sábado, 5 de novembro de 2011

Antonio Torres - Um escritor na biblioteca


Antônio Torres, quinto convidado do projeto “Um Escritor na Biblioteca”, relembra sua infância com livros no interior da Bahia, fala de seu processo de criação, da influência do jazz em sua literatura e da relação de amizade que tinha com Moacyr Scliar, que morreu no começo deste ano

Não são poucos os escritores que creditam sua entrada na literatura a algum fato pontual ocorrido em suas vidas. Dalton Trevisan, por exemplo, “virou” escritor depois de um acidente, que quase o matou, sofrido na fábrica de vidros de seu pai. J.D. Salinger, que lutou na Segunda Guerra Mundial, teve sua trajetória como escritor marcada pelo desembarque na Normandia, no Dia D.

Antônio Torres não teve nenhuma experiência traumática, mas lembra-se bem o dia em que nasceu como ficcionista. Nascido em 1940, em um povoado da Bahia à época chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), Torres virou escritor ainda na infância, quando foi desafiado por uma professora a escrever uma redação sobre “um dia de chuva”.

“O lugar era chegado numa seca. Escrever sobre chuva exigia muita imaginação. Eu acho que foi nesse dia que ela fez de mim um ficcionista”, disse o autor durante o bate-papo “Um Escritor na Biblioteca”, promovido pela Biblioteca Pública do Paraná.
Apesar da relação estreita com o Nordeste brasileiro e o modo de vida sertanejo, Antônio Torres, no entanto, nunca deixou que esse traço biográfico fizesse dele um escritor monotemático, guiado apenas por sua biografia. Seu primeiro romance, Um cão uivando para a lua, não é um livro sobre o Brasil profundo, mas sim uma obra que transita com a mesma desenvoltura por cenários rurais e urbanos.

Seu grande sucesso veio em 1976, quando publicou Essa terra, narrativa de fortes pinceladas autobiográficas que aborda a questão do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas grandes metrópoles do Sul e Sudeste.

Em 2000, Torres ganhou o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. Em 2001, foi o vencedor, junto com Salim Miguel, do Prêmio Zaffari & Bourbon, da 9ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, por seu romance Meu querido canibal.

Aos 70 anos e depois de onze romances, Torres ainda persegue o livro perfeito. “A essa altura já não tenho nenhuma ilusão de que vou ganhar Prêmio Nobel, de que vou fazer e acontecer. O que quero é viver mais para escrever bastante e tentar, quem sabe, me superar naquilo que eu já fiz.” Confira os principais trechos da conversa, mediada pelo jornalista Luiz Andrioli.

Como nasce o leitor

Eu vim de um interior em que o interior de hoje seria impensável naquele tempo. Era um lugar sem notícias das terras civilizadas, como cantava o Luiz Gonzaga, rei do baião. Uma terra sem livros. Ali, naquele lugar, não existia nem escola. Existia um professor particular que era mestre mais na palmatória do que nas letras. Esse homem virou uma celebridade no lugar. O nome dele era Laudelino Mendonça, conhecido como “Pai Lau”. Porém, eu não fui aluno dele. Eu tive a sorte de pegar a primeira escola pública que apareceu no lugar, já na segunda metade dos anos 1940. Era a escola – até hoje muito criticada – que vinha no bojo dos projetos ufanistas do Governo Vargas. Era uma escola criada pelo Villa-Lobos, na verdade. A marca dessa escola era a cantoria, diariamente, de hinos e a leitura de poemas patrióticos. Isso me marcou muito, porque quando cheguei à escola – eu nasci na roça, num mundo rural completamente isolado, diferente do que ele é hoje – já estava semialfabetizado pela minha mãe. Um dia ela chegou em casa, num dia de feira, e apresentou para o filho mais velho um objeto não identificado. Que era um ABC. É a imagem mais forte que eu tenho da minha infância: eu sentado no chão, onde estava brincando de bola de gude, e minha mãe chegando com aquele presente. Abre e começa a me mostrar o que era o ABC. As letras. Eu via aquele conjunto enigmático diante de mim e fiquei fascinado. Pela descrição que ela fazia das letras, percebi que cada letra tinha um desenho e cada desenho criava para ela uma personalidade própria, um nome. Fiquei encantado, maravilhado. Ela percebeu e, no embalo, já passou para o “be-a-bá”, para a formação de palavras, começou a me explicar que aquilo dava nome a tudo que havia no mundo. Tudo começava ali, naquele ABC.

