quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O retratista

Era o único retratista do lugar. Batizado, casamento, amancebamento e discurso político, nada passava em brancas nuvens. Um dia, em visita à capital, comprou a última novidade do mercado: câmara fotográfica com temporizador. Era a única maneira de também sair nas fotos.

Retornando, reuniu a família no topo de um barranco, armou o tripé, ajustou o foco, acionou o temporizador e correu para junto do pessoal. Ao vê-lo correndo, todos correram também, esquecidos da ribanceira a menos de um passo.

No hospital, perguntou ao único que conseguia falar:

- Por que vocês correram?
- Se você, que conhece aquele troço, correu com medo, imagina se a gente ia ficar...

domingo, 26 de julho de 2015

Assim viaja a humanidade

Peguei o coletivo no Farol da Barra e adiante vi a palavra "ônibus" em sentido contrário na sinalização horizontal do asfalto e perguntei ao motorista:
- Você sabe o que é subinô?
- Sei. É o contrário de descenô.

É a velha Bahia, com suas histórias a cada acelerada.

O jogo do bicho e os sonhos

O meu problema é de interpretação e não de crença. Creio em Deus sobre todas as coisas e na Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana, mas creio mais nos sonhos, apesar de não dar uma dentro no jogo do bicho. Jogo cobra e dá veado. Sonhei com um gato caindo do muro, joguei gato, fui buscar o prêmio, deu burro. Sonhei com o número onze estampado no muro de uma casa. Seria tiro e queda, não precisava passar pela peneira das interpretações. Onze é onze, e ponto final! Procurei a banca do jogo do bicho e esvaziei os bolsos no 11. Deu 24, veado. O bicheiro me explicou a lógica:

- A gente tem que saber interpretar os sonhos. Nem tudo é como a gente imagina. No primeiro caso, quem sonha com cobra é viado. No segundo, gato que cai do muro é burro. No terceiro, 11, é um atrás do outro, viado.

Tem lógica. Eu nunca havia pensado nisso. Jogar no bicho não é para qualquer um não. Mas agora já sei: se sonhar com um juiz, vou jogar no veado. Todo juiz anda na vara.

Troque o homem mas não troque o nome

Seu nome era Vliado. Uma mistura de iniciais do pai com um não-sei-o-quê da mãe. Precisava dar os créditos num videoclipe e ele implorou:
- Não se esqueça do "lê" antes do "I"! Olhe lá! É "V-L-I-A-D-O" - soletrou.
Como haveria de esquecer nome tão inesquecível? Botei todos os "lês" merecidos. Depois de pronto, DVD entregue, ele me ligou puto da vida, quase em ameaça de morte:
- Que porra foi que você fez com meu nome?
- Eu? Nada. Tenho certeza de que coloquei o "l"!
- Colocou, sim. Mas escreveu "Glay", seu... seu!
- Ora... E Glay não é o mesmo que Vliado?
- (impublicável)

domingo, 28 de junho de 2015

A Missa

Diante das circunstâncias, eu confesso essa minha agonia que, antes de ser dilema, se transformou em paradoxo: o meu irmão Dimas não gostava de missa, de padre ou de qualquer religião. Não era ateu, porém ficava à toa na escolha do ser ou não um cético ou um crente. Antes de se casar, cumpria suas obrigações de católico, apostólico, romano todo santo dia; depois que se casou, sua cara-metade, dizendo-se agnóstica, proibiu a palavra “religião” dentro de seus domínios.

Ao contrário dele, eu vivia na sacristia, ajudando a celebrar missa e a entornar o vinho canônico nos descuidos do padre. Era um temente a Deus e me confessava toda semana para poder ter direito a degustar uma hóstia consagrada inteira e sentir a leveza do corpo diáfano flutuando no espaço, conforme o que se garantia nas aulas de catequese. Toda comunhão, uma decepção. Nunca conseguia sentir essa sensação. Era dominado por um sentimento de culpa e me sentia o mais vil pecador, ignorado ou castigado por Deus na hora de gozar do nirvana cristão. Uma vez criei coragem e confessei ao padre esse meu desapontamento. Ele creditou ao meu confessar sem estar devidamente arrependido. “Arrependei, cretino!”, esbravejou, apontando a minha culpa para uma sacristia cheia de coroinhas e beatas. Em vez de baixar a cabeça sentindo a culpa do pecado pelo não arrependimento, joguei uma praga de urubu no padre e nunca mais ele pôde ouvir confissão de alguém: na semana seguinte fugiu com uma beata que vivia, dia e noite, enchendo o saco de Santo Antonio, pedindo casamento em troca de flores e velas. Ambos foram proibidos de frequentar a sacristia e tiveram que mudar de cidade.

