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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Maurício Melo Júnior - Elogio à preguiça

O evento foi armado para incentivar investimentos econômicos na Bahia. O centro de convenções abriu seu salão de exposição e ali era possível desvendar todas as oportunidades, todas as potencialidades agrícolas, industriais, turísticas. Das belezas naturais de Abrolhos, às pedras da Chapada Diamantina, à fronteira produtiva do Oeste, às praias, aos sertões, às infindáveis modalidades de carnaval, tudo reunido e exposto para encantar os olhos e afrouxar os bolsos abastados de empresários paulistas.

Homens pragmáticos e objetivos, eles, os paulistas, chegaram à caráter. Com ternos bem cortados, celulares modernos, faros refinados, desconfianças na ponta dos dedos. Na companhia do então Secretário da Indústria e Comércio, Benito Gama, e com o auxílio luxuoso de belas baianas vestidas a rigor, os empresários e investidores em potencial cortaram a fita e invadiram o recinto com todas as pompas necessárias.

Foi aí que o secretário entrou em pânico. O primeiro estande brindava o turismo local e, bem deitado em sua rede, num retrato colossal, Dorival Caymmi, sorriso aberto, e sua legendária preguiça recebiam os visitantes. Benito quase chora ao ouvir o menos ousado dos convidados lhe perguntar ao ouvido: “Este é o trabalhador que vamos encontrar?”

Todo esforço começava a ir Subaé abaixo.

Os detratores da Bahia podem dar razão aos paulistas, um povo trabalhador, que em bem menos de um século transformou uma vilazinha chinfrim na maior metrópole da América Latina. De minha parte, fico com Caymmi. Tenho certeza que foi a preguiça de andar e carregar peso que fez nossos ancestrais inventarem a roda. E neste ritmo dolente nosso Dorival construiu belezas infindas. Noves anos foram necessários para fechar a saga de João Valentão, e valeu à pena esperar.

O repórter que foi entrevistá-lo em seu apartamento no Rio de Janeiro o encontrou sentado em uma cadeira de balanço de frente para um ventilador. “Mestre, por que não liga o ar-condicionado?”, quis saber o curioso. “Prefiro o vento, meu filho. Veja que foi neste balanço aqui que compus, por exemplo, Milagre – Maurino, Dadá e Zeca…”, cantarolou. E a conversa seguiu. No final da tarde tomou o elevador para levar o repórter até a porta do edifício.

Desceu junto com eles uma menina com sua babá. “Como está na escola, minha mocinha?”, quis saber o poeta. “Tudo bem, tio. Hoje a gente aprendeu música.” “E que música vocês aprenderam?” “Meus companheiros.” “É mesmo? Como é esta música?” “Minha jangada vai sair pro mar / vou trabalhar / meu bem querer. / Se Deus quiser quando eu voltar do mar / um peixe bom / eu vou trazer. / Meu companheiros…”, a menina cantava e os olhos do compositor marejavam de emoção.

Por tudo isso, mais vale sua preguiça, mestre Caymmi, que todos os dias de trabalho do senhor secretário e seus convidados.

Preguiça é bom remédio, há anos sabe bem outro poeta, Orlando Tejo. Com preguiça e criatividade ele fugiu do serviço militar obrigatório. Alegou às autoridades constituídas que não podia servir à pátria por ser arrimo de família. Desconfiados os milicos foram tirar a prova. Numa manhã radiosa de Campina Grande bateram à porta do poeta. Atendeu um irmão do mestre Orlando. “O senhor Orlando Tejo se encontra?” “Tá sim, mas dormindo.” “Mas ele não é arrimo de família?” “Isso eu não sei. O que sei é que ele toca uma sanfona arretada.”

Os defensores da pátria entregaram os pontos. Não havia espaço para sanfonas e redes no quartel, com certeza.

Todas estas histórias são de tempos passados. Há cerca de quinze anos vivemos outros ventos, desde que virou moda ler os ensinamentos de um italiano de nome Domenico de Masi. O ócio criativo tornou-se febre e aquilo que Caymmi e Tejo apregoavam com esplendor ganhou fórum científico. Hoje até mesmo os trabalhadores, os ferrenhos sindicalistas defendem uma jornada de trabalho mais condizente, com espaços para o ócio e o lazer. Quarenta horas já, gritam nas assembleias e pelos corredores legislativos. Precisam de tempo para melhor cuidar da família, da saúde, da vida. E, maus leitores de nossos intelectuais, entronizam o velho Masi italiano.

Na preguiça de minha rede antiga redobro o fôlego criativo relendo meu Gilberto Freyre de sempre. Pois bem, lá pelos idos dos anos quarenta, quando o mundo saía de mais uma insana guerra, o lobo de Apipucos escrevia dizendo que os homens precisam de mais lazer e vagar para se tornarem mais humanos. E já chamava isso de, pasmem!, ócio criativo. Quase ninguém ouviu.

Gilberto tinha tutano, conhecia a rede, indiscutivelmente uma das mais fantásticas invenções da humanidade. Lugar de parto e descanso, de amores e deleites, serve também à reflexão. Eu mesmo conheci um advogado e escritor de Belém do Pará, Benedicto Monteiro, que escreveu toda sua obra na rede. Até mesmo os vetustos pareceres sobre direito agrário, sua especialidade, nasceram no remar daquele balanço.

Conhecedor de mundos e universos vastos, Câmara Cascudo nos ensina que “toda ou quase toda aquela gente que arrancou o Acre para o Brasil nasceu e morreu dentro de uma rede balouçante”. E olhe que não foi fácil ganhar aquelas paragens. Houve tiros e revolução, matança e correrias, essas gestas cruéis para expulsar os índios de suas terras. E no fim da luta aqueles homens e aquelas mulheres, gente tão do Brasil, voltavam para as redes e seguiam fazendo a nação.

De minha parte faço o mesmo. Nesta tarde ensolarada, paro aqui o ofício de cronista e vou para a rede dar alento ao meu criativo ócio.


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Maurício Melo Júnior - Poemas para Alagoas


Impossível lembrar o dia, impossível lembrar as emoções, se é que as tive. Uma certeza? Vinha nos braços de minha mãe e trazia apenas a leveza despreocupada de meus poucos meses. Foi a primeira vez que vi Alagoas e por ali fiquei na deslembrança de minha primeira infância. Coisa de três anos depois voltei para Pernambuco, mas a terra de massapê coberto de cana e o rio Camaragibe formando barrancos miúdos já me eram íntimos, tinham-se feitos como partes da argamassa que me criou.

Como a vida precisa ser vivida nos espaços que oferece aos homens, fui caminhando, tocando os dias. Vez que outra, sobretudo nos finais de ano, voltava, percorria na procissão do Bom Jesus as ruas de Matriz de Camargibe e de maneira involuntária absorvia todos os ensinamentos daquela gente marcada pelo melaço da cana e os gritos da usina. Fiz tudo que me outorgava a idade. Andei a cavalo, brinquei de finca e quando a idade permitiu conheci matadores e cantei pelos bares: “Matriz é terra boa / é meu natural. / O amor que tenho a ela / É grande e sem igual.”