Influência da primeira professora

Minha mãe fazia parte do projeto de cataquese elaborado por uma professora que tinha vindo de fora para abrir a primeira escola pública da minha cidade, que por sinal, naquela época, ainda não contava com alunos, porque os pais não queriam que os filhos fossem estudar. As filhas mulheres para não aprender a escrever cartas para os namorados. E os filhos homens para não desfalcar a mão de obra na lavoura. Era um drama para a professora. Ela teve que fazer toda uma catequese junto às mães. Esse ABC que minha mãe me deu já fazia parte desse projeto. Então, quando minha mãe me levou para a professora, ela deu graças a Deus, tinha um aluno já adiantado no processo de alfabetização. Aí, nesse encanto, tome poema patriótico, tome leitura em voz alta – que são minhas oficinas literárias até hoje: são essas leituras que eu tive na escola primária. Depois de velho que eu percebi o quanto foram importantes aquelas leituras em voz alta. Eu sei que no primeiro sete de setembro, ela me pôs num palanque na frente da escola, numa praça empoeirada, entupida de gente, eu tremendo. Calça curta azul marinho, uma fitinha verde e amarela, uma bandeira do Brasil numa mão e Castro Alves na outra! “Auriverde pendão de minha terra/ que a brisa do Brasil beija e balança/ estandarte que à luz do sol encerra/ as promessas divinas da Esperança...” Eu achando que ia cair de tanto tremer. Quando olho, o povo chorando. Rapaz, eu acho que é por isso que até hoje faço palestra, porque esse negócio tem uma resposta. O povo chorava, o povo não entendia o que era auriverde, o que era pendão da esperança, estandarte muito menos, mas estava achando um grande barato aquele garoto da roça ter tido a coragem de decorar todas aquelas palavras bonitas. Era que nem a missa em latim, ninguém entendia nada, mas era bonito demais. Depois que traduziram a missa, ficou sem graça. “Introire altare Dei” é muito mais bonito que “Introduza o altar de Deus”. Então, era essa coisa da força do Castro Alves, o poeta romântico, que certamente pouco se entendia, mas não tinha importância. Entender aquilo era uma questão também de licença poética.

José de Alencar

Uma das lembranças que tenho, é de minha professora Tereza chegando e abrindo as janelas da escola, aquele solão de sertão, então ela põe os livros na mesa, coloca os meninos em fila e abre o livro, chamado “Seleta escolar” – uma antologia de contos, crônicas, poemas e trechos de romances. Ela abria e mandava um menino ler. Isso me marcou muito também. Abria-se: “verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba”. Começo da “Iracema”, de José de Alencar, que é um poema em prosa, do qual eu nunca esqueci. Imaginem vocês o que era a leitura desse trecho, falando desses verdes mares, para um menino que vivia num lugar que não havia nem rio, quanto mais verdes mares. O que era uma jandaia? Uma carnaúba? Passei noites e noites sonhando com os verdes mares. Quando eu fui a Fortaleza pela primeira vez, colocaram-me num hotel na beira-mar. Eu abri as cortinas e vi os verdes mares. E dos verdes mares eu vi a professora saindo, com aquele livro na mão. Eu fui descobrir o que era uma carnaúba no ano passado, no Salão do Livro do Piauí, quando o Cineas Santos, que é o escritor local que organiza o Salão, foi me levar para conhecer a cidade e me mostrou um pé de carnaúba, que é uma árvore frondosa, imensa. Eu olhei e disse: “bom dia, dona carnaúba, a sua fama vem de longe”. E a carnaúba não se moveu, orgulhosa de si. Então, as primeiras leituras foram isso, em uma terra que não tinha biblioteca, não tinha livros, não tinha nada.

Nasce o escritor

Na verdade, o método da mina professora era uma oficina literária. Hoje eu sei. Era fantástico. Ela começava com a leitura em voz alta, depois ela lia para a gente copiar. Depois, tinha o ditado, ela ditava, e depois vinha corrigir. Depois ela ensinava a fazer cartas. Tinha um começo determinado: “inesquecível amigo, o motivo destas mal traçadas linhas é dar-te as minhas notícias, e ao mesmo tempo, receber as tuas. Como tem passado? Bem, não é?” O começo estava armado. Depois, ela ensinava a fazer composição escolar. Os temas eram ligados à nossa realidade. À casa. À roça. Um dia ela pegou pesado. O tema seria “um dia de chuva”. O lugar era chegado numa seca. Escrever sobre chuva exigia muita imaginação. Eu acho que foi nesse dia que ela fez de mim um ficcionista. Fui desafiado. Era muito seco aquele lugar.

