sábado, 19 de fevereiro de 2011

Do Presidente da Repúblia ao Pernas-Tortas

Era uma manhã de sábado e a garotada jogava bola de gude no meio da rua. Cada um dos garotos segurava uma lata de leite em pó, onde guardava seu estoque de bolas. No final da brincadeira algumas latas sairiam mais pesadas e outras mais leves. Como sempre, os patos pagariam o pato. De repente um barulho ensurdecedor rompeu o bate-boca da molecada e um monstro de ferro sobrevoou em voo rasante, espalhando as bolas de gude no chão, deixando todos parados extáticos com o tamanho do pássaro de ferro voador. 

– É o pavão misterioso – gritou Cacique, o mais novo da turma. O apelido se devia à sua mania de se vestir feito índio. Andava apenas de cueca.
– É um teco-teco! – arremeteu Dito.
– É um “helicope” – corrigiu Carlinhos, o mais velho e o mais sabido da turma – E parece que vai descer no campo de bola... Ei, devolva minhas gudes, Dito! – Dito havia se aproveitado da distração da turma para recolher as bolas de gude espalhadas pelo vento e colocar todas em sua lata.  
– Ladrão de gude! – gritou Iridilton, irmão de Dito.

Os dois se engalfinharam em briga de moleque de rua, conforme diziam as mamães zelosas do comportamento dos filhos. Hélio, o irmão mais velho, apareceu e arrastou os dois pelas orelhas para dentro de casa. 

Todos correram para o campo de bola. Uma multidão também corria para ver a novidade. Quando finalmente as hélices do helicóptero pararam, a polícia formou um círculo ao redor. O prefeito e o delegado se aproximaram. Parecia que eles já sabiam da chegada do visitante ruidoso. A porta do helicóptero se abriu e desceu um senhor bem vestido, simpático, sorridente, rodeado de homens sisudos e de terno preto. Primeiro o homem simpático abraçou o prefeito. Depois acenou para o delegado. Chegou mais polícia e fez um cordão de isolamento. Ninguém mais poderia se aproximar do ilustre visitante. A multidão se indagava curiosa:

– Quem é ele? Ele é quem? Que avião esquisito é esse?

Um funcionário graduado da Prefeitura se aproximou do povo se dando a devida importância que o momento requeria. Falou com todos os efes e erres conforme manda o manual de funcionário graduado:

– Ele é o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco que veio a Alagoinhas pra trazer o progresso.
– E quem é esse tal de Marechal Castelo Branco? – perguntou alguém no meio da multidão.
– Tá doido de fazer uma pergunta dessa, cara?! Tá querendo ser preso como subversivo e apanhar mais que mala velha?! Este é o glorioso general presidente da república – respondeu o funcionário graduado da Prefeitura. E mais não disse, virando as costas para a massa ignara, certamente se achando o próprio sábio chinês.


Segunda-feira, na escola, os alunos que disseram ter visto o Presidente e que puderam comprovar, receberam cinco pontos em todas as matérias. 

Isso sim, é que era um presidente porreta! 

A minha prova cabal foi uma bandeirinha do Brasil que estava sendo distribuída para o povo agitar na passagem do Marechal. Dito e Iridirton ficaram em casa de castigo no sábado e não ganharam os pontos extras. 

Meses depois tivemos que decorar outro nome de presidente. Sem pontos extras nas matérias. 

Em 1971 tivemos o resultado concreto da visita do Marechal Castelo Branco naquela manhã tranquila como eram tranquilas todas as manhãs de Alagoinhas: um estádio de futebol que não devia nenhum favor aos estádios de interior do Brasil. Fora construído no mesmo campo que serviu de heliporto para o marechal-presidente e recebeu o nome de Estádio Municipal Antônio Carneiro, prefeito idealizador e executor da obra.

O Estádio Antônio Carneiro, mais conhecido como Carneirão, foi inaugurado no dia 24 de janeiro de 1971 com um jogo amistoso entre Bahia e Corinthians Paulista. Nesse mesmo ano o Atlético de Alagoinhas, clube criado em 1970, entrou para o campeonato baiano graças à intervenção do Governador Luiz Viana Filho na Federação Baiana de Futebol. 