A cidade tinha seus poetas, como o parnasiano Fabrício Braga, meu tio, que escrevia sonetos contando seus amores pela terra. Outros vinham da vizinhança, do Passo, como seu Nelson, um poeta de verve popular. Sempre chegava proclamando seu bordão: “Se o Passo não fosse o Passo eu não passava pelo Passo, mas como o Passo é o Passo, eu passo pelo Passo”. E nas horas de desamores por sua terra recitava: “Eita Passo do Camaragibe / Cidade triste e atrasada / Tem meia dúzia de gente / O resto não vale nada.”

Os poetas nem sempre são muito justos, pois o Passo fomentou uma das maiores culturas deste país. Foi no balcão da loja que o pai mantinha na cidade que Aurélio Buarque de Holanda ouviu pela primeira vez o termo ôxente, e saiu à cata de saber do que se tratava. Descobriu ser uma corruptela da expressão “ô gente”, e nunca mais parou de estudar a língua portuguesa. E deu no que deu.

Posso dizer que conheço Alagoas e o quanto me dói ler o noticiário que gera. Isso já atingia o poeta Jorge de Lima. Sempre que vinham falar com ele sobre a violência de seu estado, ele, que também foi vítima de tal violência, retrucava: “As minhas Alagoas são outras”. Esta mesma frase usei muito quando há poucos anos alguns amigos falavam da corrupção que se espalhou pelo país no bojo de um governo que se dizia inovador e progressista, mas que nacionalizava práticas doentias. E pensei voltar à carga diante da recente notícia do IBGE apontando o estado como o campeão brasileiro em analfabetismo.

Verdadeiramente as minhas Alagoas são outras, como também são outras as Alagoas dos alagoanos reais. Como o Brasil definido por Machado de Assis, existe sim uma Alagoas real e uma outra oficial. E, tenham certeza, a primeira é mais vítima que responsável pela segunda. O açúcar que fundou a província, também a afundou, pois no bojo de suas ambições foram criadas todas as desigualdades que hoje maculam a terra de um dos maiores juristas brasileiros, Pontes de Miranda.

Outro dia ouvi alguém confessar o estranhamento de não conhecer nenhum benefício feito por luminares, como a doutora Nise da Silveira, às Alagoas. Isso é argumento de quem não conhece os fatos. Graciliano Ramos no relatório que enviou como prefeito de Palmeira dos Índios ao governador Álvaro Paes, em 11 de janeiro de 1930, fala desolado da instrução pública da época. “Instituíram-se escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos. Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelam, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras. Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.”

Mestre Graça fez mais. Depois que se tornou Diretor da Instrução Pública, uma espécie de Secretário de Educação da época, mandava as professoras estudarem novos métodos de ensino no Recife, comprava fardamento para os alunos e, uma revolução, pioneiramente instituíu a merenda escolar. Mas os roceiros não podiam se dedicar às discussões políticas e à leitura de sonetos, como logo descobriu o escritor ao ser demitido do cargo, preso e deportado para o Rio de Janeiro.

Esta prática espalhou-se pelo país. No dia 2 de abril de 1963, diante de todos os governadores do Nordeste, do presidente João Goulart e do general Castelo Branco, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, o aluno mais velho da primeira turma formada pelo método Paulo Freire escreveu no quadro: “Há trinta anos, o dr. Getúlio veio aqui matar a nossa fome de barriga. Agora o senhor veio matar a nossa fome de cabeça”. Acabada a festa, quando todos iam embora, o general falou para o Secretário Estadual de Educação, Calazans Fernandes: “Meu jovem, você está engordando cascavéis nesses sertões”.

O resta da história já se sabe. Um ano depois, liderando um golpe militar, Castelo Branco se fez presidente e começou a esmagar as cascavéis, experiência seguida por seus sucessores.

Assim caminha a educação deste país. Felizmente muitas experiências procuram quebrar esta desgraça, como os sarais poéticos que acontecem nas periferias de São Paulo e Brasília, onde se lê sonetos e se fala de política pública, mas a mediocridade que ainda domina Alagoas, segundo nos informa o IBGE, insiste em expulsar Graciliano Ramos de sua terra.

Tenho esperanças e mesmo não sendo poeta, acalento o sonho de escrever versos que possam ser lidos por todos os alagoanos, por todos os alagoanos de fato.


sábado, 12 de novembro de 2011

Maurício Melo Júnior - Névoa poética sobre a Academia

Os do Norte chegaram arrastando seus sonhos. E o Norte era longe, improvável. Traziam também na bagagem vastas emoções, culturas. Pela estrada cumprida – no mar ou na terra – corriam tantas vidas, tantas paisagens, tantas cores que preenchiam as retinas mais amplas e abertas. E com suas cargas entranhadas na pele, os do Norte espalharam-se por todas as partes.

Um deles, de nome Nabuco, Joaquim Nabuco, falava de noites escurecidas pela opressão onde a resistência fazia nascer desejos libertários. Pelas pregações que fazia, o negro Tobias que esfaqueara de morte o patrão num engenho de Pernambuco não matara um homem, mas séculos de humilhação e dor. Foi contra os incontáveis lanhos abertos nas costas de seus pares que investiu o pobre escravo. Depois da abolição, ainda prenhe de ideário renovador, o agora maduro jurista sofreu por não ver realizado o projeto de inclusão social que sonhou para os deserdados da sorte e se voltou para seus escritos e sistematizou uma academia para abrigar as letras do Brasil. Hoje perpetua-se, com gingado de dândi, na calçada da instituição.

Ao seu lado, sentado numa escrivaninha, tentando arrancar alguma poesia da rigidez do bronze que lhe segura sempre na mesma posição, outro do Norte, Manuel, de sobrenome Bandeira. Este nunca conseguiu chegar em Pasárgada, no entanto escreveu passos líricos em quilômetros incontáveis de terras espalhadas por todos os continentes. Semeou versos em cada palmo desse chão, seduziu a todos com as belezas de sua criação. Sua voz de tísico, de homem com pulmões capazes de tocar tangos argentinos se ouviu alta, em palavras fortes e indissolúveis. Se fez herói trabalhando somento verbos e sentimentos: “Não faço versos de guerra, não faço porque não sei, mas num torpedo suicida darei de bom grado a vida na luta que não lutei.”

