Mostrando postagens com marcador Cineas Santos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cineas Santos. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Cineas Santos - A descoberta da literatura



            Em São Raimundo Nonato, não havia  bibliotecas públicas. Livros, só os manuais escolares.  Foi num deles -  o Livro de Português, de Aída Costa – que  descobri a literatura brasileira. Entre outros autores, Gonçalves Dias, Alencar, Machado de Assis, Viriato Correia, Olavo Bilac, Alphonsus de Guimaraens (adorável “Ismália”), Vicente de Carvalho, Cruz e Sousa, Bandeira (ainda simbolista) e Menotti Del Picchia, com seu indefectível “Juca Mulato”... Modernismo, nada.
            Aos 15 anos de idade, eu não tinha lido um único romance. Só  folhetos de cordel, fragmentos de crônicas, sonetos e coisinhas do gênero. Dona Purcina, com quatro filhos numa escola particular, não podia comprar livros. Um dia, fez uma extravagância e adquiriu 12 livrinhos: Grandes vultos da história do Brasil. Escritores, só dois: Castro Alves e Rui Barbosa, se não me trai a memória. Aos 16 anos, li Tarzan na Terra dos homens, tradução de Monteiro Lobato, e O Guarani, de José de Alencar.  Na minha santa ignorância, os dois personagens (Tarzan e Peri) eram bem parecidos: viviam no mato e eram imbatíveis...
            Mas antes de me tornar leitor, tentei tornar-me cordelista. Aos 12 anos de idade, instigado por meu irmão mais velho, escrevi umas poucas estrofes de um folheto denominado O namoro de hoje em dia. Curiosamente, eu não havia namorado ninguém e nada sabia de sacanagem. Então, ele entrou com o conteúdo e  eu cuidei da forma. Um folheto a quatro mãos. O trem ficou picante e, empolgado, resolvi mostrar minha “obra”  aos parceiros. Sucesso absoluto. Alguns copiaram estrofes inteiras. Sucesso e perdição. Dona Purcina surpreendeu-me lendo aquela  versalhada porca e não deixou por menos: aplicou-me algumas vergastadas com um cipó de marmeleiro e me mandou direto para o confessionário. Como se pode ver, melhor estreia, impossível.
            Foi com essa extraordinária bagagem cultural que desembarquei em Teresina, em maio de 1965.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Cineas Santos - O golpe do primo

            Domingo, por volta das dez  horas, o telefone tocou. Atendi.
            - Oi, primo, ainda se lembra de mim?
            O golpe é antigo, mas como a ligação não era a cobrar, resolvi prosear um pouco com aquele “primo” distante.
            - Com quem falo?
            - Esqueceu de mim, primo? Teu primo de Brasília...
            -Não me diga que é o Anacleto!
            - Ele mesmo, primo. Olha, estou com um probleminha...
            - Anacleto, eu precisava muito falar contigo, mas o celular caiu no vaso sanitário da rodoviária e...
            - Primo, tô precisando...
            - Anacleto, deixa eu te contar: lembra da tia Emerenciana, aquela carola solteirona?
            - Claro, primo!
            - Pois é: desencarnou. Morta por um trombadinha na porta da igreja.
            - Que coisa, mas primo...
            - Anacleto, como você sabe, ela não tinha filhos. Os herdeiros são, portanto, eu, você, o Atanásio  e a Gildety. O Atanásio está preso, a Gildety  caiu na vida, coube a mim cuidar do inventário.
            - A velhota tinha alguma coisa?
            - Uma casinha no Monte Verde e dois terrenos invadidos na Favela do Arame. Grana mesmo, mal deu para o enterro.
            - Mas primo, como te disse, tô com um problema...
            - Anacleto, deixa eu terminar. Preciso de alguns documentos teus: identidade, CPF, atestado de residência e uma procuração, coisa simples.
            - Primo, no momento, estou...
            - Anacleto, como você sabe tem umas despesinhas para serem rateadas entre nós. O Atanásio tá nas grades; a Gildety, na zona, então sobramos nós dois. Cada um de nós vai entrar com  dois mil reais. Anota aí o número da minha conta. Deposita isso o mais rápido possível, que o processo está parado.
            Silêncio de noite dormindo...
     - Anacleto, tá me ouvindo?!
            O primo desligou. O Anacleto sempre foi assim:  meio desligado...

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Cineas Santos - O jogo é jogado



               Reza a crença popular que só existe um pecado que Deus não perdoa: a soberba. Falta-me competência teológica,digamos, para negá-la. Particularmente, considero a inveja e a soberba  dois dos sentimentos mais torpes que o ser humano é capaz de agasalhar no coração. Mas vamos ao que importa: a seleção brasileira perdeu a Copa por  soberba e incompetência.  Pouco antes do início do torneio, Felipão, com a teimosia dos que quebram,mas não vergam, afirmou: “Ao Brasil só interessa ganhar a Copa”. Seus pupilos fizeram coro. A máxima era  “vencer ou vencer”. Ora, participar de um jogo – seja de lançamento de cuspe a distância ou porrinha  – é admitir a possibilidade de perder, por mais desagradável que isso possa ser. Em qualquer disputa, não se pode desprezar o poder do imponderável.