Até então o Fluminense de Feira de Santana reinava absoluto no futebol do interior baiano e era um dos mais destacados pela imprensa esportiva. E foi justamente o Fluminense o primeiro time do interior a pisar no gramado do Carneirão em jogo amistoso contra o Atlético de Alagoinhas, que também estreava o gramado do estádio. O Atlético ganhou de 1 a 0.  Esse placar repercutiu no noticiário esportivo e despertou a fúria dos feirenses, acostumados a reinar absolutos. Com o bom desempenho do Atlético no ano de sua estreia, os ânimos entre as torcidas se acirraram e culminou numa batalha campal noutro jogo, desta vez pelo campeonato baiano de 1972, em Feira de Santana. Os jogadores e os torcedores do Atlético que foram ao Estádio Joia da Princesa, além das costelas e pernas quebradas pela torcida do Fluminense, tiveram seus carros depredados. No jogo de volta, em Alagoinhas, a torcida e o time do Fluminense foram recebidos com flores.

Mas por que escrevo sobre um fato que pouco diz respeito aos meus três leitores? É porque, na crônica abaixo, Luís Pimentel relembra o dia que Garrincha foi a Feira de Santana mendigar sobrevivência e isso aflorou as minhas lembranças da infância e adolescência. Mané Garrincha também jogou em Alagoinhas, em jogo caça-esmola, mas não na excursão do Flamengo. Foi um jogo amistoso do Atlético contra o Santos, e Garrincha vestiu a camisa do Atlético. O Santos ganhou de 2 a 0, mesmo assim os atleticanos não se sentiram derrotados, pelo contrário, ficaram maravilhados com a partida. O time paulista levou o time titular e, mesmo cambaleante, o pernas-tortas deu um show de bola. 

Depois desse jogo a camisa 7 do Atlético foi merecidamente aposentada em homenagem e respeito àquele homem que cobriu o Brasil de orgulho. 




quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Luís Pimentel - Um homem chamado Mané

Eu era menino e vendia laranja na porta do Estádio Municipal Jóia da Princesa, em Feira de Santana, quando vi um Deus bem de pertinho. Em um domingo, o Clube de Regatas Flamengo chegou por lá, em meio a uma excursão que fazia pelo Nordeste, exibindo, além da mística do manto sagrado, um mito do futebol brasileiro: Mané Garrincha encerrava a carreira em melancólicos jogos de exibição.

Ao vê-lo descer do ônibus na porta do estádio, abandonei o cesto de laranjas e me dependurei na mão do anjo das pernas tortas, que caminhou devagarinho ao meu lado até o portão de entrada dos atletas. Despediu-se de mim e de outros meninos que o cercavam com um sorriso que jamais esqueci.

Tive ali meus cinco ou seis minutos de glória.

Chamava-se Manuel Francisco dos Santos, nascido na cidade de Pau Grande, estado do Rio de Janeiro, no dia 28 de outubro de 1933. Ganhou o apelido ainda bem pequeno, da irmã mais nova, porque era miudinho e arisco como o pássaro Garrincha. Sabe-se também que, quando menino, adorava caçar passarinho. Não escapavam os coleiros, nem as rolinhas, sabiás, cardeais, canários, bem-te-vis, zabelês, juritis e, por que não?, garrinchas. Dizem que mais tarde veio a justificar o apelido dentro de campo, pela maneira engraçada com que passava “voando” pelos marcadores, que por mais que o caçassem jamais conseguiam colocá-lo na gaiola.

Começou a correr atrás de bola ainda menino, beirando os quatorze anos, no Esporte Clube Pau Grande – pertencente ao dono da fábrica de tecidos onde tentava aprender a ser tecelão. Não conseguiu, ainda bem. E atrás da bola, com suas pernas tortas, tronchas e arqueadas, uma para dentro e outra para fora, correu por muitos anos.

Atrás da bola e às vezes na frente, diante de zagueiros – e às vezes atrás – de todos os tamanhos e todas as nacionalidades, passou boa parte de sua vida. Jogou três copas do mundo, ganhando duas. Conquistou inúmeros títulos estaduais com a camisa alvinegra do Botafogo, vestiu a camisa rubro-negra do Flamengo no final da carreira, em jogos de exibição, e se perdeu no campo da vida quando a bola deixou de correr à sua frente.