Por tudo isso está ali, na calçada de um edifício alto, de muitos andares, com incrição no pilar principal: Palácio Austregésilo de Athayde. Este também era nortista. Foi numa conversa com Rachel de Queiroz, também filha da terrinha, que o assunto surgiu: “Você precisa ouvir o Athayde. Ele tem mais de 90 anos e uma lucidez invejável. É da raça cearense.” “Dona Rachel, ele estudou no seminário de Fortaleza, mas é pernambucano de Caruaru…” “Meu filho, quando o menino é bonito todo mundo quer ser o pai.” Athayde não era necessariamente um homem bonito, portava mesmo uma feiúra danada, mas as palavras saiam com facilidade e explendor de sua imaginação. Em essência foi cronista, homem de jornal, conhecedor dos rigores da linguagem e sua necessidade na defesa dos direitos naturais do bicho humano. 

Hoje se caminha pelos espaços desses edifícios – o palácio propriamente dito e o menor, o mais clássico, o dito Petit Trianon – respirando os prazeres da cultura. Quem preferir pode subir outros andares, onde se cuida de negócias que sustentam numerários, de minha parte vadio olhando livros, reedições bem cuidadas de obras raras e fundamentais – João do Rio no cinema, cartas de Machado de Assis. A língua portuguesa, essa nossa pátria tão judiada, olvidada, precisa de defesas, imunidades que mantenham suas particularidades, suas características seminais. Penso nisso ao cumprimentar o gramático Bechara, outro do Norte. E sigo sem saber bem o que fazer. 

Como peixe-agulha encantado com a luz de lanternas, pulo em outro barco chamado por um cartaz imenso – Presença Poética do Recife / Exposição Sobre o Centenário de Mauro Mota. Desculpe a fraqueza desta memória, meu poeta, mas seu nome estava escondido numa prateleira mais alta de minha cabeça e há muito que não esticava o braço até lá. É também que este país, esta máquina de moer talentos é tão eficiente em sua faina cruel que as vezes nos entregamos ao sentimento ruim e em tempos mais eufóricos esquecemos os primores de ontem. Coisas do bicho humano, você sabe. 

O certo é que passei por um passado que me parecia distante, imemorial, sem lembrar que era parte primordial de meu âmago. O Recife, os canaviais, os engenhos. Tudo isso que foi seu desfilava sob meus olhos de saudade. Livros, poemas, análises de sabor sociológico, o fabrico de uma cabeça inquieta que ousou pensar Pernambuco como pedaço do Nordeste, mas também por isso, síntese do vasto mundo. Daí o carinho pelas tecelãs, pelas moças assustadas com os tiros da guerra e encantadas com a beleza nova de homens vindos de outros Nortes. E a vida em família, entre filhos e amigos. A beleza de Hermantine, a que tinha mãos feitas para construir destinos. O primitivismo artístico brotado das telas de Marly, a de mãos feitas para expressar o belo. Um cochicho com Gilberto Freyre. Um abraço em Chacrinha, o bonachão nortista Abelardo que veio saber de sua glória chegando à Academia. Muitas lembranças, meu velho.

Tudo se transmuta, quando preciso, em poesia. As estantes centenárias da biblioteca me mostram Ferreira Gullar, também do Norte, pedindo a Bandeira que leia seu livro de estreia, Um Pouco Acima do Chão. No mesmo patamar, um volume magro com poemas de Ascenço Ferreira traz dedicatória fraterna ao mesmo Bandeira. É tanta vida a se olhar, moço, que sigo carregando o orgulho de também ter vindo do Norte e poder juntar as forças de um talento miúdo para falar de esferas infindas. 

Penso no tanto que Pernambuco, bicho atrevido que gosta de falar para o mundo, plantou neste solo fértil. E sento para ouvir Carlos Fuentes falar de outros mundos. O México rebelado, Pedro Páramo, gente que conversa com fantasmas, as possibilidades infindas da literatura.

O mundo é grande e não tem porteiras. E as academias quando querem sabem encontrar os caminhos da atividade, do saber e da grandeza.


sábado, 8 de outubro de 2011

Maurício Melo Júnior - Andar com fé

Bebíamos cerveja e falávamos de poesia, dois belos exercício para quem mora na aridez do cerrado, sob a sombra imensa dos edifícios feitos de concreto armado e modernidade. Naqueles idos o poeta Cassiano Nunes ainda se dava ao direito de degustar seu campari sem máculas. E ali estávamos entre goles e versos.

Um moço, desses que se equilibram nas desigualdades sociais de uma cidade qualquer, como quem nasce das sombras entra no bar e nos brinda com pequenos panfletos ordinários. Cassiano foi quem deu atenção ao papelzinho, a propaganda de uma brilhante cartomante capaz de desvendar todos os mistérios de nosso futuro e nos guiar para infalíveis dias melhores. “Não posso acreditar numa coisa dessas”, sentenciou o poeta, e nos contou o porquê.

Ele morava ao lado da casa de uma dessas videntes. A moça vivia à tripa forra, com carro de luxo e alto bem-estar social. Lendo na varanda, deitado em sua rede, o poeta, já aposentado como professor universitário, podia ver a romaria cotidiana à casa da vizinha. Isso de segunda a sexta, posto que, nos finais de semana, funcionária metódica, ela se dedicava às lidas domésticas e ao descanso. E foi num desses dias que ela pôs para secar nas grades de sua casa um imenso tapete. Fim de tarde, finda a faxina percebeu que alguém mais experto levara seu tapete. E Cassiano nos lembrava: “Se ela é capaz de adivinhar o futuro, como não previu que um ladrão passaria em sua porta?”

Verdade. Talvez o ofício destas moças seja mesmo o de se valer da ilusão alheia, da fé que transporta tanta gente, como Nazaré, uma doméstica que arrumava a bagunça de nosso tempo de estudante no Recife. Morávamos em Afogados em uma casa de muro baixo, como então era comum. Voltando do colégio, com relógio batendo quase uma da tarde, encontrei a moça conversando com alguém no portão. Atarantado com o excesso de livros que carregava, sempre uma cota bem além do que me exigia os professores, entrei formulando os cumprimentos de praxe. Fui tomar banho e sai do banheiro com os gritos escandalosos de minha irmã: “Como você fez uma besteira dessa?” Nazaré dera todo seu salário à mulher que prometia tirar dela um encosto que a estava levando a se envolver com um homem casado, o que desgraçaria de vez a sua vida.

Os pressupostos da fé sempre a dominar a esperança.

Outros encontros tive com estes mistérios.

Jornalista de ofício, cobria a movimentação de uma feira de livro em Brasília. Num almoço com os autores convidados, a poeta Hilda Hilst confessou-me que justo naquele dia da semana ela, como de praxe, precisava consultar um desses oráculos. E, claro, queria minha ajuda, já que não conhecia nenhum mago da cidade, a mesma situação em que me encontrava. Apelei para uma amiga que escrevia uma coluna esotérica no jornal e que me passou o telefone de uma certa Tia. Liguei do restaurante mesmo e deixei tudo acertado para o encontro. E Hilda me faz mais um apelo: “Você vai comigo?” Fui.