O paradoxo se deve ao fato dos papéis se inverterem trinta anos depois: eu perdi a fé em padre e em missa e o meu irmão Dimas se tornou um carola de carteirinha, daqueles que são convocados para ler as epístolas e está a ponto de virar diácono, com direito a fazer sermão e de ler a Bíblia quando o padre estiver com preguiça de cumprir sua obrigação canônica. Dimas reviu seus conceitos no dia que sua mulher fugiu com o seu melhor amigo, Raimundão Poeta, um vivente do Vale das Pedrinhas, uma subdivisão do bairro do Rio Vermelho, em Salvador. Este sim, um ateu legítimo, um radical do pancosmismo, materialista convicto, discípulo de Holbach e seguidor do marxismo. Dimas tinha o maior apreço por esse seu amigo e, ao ler o bilhete deixado pela mulher, dizendo que partia como discípula de Raimundão Poeta em busca de sua afirmação interior, odiou todas as formas de ateísmo e tomou o fato como um castigo exemplar de Deus por sua pretensa heresia.

 O dilema era que, estando eu em Alagoinhas, cidade no litoral norte da Bahia, às vésperas das festas juninas, Dimas me chamou para ir à missa de Santo Antonio, que é celebrada toda terça-feira, na igreja de São Francisco de Assis, para fazer uma avaliação de sua atuação como pré-diácono.

Desde o dia que um padre se negou a rezar missa de corpo presente no enterro do meu pai, por pura preguiça, passei da indiferença para a rejeição aos padres, mesmo sabendo que algum justo – se é que existe algum – pagaria pelos pecadores. Mas também não podia fazer uma descortesia ao meu irmão. Eu era seu hóspede. Vesti a minha domingueira – apesar de ser uma terça-feira – e o acompanhei até a igreja.   

Entrar no Convento dos Frades, ou Igreja dos Capuchinhos, ou ainda Convento de São Francisco de Assis, foi como caminhar no túnel do tempo em viagem de retorno ao passado. Nada havia mudado na pintura e na decoração interna. A maioria dos fiéis presentes era de amigos ou colegas, ex-militantes do Clube São Domingos Sávio, a escola de coroinhas mantida por Frei Fidélis. A novidade era o meu irmão que nessa época só ia à missa se a mulher lhe desse a devida permissão. Como ela não dava, ele nunca ia e ainda pousava de ateu, esconjurando os padres e seus adeptos.

Os santos, os mesmos, continuavam em seus nichos laterais sob a luz de vela. Velas estas que só são apagadas na Sexta-Feira da Paixão, quando os santos são cobertos por mortalhas roxas. Apesar de ser um convento franciscano, abriga outros santos cristãos: São José, Santo Antonio, Nossa Senhora das Dores e São Domingos Sávio. São Francisco abençoa os seus fiéis na nave-mãe, no altar-mor, onde fica a sua estátua de mais ou menos um metro de altura, com o braço direito estendido em sermão aos pássaros. Acima dele, dois anjos carregam Cristo ressuscitado para o Seu trono, ao lado de Deus, o seu pai.

Atrás do altar existe uma ala em que os outros frades assistem à missa e ficam rezando o terço. É um ambiente sombrio, iluminado apenas por um refletor de um Cristo crucificado em tamanho natural, de um realismo fantástico, incomum, assustador, e Ele parece nos cobrar a culpa pelas chagas no Seu corpo, pelo Seu martírio mortal.

Se não houvesse um hiato de 30 anos e as pessoas ao meu redor não tivessem pintados os cabelos de branco – inclusive eu –, diria que o tempo transcorrido seria apenas de um sermão a outro, ou então que o convento e eu envelhecemos juntos, tricotando nosso cotidiano com a linha invisível do Tempo. 