Carregou até o fim dos dias a fama de reprodutor indomável. E teve 13 filhos, com três mulheres diferentes (uma delas, a famosa cantora Elza Soares). Triste, solitário, infeliz e quase sempre embriagado, viveu seus últimos anos entre consultórios médicos, clínicas de desintoxicação e até hospitais psiquiátricos. O fígado e o coração resistiram até o dia 20 de janeiro de 1983. Tinha 49 anos de idade.




terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Edna Lopes - Pétalas, Uma antologia de bolso de Cineas Santos

De Pétalas - Cineas Santos


Nos primeiros dias das férias, em Salvador, o presente chegou pelas mãos da bela piauiense Lívia, namorada do nosso sobrinho e dono da casa que nos hospedava. O dono do mimo não sabia onde “andava” os óculos e lá fui eu ajudar a procurar. Bem depois entrei no quarto e perguntei “é bom” e a resposta foi “É”. Guardei a resposta. Ela me seria útil para a escolha de companheiros de viagem em mais alguns dias.
Mala pronta, coloquei o livro na bolsa e durante os cinco dias da viagem li-o umas quatro vezes. Li, sofregamente, no vôo, ouvindo bossa nova com o fone nas alturas e as lágrimas escorrendo, para espanto e consternação dos passageiros do lado. Certamente chorar e rir, sozinha, sem um motivo aparente deve ser uma cena que causa curiosidade a qualquer pessoa. Mas li também aleatoriamente, nas filas intermináveis para o almoço ou jantar durante o congresso da CNTE e, religiosamente, a cada vez que me enfiava nas cobertas no quarto do hotel, nesse meu começo de ano, em Brasília.

Leio Cineas Santos desde a primeira postagem neste blog, onde, semanalmente, nos presenteia com um texto. Presente para quem se fez seu leitor, pois é um excelente cronista, nos emociona às lágrimas na mesma proporção que nos faz rir, com seus textos impecáveis, com seu olhar poético, bem humorado e lindamente humano, fotografando o cotidiano.
Ler Pétalas do poeta Cineas foi como tomar um gole de água pura e fresca num meio dia de calor escaldante. Pequenos grandes poemas se espraiaram aos meus olhos ávidos, sedentos por lamber o mel do amor que escorria em cada um deles, mesmo os mais tristonhos, os mais saudosos.

Perdão, amor:
Na pressa de fruir-te inteira,
Fruto mil vezes proibido
Eu não te disse:
O melhor de mim não se mostra. (Bilhete II)
(...)

Deixa que eu te habite
Antes que o galo cante
E por três vezes me negues
E, para sempre, eu te renegue. (Habitar-te)
(...) 

Faz frio na terra do nunca
E a menina pede pouco
Colo, sopa, pão...
Presa na tela
ela sempre será a mesma:
Triste, solitária, eterna
Com sua fome de infância. (Sempre)

Pétalas é um livro excepcional, daqueles que parecem ser produzidos para presentear, encantar, pois exala um raro perfume: a beleza da alma de um homem comprometido desde sempre com a palavra, seus mistérios e encantos.
Cada escrito que li de Cineas, prima pela qualidade, pela coerência e sabedoria de alguém que olha a vida com a ternura e a leveza que só a poesia produz. Vale destacar, ainda, que as Pétalas de Cineas publicadas nessa despretensiosa “antologia de bolso” vêm de outros canteiros. Estão espalhadas por aí em outros livros de sua lavra e como ele bem disse em uma de suas crônicas “... em Teresina, até as pedras sabem que não respiro bem sem a minha cotidiana ração de poesia” eu cá fico torcendo para mais e mais e sempre dessa “ração” de beleza e sensibilidade.

Cineas por ele mesmo
Um pouco sobre mim

Cineas das Chagas Santos nasceu em Campo Formoso, município de Caracol (PI), em setembro de 48. Vive em Teresina desde 65. Professor, editor e livreiro, fundou, com alguns companheiros de geração, o jornal alternativo “Chapada do Corisco” (76/77). É proprietário da Oficina da Palavra e coordena o grupo A Cara Alegre do Piauí. Publicou: Miudezas em Geral (poesia); Tinha que Acontecer (contos); ABC da Ecologia (cordel); Aldeia Grande (humor) e o Menino que Descobriu as Palavras (infantil).
http://www.portalsrn.com.br/cineas_santos28.htm

O livro:
Pétalas / Cineas Santos.Teresina: Oficina da Palavra, 2010.

Nota do blog: do Cineas Santos recebi a informação de onde onde as cobras dormem...
 
Meu irmão:
O livrinho é encontrável na TOCCATA DISCOS - Rua Angélica -1467  (cep:  64049-280) Teresina (PI). Endereço eletrõnico: toccatadiscos@yahoo.com.br. Fone (86)323-2151. O livrinho é barato que nem bolo frito em fim de feira : 12 reais. Grande abraço do Ancião






domingo, 13 de fevereiro de 2011

Atenda o chamado, irmão!


“Jesus vai voltar”
Pichadores de Cristo nos muros das cidades.