Pelo caminho a poeta contou-me de sua pouca intimidade com a fortuna. Nascera numa família de posses, mas o tempo se encarregou de levar tudo, inclusive sua intensa beleza física. Foi uma moça longilínea, elegante, de riso largo e olhar marcante, vivo. Belíssima, recebeu incontáveis propostas de casamento, mas dedicou-se aos namorados, como Vinícius de Moraes e o ator Dean Martin. E em Paris, solitária em um bar, foi assediada por um senhor de modos determinantes. Convencido do insucesso de suas investidas, o homem quebrou o copo em que bebia uísque, pagou a conta e se foi para sempre. Era Howard Hughes, então o homem mais rico do mundo. 

Minha amiga não tinha intimidades com a fortuna, e por isso estávamos ali, na morada da Tia, um apartamento pequeno e recheado de coisas, uma atmosfera pesada, opressiva. Fiquei na sala enquanto Hilda foi se consultar no quarto. Saiu impressionada. E aí a vidente se volta para mim: “Preciso lhe dar um passe.” Desconversei, mas novamente não resisti aos apelos da poetisa. E então fui banhado com um perfume fortíssimo e de cheiro terrível. No final recebi a sentença: “Você está destinado a um futuro brilhante, mas há um problema em sua vida. Sua mulher. Você precisa se separar para cumprir seu destino de sucesso.” Mas naquele instante meu único interesse era chegar em casa e tomar um bom banho.

Impressiona-me a capacidade de manipulação de vidas dessas videntes, dessas pessoas que simplesmente brincam de dados com o cabedal de crenças de cada um.

Há toda uma indústria de vendas de esperanças, sobretudo nestes espaços milenaristas em que vivemos. Depois de um século tecnológico, onde as máquinas ditaram o ritmo das vidas, ficamos carentes de mistérios. E daí a enxurrada de magos e videntes.

É certo que a fé ajuda a sustentar os homens nos seus princípios éticos. “A fé não costuma faiá”, nos diz Gilberto Gil. Pena que todos os seus benefícios sejam esquecidos e sua força seja usada para manipular vidas e rechear bolsos espertos. 

Como não creio que qualquer homem possa saber do futuro de outro e também tenho por princípio cuidar de minha própria vida, não me separei até hoje, contrariando a sugestão da Tia. Não sei se fiz certo ou errado, certeza mesmo é que me sinto muito feliz com minha escolha. Não foi desta vez que me roubaram o tapete. E assim prossigo, com fé na vida.


quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Maurício Melo - A César o que é de César

O folclore político mineiro está repleto de historinhas do genial José Maria Alkmin. Político de longo curso, mais estrada tinha nas tiradas sempre bem humoradas. É dele um lema que constantemente adoto: “Reunião não resolve nada. A gente primeira decide depois se reúne”. No entanto sua frase talvez mais famosa, por conta dos ares filosofais, diz que “não importa os fatos, mas a versão dos fatos”.

Conta-se que um dia Gustavo Capanema teria cobrado de Alkmin a autoria da frase. E ele implacável: “Você pode ter dito lá nas grotas, no interior, mas aqui na capital fui eu quem disse primeiro, o que só confirma a verdade de nossa frase.” Tá explicado.

Esse negócio de autoria é sempre um complicador. Que o diga Gustavo Krause. Denunciado pelo seriíssimo hebdomadário Papa-Figo, do Recife, como proprietário de um certo Bank Krause sediado na Alemanha, o ex-ministro não perdeu a pose. Telefonou para Bione, proprietário, redator e office-boy do tal jornal, para oferecer empréstimos e outras vantagens financeiras. O repórter negou-se a receber qualquer propina do suposto banqueiro. E voltou a denunciá-lo no jornal, como qualquer jornalista probo, impoluto, cônscio de seu ofício.

Gustavo, boêmio assumido, sem nada de banqueiro, tem alma de poeta. Por isso acreditei ser de sua autoria uma frase belíssima. Depois de passar pelo Ministério do Meio Ambiente no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, foi convidado para continuar na equipe de ministros que estava se armando para o segundo mandato do sociólogo. Recusou o convite e provocado por um jornalista foi taxativo em dizer que não gostaria de morar em Brasília, pois “na terra em que o mar não bate, não bate meu coração”. Uma maravilha de frase.

Passei a repetir a frase citando o suposto autor. Tempos depois, ouvindo o primeiro LP de Gilberto Gil, Louvação, lançado em 1967, remasterizado em CD, estava lá uma impecável canção, Beira-Mar, com música de Gil sobre poema de Caetano Veloso, e logo no primeiro verso “na terra em que o mar…”
Engoli em seco. Sem qualquer autorização de Gustavo, creditava a ele um verso de Caetano. Essa minha mania de falar pelos cotovelos criava-me mais uma complicação, enfim.

Esta não foi minha única, nem certamente será a última confusão em creditar autorias. Às vezes confundo autores, digo de um histórias acontecidas com outro, uma confusão danada, um inesgotável repertório de equívocos, mas tudo em nome de uma boa conversa, tudo por conta de confiar numa memória que não é lá tão generosa. Por conta disso, desconfiado de mim mesmo, também escondo algumas descobertas e evito o constrangimento de passar por mentiroso.

Deu-se um fato desses quando, profundamente impactado pela leitura do Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, isso lá pelo início da década de 1980. Durante semanas, eu, já um monotemático empedernido, só falava do livro. O sujeito contava de futebol e eu inventava como seria um partida com Quaderna, um outro dizia de política e eu salientava que o pior tinha se dado no sertão de Pernambuco. A obsessão era tanta que até Orlando Tejo perdeu a paciência e me encarou: “Maurício vou pedir ao Ariano para escrever outro romance, pois só assim você muda de assunto.”

Mudei, mas fiquei ruminando calado um erro desgraçado que tinha no livro. Domando meus impulsos, guardei segredo por anos. 

O diabo quando não vem manda o secretário, ensina o povo. Pois bem, o poeta Marcus Accioly fazia uma visita à casa de minha rapariga. Explico. Eu alugava uma sala onde guardava meus livros e dizia ser ali a casa de minha amante, pois somente me dava prazer e grandes baixas na conta bancária, como, aliás, acontece até hoje.

Voltando à visita, Marcus aponta o romance de Ariano e pergunta se eu tinha percebido o erro das mãos postas. Percebera sim.

Tiro o trecho da página 79 da quinta edição: “Em seguida, José Viera pega um filho de dez anos, coloca-o na Pedra dos Sacrifícios e decepa-lhe o braço do primeiro golpe. A vítima, ajoelhando-se, bradava-lhe, de mãos postas: ‘Meu Pai, você não dizia que me queria tanto bem?’”. Essa história do filho, com o braço decepado, rogar de mãos postas incomodava-me e eu não tinha coragem de falar do assunto até que apareceu o poeta, mas logo voltei ao meu silêncio.