O envelhecer junto é parar a ação do Tempo sobre o nosso corpo, é banhar-se diariamente na fonte da juventude, à luz de nossa compreensão da decadência corporal. É ficar imune à corrosão ácida da sucessão das eras ante nossos olhos. Por isso que os filhos são vistos como eternas crianças pelos pais, que se assustam quando eles dizem que já são donos do próprio nariz e jogam a realidade tal qual como ela é, sem meneio nem pinceladas floridas de aquarela. Nessa hora, teme-se olhar para o espelho e ver desnudar sua imagem real, descobrindo-se andando de mãos dadas com o implacável Senhor dos Séculos: o Tempo.

Iniciada a missa, todos de pé, o padre (ou frei, como são chamados os capuchinhos) disse o intróito “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” e, no “amém”, desapareceu atrás do altar. O coral abafou o ruído da queda. Em vez de antífonas, uma súplica desesperada do meu irmão, dublê de diácono: “Há algum médico aqui que possa socorrer o padre?” Não havia. Mas surgiu uma multidão de curiosos querendo sacudir o badalo do padre, que se levantou pálido, zonzo, aéreo. Fora só um desmaio provocado pelo intenso abafamento.

Enquanto se providenciava um substituto para continuar a missa, lembrei-me de uma outra cena, trinta e cinco anos antes. O padre, na hora da consagração do vinho, suspendeu o cálice e falou: “Do mesmo modo, ao fim da ceia, tomou o cálice em suas mãos, abençoou, e deu aos seus discípulo dizendo...” nesse exato instante ele ergueu os olhos para a janela aberta na parede lateral do altar, com vista para o imenso pomar do convento, e viu uns moleques roubando laranjas, as suas laranjas. Não se conteve e emendou a fala de Jesus com a sua indignação: “Ladrões! Canalhas! Moleques sem vergonha!”. A platéia, também chamada de assembléia, tomou um susto. Quando Jesus Cristo dissera isso? Pensou-se que o padre havia enlouquecido. Generalizou-se o tumulto. O padre quis se explicar, mas não deixaram e ele saiu do altar direto para uma casa de repouso.  Depois foi transferido para outra paróquia e dele não se soube mais notícias.

Lembranças indeléveis que teimam em aflorar nostálgicas. Lembrei-me da última missa, trinta anos atrás, e da cara de espanto de Luciene quando lhe comuniquei a minha decisão de ir embora da cidade, partir no primeiro trem no dia seguinte, com destino a Salvador. Ela chorou no meu ombro. Um choro sincero, honesto, inconformado pela perda iminente. Ela sabia que seria uma viagem só de ida, sem retorno, um adeus definitivo, sem a esperança do “até a volta”. Seria inútil qualquer apelo para ficar. A cidade já tinha chegado ao meu limite.

Por onde andará Luciene? São trinta anos sem saber notícias e, pela primeira vez nesse ínterim, pensei em seus olhos azuis marejados e escurecidos pela tristeza. E me dei conta de que nunca me preocupei com o seu destino ou de ao menos saber de seu estado físico-emocional. Ela representava o meu último elo de ligação ao passado e eu queria esquecer completamente e quase teria conseguido se não estivesse ali, no templo das últimas lembranças. Por onde andará Luciene?

O padre foi substituído e a missa reiniciada. O meu irmão leu as epístolas de São Paulo aos Coríntios e ainda teceu outros comentários. Como ele é político, sabe dominar a platéia, envolver o povo. Em outras palavras, sabe enganar a torcida.

Antes do rito da comunhão, o celebrante pediu para que saudássemos uns aos outros em nome de Cristo. Primeiro, saudei os que estavam sentados no mesmo banco que eu; depois parti para os do banco da frente; ato contínuo, me virei para saudar o povo do banco de trás e não consegui abafar um grito de surpresa:

– Luciene! 

sábado, 6 de junho de 2015

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Aleilton Fonseca - D'essa terra para outras terras - Saudação a Antonio Torres



Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
                                      (Castro Alves)

 Caríssimo Escritor Antônio Torres:

Estes versos de Castro Alves lhe serviram de batismo, na sagração da palavra de um gênio lírico pronunciadas por seus lábios de menino, diante – como hoje – de uma plateia, num momento ímpar e singular. São os versos pronunciados por um longínquo menino do Junco, em praça pública, em dia de festa, escolhido pela professora Dona Serafina, ainda viva e quase centenária, que – sem o saber – encaminhava o seu aluno, num ritual perfeito – ao destino das letras, ao mistério das palavras. Dona Durvalice e Seu Irineu bem que gostavam de ver o filho brilhar.  O escritor de hoje o traz no coração e na alma, e guarda na memória os versos eloquentes, em apreço ao infante de outrora:
“Auriverde pendão de minha terra.”
Eis aí, mestre Antônio: ecoam estes versos por mais de seis décadas que o distanciam e aproximam daquele instante mágico. Ouçamos a voz do menino a quem agora recordamos solenemente. Escute ressoar naquela praça o timbre da pronúncia, o ritmo das sílabas, o eco das rimas. Experimente de novo a luz dos olhos que acolhiam todo aquele povo ao redor.  O menino, de uns oito anos de idade, está aqui hoje, em seu ser, pois o escritor já constava no seu destino.
O menino do campo, que sabia de cor o caminho da roça, para quem os auriverdes pendões de sua terra floresciam nas plantações de milho, folhas verdes e espigas amarelas, numa simbologia de fartura ou escassez – e promessas de bom porvir. Do alto das plantações, espraiadas entre pedras e mandacarus, nas colinas do território do Junco, os seus olhos observavam a brisa do Brasil que beija e balança as folhagens ao vento, destacando a silhueta sinuosa das estradas. Sabia o menino que aqueles eram os caminhos para o mundo? No íntimo, talvez sem o saber, intuitivamente já o sabia. Eram aquelas imagens admiradas do alto os estandartes que a luz do sol encerra. Era para além das linhas e curvas que se estreitavam no horizonte, que acenavam no silêncio dos campos “as promessas divinas da esperança...”.
Tem razão Machado de Assis, que lhe deixou a própria cadeira de herança: o menino é o pai do homem. Persistem na formação do homem Antônio Torres aqueles primeiros passos no terreno da palavra literária, onde o que se ara, se aduba e semeia são versos e frases que se escrevem, se declamam, se narram e se ouvem, para alimentar a alma e dar sentidos mais profundos ao ato humano de existir.
O futuro prosador plantou e sentiu germinar em si o sonho de um dia ser como o poeta. Proferida em praça pública, a sua voz passou, sem que ninguém pusesse em ata, a ser signo de uma autoestima plural, atraindo vaticínios sobre um destino que haveria de ser brilhante. Naquele momento estava celebrado o compromisso com seu ethos local. Tornava-se o porta-voz de sua gente, na busca de projetar-se para além de suas estradas, e cercas, e pastos e matagais. O seu desiderato era seguir as estradas, num um ir e vir incessante, fixando-se num entre-lugar de discurso, a fim de dizer ao país e ao mundo da existência daquele território de sonhos, fixando-o como um ponto sensível na geografia literária do Brasil. Do Junco ao mundo, eis sua trajetória fecunda, escrevendo-o nos entrechos de seus enredos, grafando-o nas raízes e na fala das personagens, como locus de origem, de vivências, de resistência e, sobretudo, de revisitação simbólica.
O escritor deixou o Junco? Não. Antônio Torres jamais deixou o Junco, pois que essa terra nunca o deixou. Quanto mais longe, estava ele mais próximo, pelas memórias vertidas em palavras, narrativas, depoimentos, imagens e decifrações.  O escritor saiu do Junco, para estar mais intimamente enraizado em suas origens. Partiu em viagens para espalhar essa terra por todos os lugares onde seus romances encontraram leitores e viajantes dos enredos, e todos eles visitaram o lugar – através de suas histórias, e para além da geografia, como ícone de um mapa mágico de cidades de palavras: Junco, Comala, Macondo.
Eis as trilhas de sua peregrinação: do Junco a Inhambupe, eram passeios esperados e vividos no seio da alegria familiar.  Do Junco para Alagoinhas, foi o primeiro passo para além das fronteiras da infância, pois seu amor à escola era já visceral e incontornável. Mais tarde, em Salvador, foi seu advento no jornalismo, como já indicavam suas habilidades para a leitura e a produção de textos. Não sem antes ter sido o escrivão-mor de sua terra, traduzindo no papel de carta, as palavras, os sentimentos, os queixumes, os sonhos e as esperanças daqueles que buscavam manter os vínculos com os que haviam partido do lugar, tempo de muitas partidas sem retorno.
