa terra, é uma obra que gerou uma trilogia com a adição de O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha. Essa terra, inclusive, foi traduzido para mais de 10 línguas. Segundo o professor Júlio César Valadão, diretor do Departamento de Letras, que acompanhou o autor na mesa promovida pela Cátedra, o escritor, “mais que um brasileiro, é um homem do mundo”.

Durante o evento, o escritor relembrou a dura infância no interior da Bahia e compartilhou suas primeiras memórias sobre o aprendizado da escrita e o amor pela palavra.
– Eu nunca vou esquecer a imagem da minha mãe ao chegar em casa com um objeto não identificado . Ela chamava aquilo de ABC. Quando ela me mostrou aquilo, foi uma imagem da qual eu nunca esqueci, um encantamento – conta o escritor.

Em entrevista ao Portal, Antônio Torres elogiou a internet e os novos escritores que estão surgindo na rede através de blogs, mas criticou os bestsellers. O literato acredita que esse tipo de livro é fruto da globalização e diminui a penetração das obras literárias nacionais no imaginário do leitor brasileiro.

Portal PUC-Rio Digital: Como o senhor analisa o cenário atual da produção literária no Brasil?

Antônio Torres: Hoje há tantos jovens escritores que eu não consigo acompanhar essas publicações, mesmo sendo do ramo. Isso é um fenômeno curioso pois, ao contrário do que se imaginava, o interesse pela literatura aumentou entre os jovens. O interesse de praticá-la, de ser escritor. Não há oficina literária no Brasil que fique sem participantes. Em palestras de escritores, é onde mais se vê, pois tem muita gente querendo escrever, o que é um bem curioso. A internet está por trás disso também, pois todo o jovem escritor tem um blog. O blog é o palanque desse jovem, e ele acaba criando uma comunidade de leitores através desse blog. Esses blogs são tantos e variados quanto as regiões e os estados. Hoje, não sabemos mais quem é o jovem escritor. Ele tem 18 anos? 30? Há vários jovens escritores que têm várias idades. É muito curioso o que está acontecendo. Há o surgimento de um novo escritor, que é muito interessante de se observar e ficar atento para ver até onde eles irão. Muitos desses escritores, inclusive, conseguem quebrar as barreiras da edição e entrar em grandes editoras enquanto outros ficam no universo da internet, o que não significa que não tenham expressão. O momento é bem animador, pois o interesse pela literatura e pela criação literária cresce muito entre os jovens.

Portal: Quando entrevistamos Cristovão Tezza, no último encontro da Cátedra, o escritor ressaltou a proximidade que a internet gera entre o autor e o leitor. O senhor concorda?

A.T: Eu tenho o meu site. Nesse site tem o meu e-mail e meus leitores me enviam muitas perguntas. Muitos deles são estudantes, gente que está estudando meus livros e normalmente eles querem saber sobre alguma obra específica. Como eu viajo muito, faço muitas palestras e participo de oficinas literárias por todo o país. Acabo falando com jovens que querem escrever e pedem conselhos, por exemplo. Eu realmente tenho uma grande relação com os leitores pela internet.

Portal: Qual a sua opinião sobre a influência que os bestsellers têm na nossa cultura? Acredita que eles têm poder de criar novos leitores?

A.T: Essa é uma questão mais complexa. Eu acredito que o fenômeno do bestseller está muito ligado à globalização. São livros que parecem passar por um centro de inteligência que determina que tipo de livro será bestseller no mundo inteiro. Pode ter certeza que o bestseller aqui encontra mercado em todos os lugares. Isso, para as literaturas nacionais, está sendo um problema muito sério, pois o Brasil não está inserido no imaginário global. Corremos risco de, por não estarmos inseridos nesse imaginário, não se inserir no imaginário do leitor brasileiro. Daí a importância do engajamento dos autores, de participar de eventos literários, nas universidades, nas feiras de livros e nas festas literárias. Ainda é muito pequena essa fatia de mercado, ainda estamos dependentes dos professores de português e de literatura brasileira, pois esses são os nossos leitores. São bons leitores e me repassam para seus alunos. Já houve mais interesse pela literatura brasileira. A minha geração toda foi muito bem publicada lá fora: João Ubaldo Pinheiro, Ignácio de Loyola Brandão, Márcio Souza etc. No entanto, há um recuo, nesse sentido, quando entra a globalização. As literaturas de todos os países do mundo estão sofrendo por isso, pois esse produto que se torna bestseller mundial não é, necessariamente, literário, mas um produto de mercado. Ele já vem com uma cara de mercado. Eu tenho a impressão de que a literatura em si, no mundo, está ficando restrita a um grupo bem pequeno. Mas ainda bem que temos esse grupo, pois ele ainda nos sustenta.

Portal: O senhor tem alguma crítica que faria ao ensino de língua portuguesa e de literatura brasileira no Brasil?

A.T: Eu não posso criticar, pois não conheço profundamente qual a situação real. O que eu costumo dizer é que eu gostaria que as escolas tivessem o mesmo empenho das escolas da minha infância. Eu tive uma infância rural, no entanto, minha escola formou meu imaginário e meu mundo de leitura e de escrita. Nessa escola, eu tive uma professora que amava pôr os alunos para ler em voz alta e depois escrever. Eu não sei como acontece hoje, mas eu espero que a escola esteja tendo esse cuidado com os alunos. O estudante, logo que entra na escola, e se habitua a ler em voz alta, passa a descobrir o ritmo e a cor das palavras. Até você descobrir que a palavra tem cor, tem cheiro, tem ritmo, tem imagem, tem som etc. Isso é uma percepção que vai marcar o aluno pelo resto da vida. Isso vai fazê-lo buscar sempre a sonoridade que a poesia e a prosa trazem, vai fazê-lo descobrir o que é estilo literário. Hoje, talvez, esteja havendo uma preocupação maior com a questão da leitura. Houve um vácuo nessa questão, era o país das cruzinhas: bastava fazer uma cruz na pergunta que ela estava respondida, não era preciso escrever a resposta. Curiosamente, acho que a internet está devolvendo a necessidade da escrita. O Brasil é um país ágrafo, em que a comunicação de massa levou as pessoas a se afastarem muito da escrita, essa necessidade retorna via internet. Mesmo que estejamos desenvolvendo um novo dialeto nesse meio, o internetês, não faz mal. O próprio usuário da internet percebe que as coisas mudam quando ele não está na internet, é um ato de instância. Nesse sentido, a evolução da tecnologia tem beneficiado a escrita.

Nota do Blog: Entrevista concedida a Daniel Cavalcanti para o portal da PUC-RJ.