Literatura ritmada

O ritmo marca muito minhas frases. Mas isso vem da escola, vem dessas leituras em voz alta. Nelas, você pega o ritmo das palavras, som, cor, imagem, até sabor. A leitura em voz alta leva muito a isso. Por isso que as minhas oficinas são marcadas por essa leitura, por essa música. Um tema recorrente na minha cabeça é o “Blue Monk”, do Thelonious Monk. Na minha fantasia, cada “frase” da música é uma frase que eu escrevo. Fecha-se um bloco substantivo, bem definido, ritmado. Depois entra o saxofone, a bateria, a cozinha toda, aí você solta a franga, desmunheca. Manda entrar todos os adjetivos, advérbios, tudo que te proibiram usar. Se você já foi capaz de fazer um bloco todo substantivado, você tem moral suficiente de fazer o que quiser no próximo bloco. Claro que isso é uma viagem de quem escreve. Mas eu acho que o ritmo marca muito o que escrevo, me dá uma pontuação de fato. Eu sinto isso em determinados momentos. Por exemplo, no começo do meu romance Meu querido canibal: “era uma vez um índio. E era nos anos quinhentos nos séculos das grandes navegações – e dos grandes índios”. Esse travessão para o leitor não significa nada, mas para mim significa tudo. Uma quebra, uma dissonantada à Thelonious Monk. É isso que eu gostaria de atingir.


Miles Davis 

Às vezes fico ouvindo Miles Davis tocar uma música chamada “Enigma”. Um solo maravilhoso. Se eu conseguisse amarrar isso e trazer para o mundo das palavras, eu seria o escritor mais feliz do mundo. Mas o Miles Davis me deu o título do meu primeiro livro. Um cão uivando para a lua é o Miles Davis tocando uma música chamada “My Funny Valentine”. Eu ouvindo em São Paulo com uma amiga, em uma noite de breu sem luar, bem paulistana mesmo, nos anos 1970. Comecei a ouvir aquela música e de repente minha amiga disse: “parece um cão uivando para a lua”. E eu retruquei: “não, parece um boi berrando para o sol”. Ficamos nessa discussão a noite toda. Quando saiu o romance, veio essa imagem fortíssima, porque aquele solo sustenta uma nota no ar durante um tempo sem fim, com uma densidade impressionante. É um cão uivando para a lua mesmo.

Redator de publicidade

Trabalhei numa multinacional chamada Ogilvy & Mather, que tinha comprado uma grande agência brasileira chamada Standard. O Ogilvy, dono da agência, mandava para mim um material com aulas, treinamentos para redator. Realmente, ele foi um dos maiores redatores que já houve no mundo. Eu sou de uma geração que aprendeu muito com ele e com outro cara, chamado Willian Bernbach. O Olgivy sabia de todas as regras, censuras e proibições. Mas ele também dizia que as regras existem para ser quebradas. O Bernbach dizia para os redatores dele: “leia seu texto em voz alta e morra de vergonha”. Isso já é uma aula. Lendo o texto em voz alta, você mesmo pode se corrigir, perceber onde há palavras demais, onde há uma palavra que bate como um tijolo no ouvido, algo mal empregado, uma pontuação capenga. Mas eu digo o seguinte: “leia seu texto em voz alta, morra de vergonha ou espere o aplauso”. Nem sempre o cara vai ler em voz alta e morrer de vergonha. Tem o risco de ser aplaudido.

O que o leitor busca na literatura?

É difícil determinar uma coisa só. Porque há buscas de leituras das mais variadas. Uma, muito óbvia para mim, é a questão da receita: a receita de viver, a receita da felicidade, etc. Isso é um nicho. Majoritário, até. O camarada entra na livraria e vê lá “como ser feliz em um mês”. Passa esse tempo, o cara não fica feliz, mas fica viciado naquele tipo de leitura – e continua comprando. Agora, por outro lado, há pessoas em busca de um conhecimento mais amplo, um entendimento maior deste tempo, que é um tempo confuso, complexo. Não há nada de mão única.