O apelo do sul não se fez demorar. Aos vinte anos, o jovem promissor tomou a metrópole de São Paulo como destino, preparo e semeadura. Das paisagens de luz intensa do sol e azul das nuvens, para a paisagem cinzenta da garoa insidiosa e arranha-céus impetuosos. O homem empreendia seus embates e sua aprendizagem, processava as experiências, aquisitava linguagens e tomava consciência acerca da complexidade de um país em processo de modernização tardia e conservadora, marcado por profundas desigualdades. Era tempo de crise, em plenos anos de chumbo da ditadura, onde as lutas pela liberdade e pela redemocratização alimentavam o sonho de um Brasil melhor. São Paulo, lugar de escolhas. Do jornalismo para a publicidade, e daí ao seu front definitivo que havia mesmo de ser a literatura.
O Rio de Janeiro seria, mais adiante, o cenário eleito de sua vida em família, com sua dileta esposa Dra. Sônia Torres, e seus filhos Tiago e Gabriel. O lugar da vida literária e cotidiana: as caminhadas nos calçadões, o convívio com amigos e colegas jornalistas e escritores, as revelações das ruas históricas e das novas paisagens, os lançamentos nas livrarias, palestras e conferências nas instituições culturais, as universidades onde foi escritor visitante. E dali para os lugares de todo o Brasil, e para os lugares do mundo – que os convites e as homenagens sempre pontilharam sua agenda. Junco-Salvador-Rio de Janeiro, e vice-versa – seu mapa afetivo de viagens sem termo.
No Rio, de primeiro, foram longos anos de vivências. E mais recentemente, fixou moradia sossegada com belas vistas para as colinas de Itaipava, na imperial cidade de Petrópolis. Eis o cenário de sua vida literária cada vez mais intensa, a carreira sempre em ascensão, até a consagração maior da Academia Brasileira de Letras, na cadeira 23, que tem como fundador e primeiro titular Machado de Assis, e patrono José de Alencar; uma cadeira que, durante 70 anos, consagrou os baianos Octavio Mangabeira, Jorge Amado e a baiana adotiva Zélia Gattai. Uma cadeira que continua, portanto, com brilho baiano e consagração nacional.
O homem fez-se verbo. No ano de 1972, no cenário de anos difíceis, em São Paulo, o mundo literário foi surpreendido. Aparecia naquele ano um romance de título longo e curioso: Um cão uivando para a lua. Estreava um romancista novo, num momento de pressas e urgências, quando gênero do conto e os contistas ocupavam a o centro da cena e o interesse de leitores, críticos e páginas literárias. O romance foi bem recepcionado pela imprensa, despertou interesse em Jorge Amado que lançava seu romance Tereza Batista Cansada de Guerra na mesma noite. Naquele dia dividiram as páginas dos jornais dois romancistas baianos: o consagrado e o estreante, aguçando a atenção dos leitores curiosos.
Um cão uivando para a lua foi aclamado a revelação do ano. Bem ao espírito da época, é um romance de linguagem híbrida, com forte acento jornalístico, numa dialética de efeitos, entre os dados da realidade e o jogo da ficção, ora enredo ora reportagem. A narrativa inquieta o leitor, que o lê na fronteira entre a condição atual do narrador, encerrado numa clínica de tratamento mental, e os recortes narrativos de sua trajetória pessoal e profissional. A seu modo engenhoso, a narrativa denuncia, nos entrechos e entrelinhas, as dificuldades de se exercer a liberdade de pensamento e expressão, numa sociedade que soçobra sob os poderes de grupos sociais dominantes. Um romance que problematiza as relações cotidianas nos bolsões urbanos, sejam centrais ou periféricos, com enredo entrecortado, descontínuo e agônico, conduzido por um narrador de dicção jornalístico-ficcional, cumprindo, aliás, um traço peculiar da ficção urbana dos anos 70.
Foi uma estreia de vulto, que chamou a atenção de leitores, escritores, críticos e resenhistas da imprensa especializada, com excelente repercussão nas páginas literárias dos grandes jornais. De certa forma, este romance representa o ambiente da época, mostra a asfixia do cenário urbano, onde se movimenta o narrador, jornalista, lúcido e louco a um só tempo, e deixa-nos sentir que o exercício do discurso pleno escora-se nos relatos de experiências pessoais problemáticas, sob atmosferas sociais pesadas, em relações desestruturadas, metaforizando-se, mesmo, essa narrativa, como a fala de “Um cão uivando para a lua”.