O alívio só veio quando li Folk-Lore Pernambucano, de Pereira da Costa. Está lá a crônica de um autor anônimo sobre a Pedra do Reino com o famigerado trecho do braço decepado e das mãos postas.
Agora danou-se, seria Ariano um plagiário? Voltei ao romance. Antes de contar toda a saga, pela voz do narrador Quaderna, o mestre conta que para falar do episódio sangrento recorrera a outros autores, inclusive Pereira da Costa. Ou seja, tudo não passou de uma desatenção deste mau leitor que vos escreve.

Cada dia que passa convenço-me mais ainda que devo voltar urgentemente a reler a Bíblia. Moacyr Scliar dizia que ali que pescou muitas das histórias que contou, mas esta não seria minha motivação. Também não me estimula seus conceitos religiosos. Buscaria no livro o fantástico ensinamento de vida que encerra cada uma de suas páginas.

E também é lá que a gente aprende, enfim, a dar a César o que é de César.


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Maurício Melo Júnior - Renunciar palavras, frases inteiras

Nas mãos repousavam os originais de um clássico. Um papel amarelado pelo tempo, descolorido pela ação de tantos dias, iluminado pelo olhar atento de incontáveis leitores. Um clássico. Na página agora frágil e preciosa, num tempo de muito ontem, o autor, determinado e conciso, riscou o título já impresso com a força da máquina tipográfica: O Mundo Coberto de Penas. Sobre a frase riscada, a nomeação definitiva: Vidas Seccas. Assim mesmo, com dois cês, como exigia a gramática da época. 1938.

Alguma mensagem ainda oculta naquele caminho tantas vezes percorrido? Segui em frente debatendo-me com outras tantos riscos, outras tantas correções, outras várias necessidades de se apurar a linguagem, secá-la, enxugá-la, extrair de cada palavra o máximo de suco e delícia. Um ofício danado de incertezas e revisões este de botar no papel as vidas imaginadas.

No mesmo dia me deitei sobre outro emaranhado de palavras escritas numa letra miúda, maldita, ilegível. Um caderno escolar pautado e ocupado da primeira à última página em todos os espaços possíveis. O autor devia ser muito pobre, posto ter economizado cada milímetro do papel, como se temesse faltar brancura onde pontear suas idéias. Branco mesmo, de fato, somente parte da primeira página onde se podia ler com alguma clareza uma única frase: Memórias de um Menino de Engenho, com um risco forte cortando as três primeiras palavras.

Como daquele mato não me pareceu possível retirar algum coelho, parti para outro encanto. Um volume massudo, gordo, farto, coronelístico. A primeira palavra do texto datilografado com esmero foi preservada: Nonada. Também o título, desenhado com caneta colorida, em letra de forma, com certa simetria sobre o papel – Grande Sertão: Veredas.

O que se seguia depois do Nonada era um desembestar de riscos feitos com a precisão de uma régua. Cada uma daquelas frases renunciadas era encoberta pela fúria de muitos riscos, inviabilizando em definitivo sua leitura. Sobrevivia apenas aquilo que era do desejo do autor. Nada além disso deveria prosperar, entrar para eternidade. Nonada, senhor, apenas não se deve correr o risco de macular uma obra com os erros possíveis de serem corrigidos, encobertos.

Num outro caderno, este preenchido na solidão de uma fazenda sertaneja por uma mocinha que tentava se livrar da ameaça de uma tuberculose, a letra de professora bem aplicada foi me dando lições de humanismo e brasilidade. A tal moça, na verdade, de bem comportada tinha apenas a letra e carinha inocente. Era uma danada. Primeiro burlava a vigilância paterna que a queria muito cedo na cama. Quando todos dormiam, ela, sorrateira, acendia uma lamparina e deitada no chão da sala viajava com sua criação.



O curioso é que numa conversa meio antiga a moça agora amadurecida e consagrada confessou-me não saber o paradeiro dos originais daquele livro que não gozava de sua simpatia. “É um livrinho chinfrim”, dizia prenhe de injusta modéstia. Pergunto então ao novo dono como aquilo chegou a sua imensa biblioteca. Contou-me uma estranha saga. Comprou de uma viúva a quem prometeu só revelar sua existência depois que a autora tivesse ido para o sempre. Assim fez e assim pude contemplar a renúncia de uma nordestinada bonita. No título escrito à mão podemos ler A Quinze, e sobre o A inicial um O soberano e definitivo.

Ler todas aquelas pérolas preenchidas de vacilos e determinações nos aponta para a carga humana que pesa sobre os ombros de seus autores.

Há pouco, queimando pestana com um Juazeiro centenário, li emocionado um texto ditado a um datilógrafo pelo padre milagreiro. Depois o patriarca do Cariri fez algumas correções no texto e o assinou. Era uma carta dirigida a um amigo com sugestões à Constituinte de 1932, entre elas um artigo proibindo a venda de terras brasileiras a qualquer estrangeiro, sobretudo quando estas terras estivessem em áreas de interesse primário da nação, como as matas, as vazantes dos rios, o litoral.
Quanta atualidade.

Momento houve em que velho amigo retirou da prateleira um baú de madeira pejado de papéis soltos e aparentemente desconexos. Telegramas escritos no verso, guardanapos de hotéis e restaurantes, folhas avulsas, algumas páginas datilografadas, um carnaval, um cafarnaum desgraçado. Só identifiquei que dali surgiu um livro clássico, o início de uma série fundamental e incompleta, quando li o papel envelhecido que cobria tudo aquilo: Casa-Grande & Senzala.

Seu autor publicou outros dois volumes, como se sabe, e morreu jurando que tinha escrito o quarto tomo: Mausoléus e Covas-Rasas, que teria sido roubado de sua casa. Bem desgraçado o certo ladrão de sabedorias. Havia ainda um livro com a iconografia necessária para melhor se entender a formação social do Brasil, mas este o mestre não conseguiu levar adiante.

Mergulhado nestas lembranças, sentindo o cheiro dos velhos papéis, revejo a solidão necessária ao escritor. Lidar com a palavra e suas armadilhas é ofício para quem ousa desafiar a eternidade. Indubitavelmente a morte nos espreita numa esquina. Ficarão os sonhos que deitamos no papel, caso nenhum deus do esquecimento queira nos brindar com suas graças. Mesmo assim ainda corremos o risco de alguma viúva nos resgatar do limbo.

E como o futuro parece ser uma ordem, uma artimanha da arte e do conhecimento, vale a pena tomar precauções e reescrever, reescrever, reescrever. Literatura é labuta para quem sabe renunciar a facilidades.


terça-feira, 19 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - O reino do invisível

Foi assim. Um auditório repleto, coisa de difícil enfrentamento. Neste caso, no entanto, estamos num estágio ainda pior. Um auditório repleto de crianças, quase adolescentes ávidos para trucidar o coitado de um escritor desguarnecido de imaginação e esperanças. Uma horda de canibais modernos vazando curiosidade por todos os poros. O desespero aumentou quando percebi que era eu a vítima do delírio famélico daquela gente miúda, liliputianos a transpirarem sangue pelos olhos. Meu desespero aumentou quando descobri que não transitava no espaço do onírico. Na mais cruel das verdades percebi que não havia saída de emergência. Juro que invejei Hans Staden.