Leitura hoje

Há, hoje, uma mudança grande no Brasil. Eu vejo o interior, por exemplo. Eu vou ao interior da Bahia e hoje tem escola, tem ginásio, tem ônibus da escola rural levando e trazendo os alunos, tem biblioteca pública. Já há uma consciência nacional da necessidade da leitura e da sua difusão, porque creio que uma parte considerável da sociedade está finalmente compreendendo os prejuízos que nós temos com esse déficit de leitura, tão imenso. Ao longo de nossa história, nos descuidamos muito da questão da educação. Se formos comparar com a Argentina, aqui do lado, a gente leva uma surra tremenda, porque a Argentina resolveu isso na passagem do século XVIII para o XIX, eles tinham uma burguesia esclarecida que se empenhou em erradicar o analfabetismo. Nós tivemos um atraso enorme nesse sentido. Que só começa a melhorar um pouco com a vinda do D. João VI, em 1808, que traz bibliotecas, escola de ensino superior, escola de astronomia, missão artística francesa para formar os arquitetos e engenheiros brasileiros. Mas isso em 1800. Para trás, parece que não ficou nada. Um tempo perdido, um vácuo imenso. Claro, nós estamos muito atrasados nessa busca de corrigir todo esse passado, mas a verdade é que eu percebo, e que acho que todo mundo percebe, é que há um esforço sendo feito, e há uma preocupação maior com essa questão da leitura. Nesse processo, os escritores, professores e agentes públicos da área cultural passam a ter um papel bastante significativo.

Academia Brasileira de Letras

Quando me telefonaram dizendo para eu fazer a carta de ingresso na Academia – que eu fiz só porque soube que o Ferreira Gullar não iria participar, porque caso ele se candidatasse, já estaria eleito –, fiz sustentado apenas pelo fato de ser a cadeira de Moacyr Scliar, que foi um grande amigo, a ponto de frequentar um a casa do outro.Então achei que tinha tudo a ver eu me candidatar na vaga do Scliar. Só que quando cheguei lá e apresentei minha carta, exatamente cinco minutos depois de decretada aberta a vaga, eu senti o clima. A Academia já estava fechada com o Merval [Pereira, jornalista que foi eleito]. Eu estava entrando atrasado no processo. As candidaturas são pavimentadas antes, e o Merval já estava muito bem articulado naquele pedaço. Eu vi que, de cara, saiu um grupo me apoiando. Começamos então a fazer contas e percebemos que eu estava perdendo, mas por pouco. Era a segunda vez que eu me candidatava. O candidato que ganhou de mim a primeira vez, o Luiz Paulo Horta, ficou muito meu amigo. Quando entrei na segunda disputa, vi que também estava perdida, mas deixei rolar. Não é fácil perder, é muito chato. Mas, por outro lado, descobri uma coisa fantástica nesta segunda candidatura, algo do qual eu não tinha o menor conhecimento: que há uma afeição nacional pela minha pessoa e pelo meu trabalho. Fiquei comovido com isso.
Escritor não tem muita noção do alcance de sua obra. Eu, por exemplo, procuro me manter na minha anônima condição de autor que não é da mídia, que não tem poder político, não tem poder econômico – e fazer disso a minha limonada. A essa altura já não tenho nenhuma ilusão de que vou ganhar Prêmio Nobel, de que vou fazer e acontecer. O que eu quero é viver o bastante, para escrever bastante e tentar, quem sabe, me superar naquilo que eu já fiz. Um dia escrever um romance que me encante mesmo. Como diz o poeta: “que faça acordar os homens e adormecer as crianças”.