Dizem que abrir uma igreja, seja lá a que deus vá servir, é mais fácil do que abrir um botequim. Deve ser. Durante a minha viagem de férias, em janeiro, visitei mais de três dezenas de cidades, de Maceió a Santa Cruz de Cabrália, e nessas andanças vi mais igrejas do que botecos, algumas humildes, outras, verdadeiros monumentos baseados na arquitetura do Império Romano, como é o caso de certo templo a um passo de um shopping de Salvador. 

Os nomes, a maioria, incompreensíveis, talvez para facilitar na engabelação da fé dos crentes e tementes a Deus, seriam cômicos se não se tratasse de se enganar a gente humilde. Como sou um descrente em religião, fico a matutar o que vem a ser uma “Igreja a Serpente de Moisés, a que Engoliu as Outras” [RJ] ou “Igreja Evangélica Pentecostal Cuspe de Cristo” [SP]. Em Belém do Pará os pastores apelaram para a ignorância geográfica dos fiéis e tascaram o nome da igreja como “Jesus Nasceu em Belém”. Em Londrina, Paraná, o grupo GLBT não pode reclamar da perseguição urdida pelas religiões tradicionais. Foi fundada a igreja alternativa “Igreja Evangélica Florzinha de Jesus”. No mesmo caminho seguem os cariocas, com a “Igreja do Ministério Favos de Mel”. Em João Pessoa, capital da Paraíba, os pastores se superaram ao fundar a “Igreja Evangélica Assembleia dos Primogênitos”.

Conheço um cidadão, em Salvador, que ralou a vida inteira consertando fogão e geladeira e nunca conseguiu se aprumar na vida. Morava num bairro classe média baixa, andava de utilitário de segunda mão e os filhos estudavam em escola pública. Um dia resolveu fazer curso de pastor por correspondência, fundou uma igreja e um ano depois comprou apartamento de cobertura num bairro chique e passou a andar em carro importado. A última vez que o encontrei, era dono de três igrejas, vários carros do ano na garagem e ele, a mulher e os filhos andavam, cada um, com seu próprio motorista devidamente engravatado.

A igreja católica, que converteu seus fiéis a ferro e fogo, hoje também virou um balcão de negócios e por lá se vê padres negociando a fé tão descaradamente que chegou ao ponto de cobrar para colocar o nome do cristão em suas orações. Se você não sabe rezar ou tem preguiça de fazê-lo, não precisa se preocupar: mediante uma determinada quantia os padres rezam por você. Se você é cético e descrê do que digo, sintonize algumas emissoras de TV e verá os mercadores da fé em ação. Há programas que são verdadeiras máquinas de fazer dinheiro com as promessas de se realizar milagres. Só falta agora vender indulgências, porque já está faltando madeira pra se vender como “pedaço da Cruz de Caravaca”, que, por sinal, era feita de ouro, mas os incautos não sabem disso, e começa a faltar água em alguns rios onde se engarrafa a “água santa do Rio Jordão onde Cristo foi batizado”. Na Igreja do Bonfim, além das fitinhas com a medida do pé do Senhor do Bonfim, a igreja descobriu um filão de ouro: vender água benta engarrafada. 

Contudo nem tudo é pilantragem ou negociata da fé nas igrejas. Ao menos na ficção. Em Girassol, cidade em projeto, cujas operadoras de celular funcionam às mil maravilhas, tem um padre bonzinho, que cuida de muitas crianças e nunca foi acusado de pedofilia, apesar de ter um poderoso fazendeiro e o delegado como seus ferrenhos inimigos. O padre de Saramandaia era bonzinho. O de Sucupira e Asa Branca também. Porém, se depois de ler esta crônica você, leitor, se sentir angustiado, com gosto de sabão na boca e sem saber que rumo tomar, não se desespere porque certamente foram forças esotéricas que o guiaram até este blog para saber das boas novas: chegou a Igreja Desenvangélica Ingericana, a que libertará o homem dos grilhões dogmáticos e devolverá aquilo que lhe foi tirado pelas religiões: o livre arbítrio. 

Portanto, se a sua falta de fé lhe angustia ou se a fé excessiva lhe causa prejuízo, entre agora mesmo para a Igreja Desenvangélica Ingericana e sinta a plenitude cósmica em viagem transcendental ao encontro da Verdade sem a histeria coletiva dos trezentos e vinte e cinco pastores. Sua contribuição financeira será apenas um pequeno financiamento para a vinda de Cristo, pois, como é sabido de todos, Ele está voltando de ônibus intergaláctico e precisa de dinheiro para o bilhete de passagem.

Aleluia, irmão!