Como um herói despido, pisei o primeiro degrau da escada. Entrei no palco e, ateu convicto, apelei para o Senhor das Esferas – Seja o Deus quiser. E Ele foi generoso com este seu filho desgarrado. As crianças e adolescentes ansiavam que eu falasse de literatura, criação literária, essas coisas que edulcoram nossas vidas tão insossas.

Por que o senhor escreve?

Diante da primeira pergunta não temi, ao contrário desandei um rosário. Escrevo por um motivo muito simples: sou, em verdade, um grande mentiroso, e isso pode ser uma imensa mentira, afinal quem em sã consciência acredita em um embromador? Fato mesmo, buscando os cânones da veracidade, é que a fama de escritor é mais salutar que a de simulador, daí escrevo todas as minhas inexatidões e atendo convites para parolar com pubescentes hodiernos.

O diálogo não se deu desta maneira, afinal muitas das palavras aqui empregadas apanhei agora no dicionário, esse companheiro de horas infindas, mas o tom foi este mesmo. Além do mais quem falar daquela maneira, num arremedo danado do velho Camões, merece bons safanões, imensos apupos.

Esgotadas todas as agressões possíveis aos dicionários, voltemos à frieza dos fatos. Nós escritores – tenho a pretensão de ser um deles – somos vendedores de mentiras. Durantes horas, dias, meses, anos convivemos com pessoas que não existem. Mesmo assim conversamos com elas, compartilhamos todas as suas angústias, todas as suas esperanças. Choramos suas dores, rimos suas felicidades. E se por ventura algum desavisado aventureiro desdizer a mais vil e canalha destas criaturas nos tomamos de mágoas maternais e defendemos estes seres imateriais como quem se bate em favor de um filho.

Somos estranhos, reconheço.

O danado é que quase sempre nos apanhamos em dúvidas: Isso de fato aconteceu?

Ainda outra hora lembrei uma tarde vadia na Câmara dos Deputados. Sempre que conseguia estes espaços corria para a sala onde trabalhava Luiz Berto. E ficávamos ali a falar da vida alheia, mas posando de intelectuais a discutir os destinos artísticos da nação. Foi então que surgiu uma bela e jovem vate abraçada às suas produções. Era de fato uma moça interessada nos meandros da literatura tanto que, informaram-me, cursava letras numa faculdade qualquer. Berto leu as estrofes e, com uma incolor pergunta: o que você acha?, passou-me as folhas. Li. Levemente constrangido sentenciei: Lembra-me o poema Menina e Moça, de Machado de Assis. E a novel bardo pergunta com serenidade: Quem é Machado de Assis?

Terá sido isto verdade?

Vivo com meus comparsas o mundo das inverdades, mas mentimos apenas para a folha em branco. Ou a tela em branco. Resguardamo-nos numa ética que pode parecer estranha. E nos alimentamos de fantasias amando a veracidade, por isso desconfiamos sempre da vida. Ela nos espreita e nos surpreende em cada nova esquina. E há fatos que contamos desconfiando de nós mesmos, afinal a vida também é uma grande mentirosa.

Há tempos, num tempo onde ganhava o necessário para a sobrevivência dando aulas numa faculdade, fui abordado por um rapaz. Sou seu aluno, me garantia. Minha memória não chega a ser uma maravilha, mas também não costuma falhar com freqüência. E como tinha outras atividades profissionais, era fácil lembrar o rosto de cada freqüentador das poucas salas onde ministrava a ciência do jornalismo. Aquela cara, tinha certeza, me era totalmente desconhecida. E o moço insistia: sou seu aluno.

Depois de um breve interrogatório descobri o fato. O rapaz havia se matriculado em minha disciplina, mas já estávamos no final do semestre e ele não comparecera a nenhuma aula. E fazia um pedido singelo, que lhe aplicasse um teste capaz de o aprovar na matéria, pois, segundo me garantia, mesmo faltando a todas as aulas, conhecia em profundidade a matéria.

Que diploma de jornalismo eu poderia dar aquele moço?

Radicalizei. Fale-me sobre Ionesco.

Sobre quem, professor?

Eugène Ionesco.

Diante da cara de espanto do aluno retruquei. Ionesco, um dos pais do teatro do absurdo, era romeno e escreveu um clássico, A Cantora Careca, onde durante todo o espetáculo se procura a tal cantora que nunca aparece, pois simplesmente não existe. Meu caro, você é minha cantora careca. Você não existe.

Vivemos num mundo de delírios, mas procuramos sempre o caminho da sinceridade. É que ler mentiras nos parece um exercício bem honesto.


domingo, 10 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - A invasão da Terra

Somente agora consegui entender um filme de Mel Gibson, Sinais, já meio antigo. A inteligência é fraca, reconheço, pois o enredo é bem besta. Um fazendeiro americano, viúvo, cria sozinho os filhos menores até que encontra o milharal esmagado em imensos círculos. Daí decorrem os suspenses e as emoções até que se descobre o motivo de toda confusão: extraterrestres invadiram a Terra. Mais um bocado de suspense, mais outro tanto de emoção e o fazendeiro galã percebe que os alienígenas, como os franceses, não simpatizavam com banhos e passa a matá-los com altas doses de água. Pronto a Terra está salva.

Até aí entendi tudo direitinho, o que me incomodava era uma determinada cena. Como a invasão era mundial o Brasil não poderia ficar de fora e, vendo televisão, Mel Gibson é informado que um extraterrestre passeia pelas ruas de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Por que essa escolha já que tudo por aqui acontece no Rio ou em São Paulo? Conheço a cidade e quase fui expulso de lá por conta de minhas limitações culturais. Declarei num artigo que a comunidade está implantada no pampa gaúcho. Levei um puxão de orelhas: “Ficamos no Planalto Médio. Até Teixeirinha diz isso numa música.” Quem mandou não escutar o bardo gaúcho nem estudar geografia?

Fora este deslize, e apesar do frio, me dou muito bem por lá. Freqüentemente sou convidado para ciscar naquele terreiro e fiz muito boas amizades ali. Apesar do frio. Acostumado com o clima ameno de Garanhuns e congelando aos quinze graus, suportei com garbo e elegância os nove graus que costumeiramente baixa na cidade. Num dessas noites geladas, torcendo moderadamente, assisti o Sport vencer o Grêmio. E tudo sem fazer um inimigo, afinal estava cercado por solidários torcedores do Internacional.