Machado de Assis 

Pergunto-me como o Brasil do século XIX pode ter gerado um autor desses? Um camarada que mal tinha o curso primário, que era órfão, filho de ex-escravos, numa cidade que, apesar de ser a capital do país, tinha uma população analfabeta – o Brasil tinha 84% de analfabetos no tempo de Machado de Assis. O orgulho do Brás Cubas é nunca ter precisado ganhar um pão com o suor do seu rosto. Eu digo: “poxa, acusaram Machado de Assis de ser um preto de alma branca, e isso aqui é uma porrada geral na história do Brasil. Isso aqui diz mais sobre nós, do que somos e do que fomos, do que muitos compêndios. Compêndios levam páginas e páginas para tentar provar isso. Aí, vou ler Dom Casmurro. Reler. Na primeira vez, você lê pelo enredo, pela história, você não sabe ler aquilo. Mas você vai ler bem mesmo depois de velho. Aí que você aprende a ler. Depois, pego a tradução fantástica do Rubens Figueiredo de Anna Kariêninna. Eu leio 800 páginas e digo “fantástico”. Tolstói pegou o século XIX inteiro e botou nesse romance. Anteviu nele até o evento do comunismo. Porém, tudo parte de um caso de adultério. Mas Machado fez melhor. Ele criou um enigma, sutil. Ele é mais artista. Claro que Tolstói é um grande romancista, como o século XIX inteiro é o século do apogeu do romance. Mas Machado era melhor. Era mais artista. Sutil. Fantástico.

Moacyr Scliar

Nós nos conhecemos na Alemanha, em 1985, em Frankfurt, a nossa tradutora era a mesma. Ele ficou na casa dela com o Antônio Callado; eu fiquei no hotel com Silviano Santiago. Era uma delegação de quatro escritores, de dia universidade, de noite biblioteca pública. No primeiro dia me botaram para falar com o Scliar na universidade de Frankfurt. Pronto, ficamos amigos para sempre. Viajamos juntos. Criamos uma relação fantástica. O Rogério Pereira, que eu conheci na Feira do Livro de Porto Alegre, em 2002, me foi apresentado pelo Scliar.
Uma das últimas vezes que o vi foi na Fliporto, de Pernambuco, que ainda era em Porto de Galinhas. Colocaram eu e o Scliar para fazer a palestra de encerramento. Foi um negócio sensacional. Tinha um tema, tinha tudo, mas o Scliar falou: “vamos esquecer esse tema”, e começou a me entrevistar. Para vocês verem como a coisa funcionava.

Livro digital

Acho que ninguém tem uma resposta. Por enquanto, o livro nunca esteve tão forte. Acredito até que as novas tecnologias estejam trazendo benefícios. Descobri recentemente uma livraria virtual que é uma grande maravilha, a Estante Virtual. Num país desse tamanho, com duas mil livrarias, é muito pouco. A Estante Virtual preenche um vazio nacional. Acabei de assinar um contrato com a Record. Antes, os contratos eram um para cada livro, um monte de páginas, e tal. Agora fizeram todos os títulos num só contrato, e está autorizado para tudo: impresso, e-book, etc. Me disseram que daqui a três meses todos estarão em formato e-book. Para nós, escritores, tudo está sendo muito bom. Estão sendo criadas outras vias, outros acessos à leitura. Pelo menos durante um bom par de anos, não acho que isso seja excludente. Eu acho que as duas formas vão marchar juntas. Há livros que só vão funcionar em papel, há livros que perfeitamente podem funcionar no virtual, a questão é muito ampla. E uma questão curiosa: acabo de ser contratado para ser curador de uma biblioteca virtual, chamada Nuvem dos Livros. Ou seja, um velho autor de livros impressos cuidando disso. Estou achando um barato porque de repente são novas informações. Para o cérebro isso é bom, quem sabe isso me ajude a driblar o alemão [Alzheimer], do qual nós todos passamos a ter um medo terrível depois de certa idade.

Rotina de escritor

Eu morava em Copacabana, com todos os barulhos do mundo, de frente para um prédio enorme, e conseguia escrever. Aí me mudei para a Serra. Minha janela dá para árvores, passarinhos cantando de manhã. Eu fiquei mais de um ano sem conseguir escrever uma linha ali. Consegui as condições ideais para um escritor: silêncio, exílio e astúcia, na receita do James Joyce. Tive o silêncio e o exílio, mas faltou a astúcia, e isso você não compra. Tem que estar dentro de você. Aí, percebi o seguinte: naquele meu escritório de Copacabana tinha uma porta, uma parede falsa, e eu olhava para dentro de casa. Nesse escritório da Serra, eu olho para fora. Então, eu tinha que trazer esse olhar de fora para dentro de mim. Isso me criou uma complicação.
Às vezes, tenho períodos em que escrevo todos os dias. Mas agora interrompi um romance. E não vou correr para entregá-lo e cumprir prazos. Não tenho mais a ansiedade do livro na prateleira. É duro, porque corre-se o risco de passar muito tempo sem escrever e desaparecer. Como muitos amigos meus desapareceram, grandes escritores da minha geração. Eu já enfrentei empregos diários, de começar cedo, terminar tarde, tempos de boemia, muito cigarro, muita birita, muita pancadaria. Mas sempre consegui escrever. Até como forra. Hoje já não tenho esse pique. Recentemente eu escrevia um parágrafo, achava que estava legal e não escrevia mais nada para não estragar. Vocês sabem que baiano tem fama de preguiçoso.