Após a estreia bem sucedida, seguiram-se mais dez romances, uma coletânea de contos e dois livros não-ficcionais, o festejado ensaio/apresentação sobre o Rio, intitulado O centro  de nossas desatenções, e um livro sobre a trajetória do circo no Brasil. A par de sua atuação intensa e sua presença nas páginas literárias, sua fortuna crítica não para de se acumular, sobre as seguidas edições e reedições de seus livros, à luz do brilho de suas participações públicas em eventos e debates, diante de estudantes, universitários, pesquisadores e leitores em geral, exercendo com eficiência e desprendimento a função pública do escritor que trabalha pela cultura de seu país. No estrangeiro, as traduções de seus livros ultrapassam fronteiras, e chegam já a vários países, em mais de uma dezena de idiomas, acumulando leituras, estudos, homenagens e títulos de reconhecimento, como o Chevalier des Arts et des Lettres, que a França lhe outorgou.  No Brasil, sua obra recebeu prêmios de alto valor, como o Pen Clube, o Zaffari & Bourbon, o Jabuti e o consagrador Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, para o conjunto de sua obra.
Os estudos críticos e ensaísticos acerca de sua obra se multiplicam, se adensam em artigos, dissertações e teses de doutorando em dezenas de universidades no Brasil e também no exterior. Uma reunião de estudos sobre sua obra se destaca, com um título em si bastante representativo dos temas de suas narrativas. Trata-se do livro Espaço Nacional, fronteiras e deslocamentos na obra de Antônio Torres, organizado pelos professores doutores Cláudio Cledson Novaes e Roberto Henrique Seidel, publicado pela Editora da Universidade Estadual de Feira de Santana, em 2010, e lançado no evento “Narrativas e viagens do Junco ao mundo: Setenta anos de Antônio Torres”, ali realizado em homenagem à trajetória do grande romancista, com a participação de vários estudiosos, que trataram de diversos temas e aspectos de sua obra.
Em geral, considerando as diversas abordagens de sua obra ficcional, podemos vislumbrar na base de seus romances três linhas de força fundamentais: o romance de representação/problematização da experiência urbana, que compreende também o drama de personagens migrantes nordestinos (Um cão uivando para a lua, Os homens dos pés redondos, Um táxi para Viena d’Áustria, Balada da infância perdida), o romance de representação/interpretação das memórias e vivências de formação (Essa terra, Adeus, velho, Carta ao bispo, O cachorro e o lobo, Pelo fundo da agulha; Meninos, eu conto); e o romance de representação/ressignificação da história (Meu querido canibal e O nobre sequestrador). São perfis não estanques e que se justapõem ou se interpenetram, com ênfase maior para um dos aspectos em questão. Os homens dos pés redondos (1973), por exemplo, reflete sua experiência de 3 anos em Lisboa e Porto, em Portugal, sua tomada de conhecimento acerca de uma sociedade esfacelada pela ditadura de Salazar. Um romance de tons sociais, culturais políticos e históricos – aliás, as linhas básicas que se amalgamam, em maior ou menor grau, no conjunto de sua ficção.
O Junco é uma história, e Antônio Torres é o romancista d’Essa terra. Em 1976, surgia o romance emblemático, trazendo ao escritor o reconhecimento que iria consolidar seu nome no panorama da ficção brasileira. Continuamente reeditado, traduzido para vários idiomas, objeto de estudos no país e no exterior, o romance tematiza, através da experiência do protagonista Nelo, o drama da migração nordestina para São Paulo e suas consequências psicológicas e sociais.  Sob a ótica do narrador Totonhim, o irmão mais novo, conhecemos a trajetória do protagonista e da sua família sertaneja, nos desdobramentos de um enredo marcado pela desintegração e pela crise, que mostra a situação do migrante destruído nas engrenagens da metrópole, em relações marcadas por rejeição, preconceito, exploração e expurgo. Essa terra engasta-se na dura realidade da migração nordestina para São Paulo, movimento bastante comum durante o segundo e terceiro quartel do século XX.