Claro que não foi o futebol, muito menos o frio, que me levou a Passo Fundo. Sob um circo armado no campus da universidade, na companhia de cinco mil pessoas, por toda uma semana passei todo o dia e parte da noite a escutar outros mortais falarem de suas obras e suas criações. Perdemos a noção do tempo e embevecidos gastamos nossas horas enquanto lá fora o mundo corria com seus encantos. Manhãs de sol, crianças nas ruas, velhos nas praças, carneiros pastando, bovinos e muares sob as serras. E nós enfurnados em tendas, protegidos do vento e da vida, a discutir palavras.

Somos uma estranha trupe e nos encontramos em todos os lugares que nos permitem a falta de lucidez. Anualmente invadimos Paraty. O mar está próximo, mas também ali somos fustigados pelo frio. Ele nos avisa que aquela não é a nossa praia, que a cidade carece de belas moças semi-nuas a quarar sob o sol tropical. Teimosamente, no entanto, vestimos pesados casacos de couro, nos cobrimos de lã e pisamos as pedras seculares que nos dá um eterno andar de bêbado. Novamente buscamos o abrigo de tendas e, aborígenes modernos, voltamos aos nossos debates, ao exercício perdulário de gastar palavras, palavras, palavras.

Quando chega a noite, fechadas as tendas, reforçamos nossas vestes, nos abrigamos nos bares, pagamos caro por bebidas e petiscos – a conspiração que nos combate usa todas as armas – e voltamos ao mundo das palavras. Distribuímos elogios e patadas, brigamos sempre, nunca chegamos à conclusão nenhuma, fugimos das todas as unanimidades e amamos seres patológicos que passam a eternidade entre quatro paredes sonhando com mundos paralelos e irreais, enquanto pelas praias caminha a sensualidade despida de um país tropical que dispensa o peso das lãs e dos couros.

Teimosamente também conspiramos e espalhamos nossos vícios por todos os recantos. Bravamente enfrentamos o sol e o calor da marinha Alagoas. Em Marechal Deodoro tiramos os turistas da praia do Francês e os atiramos, junto conosco, num auditório climatizado por ar-condicionado e parolamos, parolamos, parolamos. Nossa prosa infinda invade as águas da lagoa de Manguaba, navega a placidez de Mundaú e chega a Maceió. Desabitamos a Ponta Verde e os corpos bronzeados, solares, nos olham indiferentes e seguem para a vida que margeia os canaviais e se reinventa nas engrenagens da usina.

Nem assim nos entregamos. À noite, de volta aos paralelepípedos de Marechal, subimos ladeiras cantando antigas canções. Somos felizes e as vezes fechamos parceria com a vida escutando um sax melancólico na escuridão, sob o luar, e dançamos tangos, boleros, frevos. Este mundo é meu, este mundo é meu.

Um dia a umidade pegajosa da Amazônia envolveu nossa turma em Manaus. Como as calçadas desenhadas do teatro eram amplas e a vastidão do Amazonas nos assustava, trancamos jovens estudantes no ambiente art nouveau de um vetusto salão e desandamos a falar sobre um certo bruxo que morava num lugar distante e viveu marcado pela epilepsia a inventar vidas e dúvidas.

Haja frio ou calor nossa luta cotidiana nunca cessa. E de nada valerão os truques do cinema americano. Enfrentamos tempestades, torrentes, vulcões. Heroicamente nos apossamos de redes, espreguiçadeiras, ônibus e aviões. Somos soberanos em nossas obsessões e vamos ainda dominar a terra.

Somos uma trupe estranha e dela participa o extraterrestre combatido por Mel Gibson, pois agora tenho certeza de que ele foi a Passo Fundo, a convite de Tânia Rösing, participar da Jornada Literária. Isso ninguém me tira da cabeça.


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - Viver é arriscoso

Riobaldo Tartarana, o brilhante jagunço maquinado por João Rosa, tinha medo da vida, mesmo assim trocou tiros com Hermógenes, amou loucamente e sobreviveu por muitos anos, um tempo suficiente para contar suas aventuras a um ouvinte desconhecido. Sobreviveu agarrado em suas crenças e no desespero de não poder concretizar os desejos do peito. Quando pensava em religião, variava, bebia água de todos os rios, quando devotava seu amor via Diadorim como uma neblina.

Um homem sábio temente a Deus e ao diabo.

Contra esta corda bamba permanente que é a vida, não há muito remédio senão viver, e viver intensamente, como fez Riobaldo.

Um tio meu bem criativo, maquinando uma vida segura, projetou uma casa onde seria possível morar livre de todos os riscos. Desenhou quadrados, estabeleceu espaços, pensou soluções para todos os problemas, previu todas as brechas possíveis para a insegurança e, enfim, fechou o projeto de seus sonhos: um imóvel sem portas ou janelas. “Ninguém vai conseguir entrar nesta casa”, constatavam os céticos. “Nem mesmos ladrões ou homicidas”, rebatia meu engenhoso tio que, infelizmente, não encontrou pedreiros ou mestre-de-obras capazes de concretizar seus sonhos de segurança. Hoje vive no décimo segundo andar de um edifício comum. Aparentemente livre de perigos.

Isso enquanto fica em casa, pois nas saídas há sempre um trânsito cada dia mais difícil. Embora não morando na mesma cidade que este meu tio, vejo o quanto tem se tornado arriscado andar nas ruas das grandes e pequenas cidades. Vai longe o tempo em que uma modesta batida de carros sem vítimas, fatais ou não, era assunto por toda uma semana em Palmares ou Matriz de Camaragibe. Discutíamos o prejuízo dos infelizes proprietários e os possíveis lucros dos mecânicos escolhidos para reparar os estragos. E isso tomava dias de nossas vidas até que nova batida ou, mais comum, as notícias de um novo adultério aumentavam nosso repertório de prosa boêmia.

Os tempos mudam e a vida se torna cada vez mais arriscada, parece uma bolsa de valores onde apenas se negociam ações de massas falidas.

Frequentemente escuto notícias de sequestros relâmpagos, novos golpes na praça, balas perdidas, agressões no trânsito e busco encontrar um outro lado da vida. Nunca consigo chegar ao excessivo grau de otimismo daquele personagem do Roberto Benigni, o Guido, de A Vida é Bela, mas acredito que estamos num tempo de bonança. Talvez isso se deva ao fato de vir de outros tempos, não tão remotos, é certo.

Basta dizer que outro dia, no Recife, tomei conhecimento, um noivo enlouquecido matou um dos padrinhos de seu casamento, a noiva e depois se suicidou. Um fato tão absurdo que nem mesmo Nelson Rodrigues conseguiu imaginar.

Vivi no Recife num tempo em que nosso maior medo, quando rondávamos suas ruas vazias, nas madrugadas vadias, era encontra a Perna-Cabeluda, uma lenda urbana, um ser misterioso com mais de dois metros de altura que chutava corruptos e outros cidadãos menos perigosos. Como éramos boêmios inveterados, temíamos uma vingança mandada pelos céus.