Insight 

Uma noite eu tive um sonho – isso já havia me acontecido, ter um sonho e escrever um romance, que foi Um táxi para Viena d’Áustria. Este livro nasceu de um sonho. Aí, agora tive outro sonho. Meu inconsciente me tirou da letargia, me tirou do zero, trabalhou por mim enquanto eu dormia. Mas não é tão fácil assim. Depois de 11 romances publicados e um livro de contos, fica mais difícil. Escrever, com o passar do tempo, fica mais difícil. Deveria ser mais fácil, mas não é. Até você vencer a autocensura, o medo de escrever – e escrever besteira –, isso leva tempo. O que é um grande barato também, porque se fosse fácil, não tinha graça. O [Ignácio Brandão] Loyola outro dia me escreveu: “poxa, será que eu ainda tenho o que dizer?” Eu disse: “Ih, Loyola, não me pergunta isso, não. Eu tô me fazendo a mesma pergunta”.

Acesso ao livro

Claro que o ideal seria se o livro fosse barato e pudesse chegar a todo mundo. Iríamos acabar ganhando mais. Eu vejo quando o governo faz uma compra grande de livros, em pacotões, e o livro que custa trinta reais passa a custar dois reais. E assim mesmo, rende um bom direito autoral, por causa do volume. Mesmo sobre dois reais, ainda é lucrativo. Eu não sei como se resolve isso. A dimensão do país também complica, porque a distribuição também é cara. Mandar livro do Paraná para o Rio de Janeiro é uma coisa complicada. Aí, tem que devolver, tem todo um processo, os intermediários também. Por exemplo, a Record criou uma alternativa para o livro caro, que foi a BestBolso. Eu estou lá, com Essa terra. Muitas livrarias se recusam a vender esses livros porque são baratos. É pouco lucrativo. Quer dizer, a editora tem que tirar uma edição normal também. Todas as editoras estão fazendo isso, buscando alternativas de mercado. Mas acho que nós, escritores, não temos competência para isso. Pode ser que um ou outro tenha talento de economista, de administrador, mas acho que a maioria de nós não tem. Não conseguiríamos gerir toda essa máquina. Mal sabemos resolver nossos próprios textos.

Edições baratas

Sempre pensei o seguinte: por que no Brasil não se faz livro com papel jornal, capa menos sofisticada, etc? Já me explicaram que não funciona. Já foi feito e não deu certo. Porque no fundo, também, a gente vive nessa grande vitrine capitalista, onde o que funciona é aquilo que é atrativo, aquilo que é caro, assim como o automóvel, o tênis, tudo é caro, e é feito para uma determinada classe.


Olho (Torres):

“O que eu quero é viver o bastante, para escrever bastante e tentar, quem sabe, me superar naquilo que eu já fiz.”

“Não tenho mais a ansiedade do livro na prateleira.”

“Miles Davis me deu o título do meu primeiro livro. Um cão uivando para a lua é o Miles Davis tocando uma música chamada 'My Funny Valentine.'”


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Conduzindo Mr. Audálio


A bienal do livro das Alagoas acabou no fim, mas certamente não foi o “the end”. Como sugere o próprio nome, daqui a dois anos haverá outra, tão boa quanto esta, apesar dos contratempos previstos nesses eventos de grande concentração de público. Havia de tudo um monte: gente importante, gente desimportante, gente anônima, e até indignos em busca do apreço perdido. A criançada fez a festa, mesclando brincadeira e cultura.

Os atores foram muitos e plurais. Atrações para todos os gostos, do cordel (que não era encantado) aos clássicos gregos; dos fardões da ABL aos simples principiantes. Palestra para pretendente a escritor, professor, jornalista, enfermeiro, historiador, padre ou aprendiz de cangaceiro.