          A pior coisa que aconteceu à seleção brasileira foi vencer a Copa das confederações (2013). Ao derrotar México, Uruguai e Espanha, os “meninos de ouro” perderam a noção de chão, lugar onde, normalmente, se joga futebol.  A seleção mais cara do mundo entrou em campo para um passeio. Só se esqueceu de combinar com os adversários, como teria dito Mané Garrincha, antes de uma preleção, no Botafogo. Não bastasse a confiança excessiva, jogaríamos em casa, contando com a participação de milhões de brasileiros. Sob a inspiração de Neymar, a seleção escorraçaria, de uma vez por todas, o espetro do “maracanaço”(1950) que ainda ronda o Maracanã. O mais dispensa comentário.

          É lugar comum, entre os fazedores de palestrar motivacionais, a máxima: “aprende-se mais com as derrotas do que com as vitórias”. Pura balela. Só se aprende alguma coisa quando há efetiva disposição para fazê-lo. O que aquele grupo de meninos riquinhos, jogando nos clubes mais famosos do mundo, tinha a aprender sobre as artes e artimanhas de um esporte que já lhes deu grana, fama e louras?  Havia mais preocupação em exibir penteados exóticos do que em jogar futebol. Parafraseando Cazuza, Casagrande bradava pateticamente: “A gente não quer só ganhar...”      É escusado lembrar que a zaga mais cara do mundo tomou gol até da  prosaica seleção de Camarões. Convenhamos que é humilhante para quem contava como certa  a sexta  estrela.

           Depois do vexame dia 8, capaz de envergonhar até as menininhas que não sabem distinguir a bola dos jogadores, pode-se afirmar que só sobreviveram ao tsunami, Fuleco, que nem entrou em campo, e Neymar que, no papel de mártir, poderá reacender o mito de Dom Sebastião, o glorioso.

          Já circula na internet a informação de que a famosa camisa 7, que já foi honrada por craques do tope de Garrincha, Jairzinho e Bebeto, para citar apenas os mais famosos, será definitivamente banida da seleção canarinho. O governo, sempre sensível às questões importantes, estuda a possibilidade de retirar dos dicionários o verbo amarelar para não comprometer a virilidade das futuras gerações. O mais permanece. Brava gente!
         

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Cineas Santos - Facilita que eu leio



             Repetindo Euclides da Cunha, Machado de Assis é, antes de tudo, um forte. Suportou a indiferença de boa parte dos leitores de sua época. Resistiu estoicamente à má-vontade de alguns críticos obtusos que o consideram “inferior a Aluísio de Azevedo”. Ignorou a “homenagem” corrosiva e oportunista que lhe prestou Sarney, quando presidente, ao imprimir sua efígie numa cédula de que ninguém se lembra mais. Resistirá à investida dos que querem torná-lo palatável? Só o tempo dirá.

          Entenda a natureza do projeto em curso: uma escritora denominada Patrícia Secco (alguém já leu alguma obra dela?) resolveu “simplificar” a obra de Machado de Assis para,digamos, torná-lo mais palatável ao gosto dos jovens. Deu na Folha: "Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis", diz a escritora Patrícia Secco. "Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso." Ela simplifica mesmo: Patrícia lançará em junho uma versão de "O Alienista", obra de Machado lançada em 1882, em que as frases estão mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos mais comuns (um "sagacidade" virou "esperteza", por exemplo". 

          A coisa não para por aí: a tal escritora está realizando o projeto com o aval do MINC por meio das leis de incentivo à cultura. A iniciativa era bem mais ambiciosa: contemplava Aluísio de Azevedo, Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar, etc. Candidamente, a escritora afirma: "Montei um plano com um título de cada autor clássico para a gente tentar fazer uma versão”.

          Durante muito tempo, eu me perguntei: estaria em curso um projeto de emburrecimento dos jovens ou seria apenas uma espécie de leseira geral? Hoje, não tenho dúvidas: o projeto existe e tem o aval das autoridades competentes. Vejam bem: não bastasse a investida dos meios de comunicação de massa (notadamente rádio e TV), que privilegiam o vulgar, o  grosseiro, a violência, chegou a vez de a escola privilegiar o rasteiro por meio de obras literárias. Uma escola que nivela por baixo deseduca e compromete a formação do educando.

          Essa ideia de “atualizar” autores não é nova. Na década de 1960, a revista Seleções trazia versões “condensadas” de clássicos da literatura americana. Pode-se argumentar que, no caso, havia  um forte componente ideológico por trás da investida. Para os americanos, o que importava era popularizar os escritores de lá. Nossos “irmãos do norte” não brincam em serviço.

          “Simplificar” obras de autores estrangeiros é discutível, mas explicável, uma vez que as traduções, com honrosas exceções, já descaracterizam o estilo dos autores. Mas verter para o “vulgarês”   textos de brasileiros é crime de lesa-autoria. Se “o estilo é o homem”, como queria Buffon, Machado só é Machado de Assis pelas peculiaridades da sua escrita. O velho Bruxo do Cosme Velho  nunca foi um contador de histórias,  e sim, um construtor de linguagens. O papel da escola deveria ser estimular o aluno a mergulhar no universo machadiano para, entre outras coisas, enriquecer  o vocabulário. 

          Não quero ser pessimista – minha história de vida não me permite sê-lo – mas confesso  desencantado: estamos perdendo a batalha para a burrice galopante que assola o país. Vôte!