A migração é um fenômeno universal, assim como o desenvolvimento desigual dos lugares. Os dramas do deslocamento, do desenraizamento, da diáspora, da perda de referências, fazem de Essa terra um romance universal, pondo em relevo a feição particular que assume em território brasileiro, na trajetória sertão/metrópole, como uma viagem de ida e volta, no deslocamento dos corpos e das vivências, e na transição de valores, os comportamentos, os imaginários e as condições de vida.
O romance narra, sob certas nuanças, a história do Junco, como “um lugar esquecido nos confins do tempo”. O narrador lamenta, sem perder a ombridade: Vagaroso e solitário, o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi.  E para contar a história com conhecimento de causa, eis o escritor d’essa terra, conhecedor da experiência, assinalado em praça pública, como portador da palavra para conformar e exprimir a identidade de seu lugar.
O processo de dissolução do sonho representado em Essa terra culmina com a partida de Totonhim para São Paulo, seguindo o mesmo caminho do irmão, sinalizando um novo ciclo da história. De fato, vinte anos depois, o romance O cachorro e o lobo (1996) narra o retorno de Totonhim ao Junco para rever o pai e resgatar outros aspectos da velha história, sob uma nova perspectiva, em tempos modificados pelos ares da modernização que, apesar de tardia e limitada, modifica o cotidiano e os costumes do lugar. E surge o romance Pelo fundo da agulha (2006) para completar a trilogia do Junco, com o narrador Totonhim, agora vivido e experiente, a remoer suas crises, tentando costurar os desvãos das memórias. Trata-se de um balanço de vivências e viagens, a tentativa de compreender os enigmas do passado e vislumbrar a vida como foi e suas possibilidades não concretizadas.
A trilogia capitaneada por Essa terra constitui um projeto ficcional preciso, de grande força estética, ao tematizar um aspecto dramático da sociedade brasileira, representando causas, circunstâncias, processo e efeitos do êxodo rural nordestino. Assim opera a inclusão de uma geografia física e humana remota à cena principal da narrativa do último quartel do século XX.
A trilogia preserva, ainda, nos entrechos das tramas, os traços da cultura local, representados pelo imaginário e pela oralidade que, numa perspectiva peculiar, fixa uma visão de mundo e diz muito da identidade sertaneja. Leva o leitor atento a enxergar mais profundamente a realidade dos excluídos, reconhecendo-os enquanto sujeitos e pacientes de um drama social, político e histórico. Uma escrita densa, de economia formal medida, tecida por um romancista que consegue aliar precisão técnica à ternura do relato, mantendo, apesar das tensões, uma camaradagem equilibrada com seus personagens.
Meu querido canibal: Este romance “é uma canibalização da história e da literatura”. Palavras do romancista. “O índio se chamava Cunhambebe.” “Um gênio militar, digamos logo. Com suas armas rudimentares – flechas, arcos e tacapes – enfrentava canhões...”. Palavras do narrador.
No ano 2000, esse romance surpreendeu o mundo literário, acrescentando nuanças novas à fortuna crítica e à imagem do escritor. Um livro tempestivo e necessário, para alertar e abalar as consciências, e ofuscar o verniz canhestro da comemoração dos 500 anos de colonização luso-europeia sobre as índias terras de Pindorama. A narrativa parte da ausência do elemento indígena no cotidiano, e recua até o século XVI, para retomar a Confederação dos Tamoios, reconfigurando-a através de uma reinterpretação crítica da História. Em um texto híbrido, a narrativa amalgama ficção, história e reportagem, para exumar o índio brasileiro da cova funda da história oficial.  Nesse romance, o discurso e a pesquisa desmontam a versão do colonizador, trazendo à tona de forma heroicizada o índio Cunhambebe, líder tupinambá na luta contra o massacre colonizador e o apagamento cultural de que foi vítima o seu povo.  Esse romance acaba de ser publicado na França, no Salão do livro de 2015, em tradução de Dominique Stoenesco. A acadêmica Rita Olivieri-Godet desenvolve estudos magistrais sobre a obra de Antônio Torres, referências indispensáveis para sua analise e compreensão. Entre outras belas explicações, ela conclui um artigo, afirmando:
Meu querido canibal rebela-se contra a recusa histórica da autonomia da alteridade indígena. Produz sua própria visão dos fatos recorrendo a um fazer literário antropofágico que suscita revisões da história e aponta as falhas da memória que levam à construção de uma identidade coletiva excludente. Assim procedendo, atua no sentido de escrever e inscrever, no presente, a utopia de um outro projeto identitário para a nação, aberto para a interação das atividades culturais, permeável ao encontro.
         De fato, é uma excelente conclusão de estudo metódico e percuciente, no qual a ensaísta identifica, analisa e explica os elementos de composição do texto antropofágico de Torres, demonstrando os sentidos e intenções de seu projeto,  e sua contribuição para uma revisão crítica da história, repondo a questão do índio no centro do debate antropológico brasileiro.
 E sobre o contista Antônio Torres? Meninos, eu conto.  Este livro reúne três contos de que comportam dupla possibilidade de leitura, entre memorialismo e ficção. Como num jogo de espelhos, os meninos personagens e o narrador adulto se refletem na escrita e demarcam o seu distanciamento no tempo e a sua proximidade afetiva. Na foto da contracapa Torres maneja um estilingue, que simboliza o seu desejo de rever as imagens da infância e adolescência vividas na sua pequena cidade natal. Segundo o autor, esses contos “têm como cenário um lugar esquecido nos confins do tempo” onde “os meninos dividiam o seu tempo entre o trabalho na roça, junto com os pais, e o caminho da escola, no povoado”. São histórias de meninos do interior, ambientadas numa época em que cada lugarejo ficava isolado do mundo, tendo como horizonte apenas uma estrada poeirenta, por onde muitos seguiam para São Paulo e nunca mais voltavam. O escritor afirma: “Estas histórias, portanto, são de outra era. Mas ainda compartilho os sonhos, os sentimentos e os conflitos desses meninos. Um dia eles e eu já fomos as mesmas pessoas. Ou por outra: até hoje me sinto como se fosse um deles” .
O conto – “O dia de São Nunca”, por exemplo, – estabelece relações entre o espaço rural e o urbano, pois o menino protagonista mantém contato com três jovens da cidade que fazem uma espécie de turismo no povoado. O menino exercita a imaginação, ensina e aprende, como portador do saber local e aprendiz das novidades urbanas. Ele se esforça para compreender aqueles jovens forasteiros e sente o esforço deles para compreenderem o seu mundo. Para o menino, esses dois mundos agora se tocam, como um novo horizonte em seus sonhos e esperanças.
Caro escritor Antônio Torres:
Nesta inesquecível noite de 21 de maio de 2015, todos que aqui se acham presentes entraram, em algum momento de suas vidas de leitores, em consonância com sua obra literária, sentindo-se, portanto, chamados a compartilhar este ato, como testemunhas de sua investidura neste sodalício.
Saudamos o romancista completo, ungido pelo brilho do colar acadêmico, que reflete a luz de sua perícia criativa e exemplar. Todos nós sabemos o quanto o escritor Antônio Torres é reconhecido e reverenciado pela Bahia e pelo Brasil. E asseguramos quão imensa manifesta-se a felicidade que nos embala os corações, diante de sua posse nesta quase centenária companhia, por onde passaram figuras máximas de nossa cultura, como João Ubaldo Ribeiro, a quem você sucede à altura na gloriosa cadeira de nº 9, que antes pertenceu ao nosso grande presidente Cláudio de Andrade Veiga.
A vida literária é um ritual contínuo de sucessões, pois que somos elos de uma corrente sem fim, que nos convoca a um trabalho de construção da arte da palavra, como um único e interminável livro que representa a vida, a trajetória, a experiência da imaginação humana ao longo das gerações. A cadeira 9 foi fundada, há 98 anos, pelo acadêmico Campos França – e agora ela passa a suas mãos, ato previsto no calendário da existência, como todos os dias do futuro, conforme os paradigmas da vida.
Sua trajetória literária, laboriosa e criativa é motivo de júbilo para todos nós. Sua caminhada até aqui passou por muitos momentos e lugares, e este é de fato seu porto ideal. Seja bem-vindo, portanto, a sua casa para o convívio fraterno das letras.  Acredite, e ponha em ata: todo isso começou com os versos do grande poeta da Bahia:
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...


Aleilton Fonseca
Salvador, 21 de maio de 2015.