Melhor escolha não poderia ser do que Audálio Dantas para patrono dessa bienal (ou “patrimônio”, como disse um jovem locutor do interior). Quem não conhece a vida pregressa desse cidadão, devo informar, sem incorrer no puxa-saquismo, que ele é uma das pessoas mais íntegras que já conheci, cuja democracia brasileira deve muito a este alagoano, que saiu pequeno da pequena Tanque d’Arca, sua terra natal, para reescrever a História do Brasil.

Jornalista, escritor, ex-coroinha, devoto de Padre Cícero Romão Batista, lulista convicto desde as históricas greves do ABC, escreveu a infância de Lula, de Maurício de Souza, Graciliano Ramos, Ziraldo, Rachel de Queiroz, Ruth Rocha (escreveu tanto sobre infância de gente importante que o Vaticano quer contratá-lo para escrever a “Infância de Jesus Cristo”) sobre o chão de Graciliano, sobre jornalismo e agora está prestes a lançar, pela Record, o livro-bomba sobre Vladimir Herzog, o Vlado da Clarice e de muita gente boa - inclusive meu irmão -, que morreu de tanto apanhar dos carniceiros revolucionários de 1964. Nesse episódio de triste lembrança, Audálio meteu a cara na frente das baionetas exigindo justiça, sem medo de se tornar mais um dos “suicidas” da Ditadura. Só por isso ele já merecia toda nossa devoção, mas só arrefeceu o brado libertário quando os militares se curvaram à Lei de Anistia Política, em 1979. 

Marido exemplar, pai carinhoso e amigo leal, que mais qualidades podem faltar a um ser humano? Por sua amizade, os alagoanos puderam ouvir os midiáticos Fernando Morais e Ricardo Kotscho, uns deuses do jornalismo brasileiro, cujas agendas vivem lotadas de compromissos. Foi por amizade que Fernando Morais desistiu de viajar para Recife de avião, no domingo, para encarar os perigos da estrada, na segunda-feira, por uma BR-101 totalmente conturbada pela duplicação. E só fez uma exigência: carro com ar condicionado. Qualquer carro. Tão diferente desses e dessas globais que só aceitam tratamento “roliudiano”. Ricardo Kotscho e sua consorte (ou sem sorte mesmo) Mara, que também voltariam no domingo, adiaram para o dia seguinte, e assim formaram o tripé dos maiores consumidores de sururu no fim de semana nos restaurantes da Massagueira. Como dizem que sururu é afrodisíaco, os três viajaram na segunda-feira pensando em aumentar a família. Mariana, a filha caçula de Audálio e que o acompanhou nesse périplo bienaleiro juntamente com Vanira, a esposa, encostou o pai na parede e exigiu:

– Paizinho, eu quero um irmãozinho!

Para variar, a culpa é da mulher:

– Sua mãe já passou da idade... – respondeu.


Na bienal de Pernambuco, dois anos atrás, eu disse a Raimundo Carrero: “Você está sendo um patrono exemplar. Todos os dias você se faz presente”. Na despedida do Audálio, no saguão do hotel, uma das envolvidas na bienal me confidenciou: “Ele foi o único patrono que compareceu à bienal todos os dias”. Pois é. Que fique o exemplo para o próximo patrono. 

No estande da Academia Alagoana de Letras, cujos acadêmicos muito honram a literatura alagoana – a exemplo de Fernando Collor de Mello que nunca escreveu um bilhete, quanto mais um livro –, Audálio Dantas anunciou sua pretensão em entrar para a tal Academia. Falei alto para me fazer ouvir:

– Audálio, escolha qual cadeira você quer que amanhã mesmo providencio o enterro do desinfeliz! Basta dizer o nome que já estou com ódio dele!

Os notáveis das letras alagoanas me olharam num misto de incredulidade e medo, talvez a se perguntarem quem era o doido. Mais tarde, depois de deixar Audálio no hotel, fui jantar com um amigo e, ao adentrar o restaurante, encontrei um acadêmico. Acenei para ele, ele acenou para mim, e amarelou depois que me reconheceu. Certamente pensou lá com seus botões: "Será que o Audálio escolheu a minha cadeira na Academia?"

Há que se dar a César o que é de César: o radialista interiorano não foi de todo infeliz em sua colocação. Muito antes de ser patrono da bienal alagoana do livro, Audálio Dantas já era Patrimônio Vivo da Democracia. 

Se isto não existe, passa a existir a partir de agora.


Luís Pimentel ataca de compositor

O escritor Luís Pimentel ataca de compositor num ótimo samba irreverente em parceria com Paulinho do Cavaco.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Luís Pimentel - Setenta nas Alturas

A nuvem escolhida ficava numa curva da rampa do Maracanã, à esquerda da torcida do Flamengo, onde depois dos jogos a gente parava para fazer xixi e reencontrar os amigos desaparecidos no empurra-empurra das arquibancadas. Na mesa eu reconhecia, entre outros, Clara Nunes (primeiro as damas), Wilson Batista, Moreira da Silva, Zé Kéti, Roberto Ribeiro, Mauro Duarte, Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Batatinha, Paulinho Soares e Walter Alfaiate. 

O garçom era um mulato sarará que dera expediente no Fla-Bar, em tempos idos. Comemoravam-se os setenta anos de João Nogueira, que chegou de camisa regata preta, entoando os versos de um samba que dizia “pode chover, pode o sol me queimar”, e perguntando “cadê Wilson, Geraldo e Noel?”. Não me digam que a rampa já não existe (o Maraca também não), pois no meu sonho a nuvem e os personagens eram reais, e vai ser difícil agora reunir as provas: a Warner não gravou, a Globo não vai passar, mas ouvi muito bem o breque do Morengueira:

– Eu já tinha declarado que você era o único capaz de me substituir, compadre. Mas resolvestes subir exatamente um dia antes de mim...

Foi aí que revi o João, vivendo o mais absoluto poder da criação, mais nó na madeira do que nunca, alpercatas de couro, perguntando por onde andará Maria Rita, assoviando para Clara em tom de Sabiá, com aquela mesma camisa, trinta anos antes, nas cadeiras especiais (tinha um menino ao seu lado, que não sei se já era o seu Diogo), em cima da cabine de onde se via e ouvia Waldir Amaral narrando a virada espetacular com passagem pelo Méier e pelos Encontros Cariocas, antes de chegar à Barra da Tijuca. É sonho, mas vejo como se fosse num espelho, com o pedido de licença antecipada ao Paulinho Pinheiro.

Voltemos à mesa na nuvem à esquerda do peito, Paulinho Soares lembrando que novembro era hora de se definir o tema do Clube do Samba – pois Ângela e Didu Nogueira lá embaixo estavam aflitos para botar o bloco na rua – e mostrando a primeira parte para o aniversariante arrematar:

Estamos aqui, nas nuvens
Comemorando os setentinha de um irmão...
Cê tenta, João! Cê tenta!
Mas lá embaixo ninguém te esquece, não!

Anjos me contam que o Nogueira fez a segunda, dizendo que queria morrer na noite, e que o samba ficou supimpa, falando que falou o que ainda não se explica. Mas essa não está no youtube.

E mais do que isso, João, eu também não sei explicar.

Gilberto Dimenstein - O câncer de Lula me envergonhou

Deu na Folha de S Paulo de 30/10/11


Senti um misto de vergonha e enjoo ao receber centenas de comentários de leitores para a minha coluna sobre o câncer de Lula. Fossem apenas algumas dezenas, não me daria o trabalho de comentar.

O fato é que foi uma enxurrada de ataques desrespeitosos, desumanos, raivosos, mostrando prazer com a tragédia de um ser humano. Pode sinalizar algo mais profundo.

Centenas de e-mails pediam que Lula não se tratasse num hospital de elite, mas no SUS para supostamente mostrar solidariedade com os mais pobres. É de uma tolice sem tamanho. O que provoca tanto ódio de uma minoria?

Lula teve muitos problemas --e merece ser criticado por muitas coisas, a começar por uma conivência com a corrupção. Mas não foi um ditador, manteve as regras democráticas e a economia crescendo, investiu como nunca no social.

No caso de seu câncer, tratou a doença com extrema transparência e altivez. É um caso, portanto, em que todos deveriam se sentir incomodados com a tragédia alheia.

Minha suspeita é que a interatividade democrática da internet é, de um lado um avanço do jornalismo e, de outro, uma porta direta com o esgoto de ressentimento e da ignorância.

Isso significa que um dos nossos papéis como jornalistas é educar os e-leitores a se comportarem com um mínimo de decência.


Gilberto Dimenstein, 54, integra o Conselho Editorial da Folha e vive nos Estados Unidos, onde foi convidado para desenvolver em Harvard projeto de comunicação para a cidadania.