Da terra o perigo era mais real. Galeguinho do Coque vivia nos noticiários e em nosso imaginário. Era cruel, perverso, roubava e judiava de suas vítimas. Um dia foi preso e comemoramos como altas doses de rum, única bebida acessível aos nossos modestos bolsos. E, surpresos, sem comemorações, lemos nos jornais a conversão do famoso bandido ao protestantismo. O mundo estava salvo e podíamos voltar, nas altas da noite, dos bairros distantes, onde os preços eram mais justos e as noites mais felizes. No entanto, confirmando minha tese jurídica de que a ocasião faz o furto, já que o ladrão nasce feito, lamentamos a volta de Galeguinho à prisão: fora flagrado roubando os cofres de sua igreja. Na Idade Média seria queimado por heresia, o malandro.

Isso se deu no Recife, uma cidade cruel, inóspita para quem não se adequa aos seus caprichos. Vítima disso foi o doce Mané Antônio, mecânico estabelecido em Catende. Homem pacato enquanto não lhe envolvia um súbito e costumeiro surto de loucura. E aí subia no primeiro banco da primeira praça que encontrava e desandava seu mais vibrante discurso com a maior de suas frustrações.

Certa feita, desembarcando na Estação Central, foi acometido pelo surto em plena Praça Joaquim Nabuco. Vivia-se os tumultuados idos de abril de 1964. Mané subiu ao banco e abriu o verbo: “Exército, Marinha e Aeronáutica, toda nação, fode e eu não. Por quê?” Os olheiros de plantão não perdoaram e até descobrirem que focinho de porco não era tomada o pobre mecânico exemplar sofreu pelos cárceres da repressão.

Corre-se mais riscos em tempos de exceção, é fato.

Ascenso Ferreira, pelo que me consta, foi dos pouco a escapar com bom humor desta fatalidade. Nos mesmos idos de 1964, no sentido de neutralizar a tendência de esquerda dos artistas pernambucanos, circulou o boato da existência de uma indecente lista apontando os poetas veados, boiolas, homossexuais, enfim, eram tempos em que tal prática não tinha nenhum glamour. O fato é que foi uma avalanche de acusações. Os poetas já não podiam circular em paz sem serem apontados como membro da desabonadora lista. Até que todos os dedos apontaram para o imenso Ascenso. E sem outra saída mais convincente ele gritou para os quatro ventos: “Eu não posso. Eu tenho hemorróidas.”

Viver é arriscoso, mas como vale a pena correr este risco.


domingo, 19 de junho de 2011

Maurício Melo Jr - O Sequestro de Dom Helder

Parei de rezar há muito tempo. Hoje minha memória não alcança nada além de uma Ave Maria ou um Pai Nosso. Nada mais. A decisão foi voluntária, mas inconsistente. Tenho uma irmã carola de batizar e casar. Se o padre cochila, ela diz até missa. Ou seja, na família já tem reza de sobra, de forma que pude ir cuidar de outras coisas.
E fiz isso com um grande aval.

Numa conversa de mesa de bar ouvi o velho senador Teotônio Vilela contar: “Meu irmão, o cardeal Dom Avelar, era o diabo quando menino. Depois resolveu seguir vida religiosa, de forma que pude continuar endiabrado, e fui cuidar de política.”

Os meus pecados são menores: cuido de literatura.
Bom, voltando à carolice da família, minha irmã segue o exemplo de uma tia, também afeita às práticas do catolicismo. Ouvir a conversa das duas faz de qualquer pecador um homem pio. Eu é que, ouvindo várias dessas conversas, não tomei jeito. Fazer o quê? Como elas mesmas asseveram, são os desígnios de Deus.

Numa dessas conversas minha tia contou, um tanto em êxtase, que encontrou Dom Hélder Câmara, por acaso, no centro do Recife. Naqueles dias, finais dos anos de 1970, o arcebispo circulava sozinho, na companhia de suas crenças, cumprimento e dando atenção a todos que lhe procuravam. Nunca lhe faltou uma palavra de carinho para deixar com quem quer que fosse, uma solidariedade cotidiana.

De minha parte, na cabeceira, deixava um exemplar de O Deserto é Fértil, uma reunião de crônicas que lia por prazer e desejo de conhecimento. Impressionava-me o texto corretor, seguro, prenhe de referências religiosas, mas sem imposições. Os exemplos, Dom Helder arrancava da vida, e ela, a vida, na sua conceituação de injustiças e contradições, era que devia ser mudada. Não interessava aquele homem frágil apenas o paraíso celeste, a terra também podia ser transformada num novo Jardim do Éden, um lugar de bonança, felicidade e harmonia para todos.

Minha tia não cansava de falar da tarde em que caminhou ombreada pelo sacerdote, o interrogando e ele, pacientemente, a lhe falar de Deus e dos homens. E eu ouvia seu relato apanhando os ensinamentos possíveis. Até ganhei fôlego para discutir com um amigo, dias depois, numa ocasião qualquer. Num tempo maniqueísta, onde a isenção se fazia impossível, o amigo, um tanto emprenhado pelo cântico do este-é-um-país-que-vai-prá-frente, disparou: “Dom Hélder foi integralista”.

Parti para a defesa. O integralismo, doutrina inspirada no fascismo, criado por Plínio Salgado, foi o retrato de uma época. Vivia-se um mundo dividido entre duas possibilidades de ditaduras, esquerda ou direita, deixando no meio a democracia americana com todas as suas ambições. O discurso arrebatador de Plínio na defesa de um Estado forte e orientador, definidor de políticas para o caminho do desenvolvimento, encantou verdadeiros gênios, como Câmara Cascudo e Érico Veríssimo, e gerou um clássico da ciência política, O Estado Nacional, escrito por Francisco Campos, um sábio da direita.

Cascudo, Érico e Dom Hélder, a exemplo de vários outros, reviram seus conceitos e passaram a defender a postura de que, mais que o Estado, o homem é que deveria ser fortalecido para defender com as próprias garras sua dignidade, sua vida. E escudado nesta crença o padre partiu para a prática. Admirávamos sua disposição de, ainda nos anos de 1950, como bispo auxiliar do Rio de Janeiro, criar a Cruzada São Sebastião e o Banco da Previdência. Acredito que pela primeira vez, fora dos padrões folclóricos do samba, se revelava o povo invisível da favela.

Essa mania de revelar o invisível, e que tanto desagradava os poderosos de plantão, no Recife, trouxe à tona o povo das pontes, toda uma comunidade que vivia encastelada nos vãos, entre o mangue e o concreto que, com a luz do dia, mendigava pelas ruas. Aquilo era um tapa nas ações eleitoreiras da Campanha Contra o Mocambo, de Agamenon Magalhães.

E minha tia caminhava com este homem de aparência frágil e voz suave a quem os poderosos não podiam afrontar. Agrediam sim, a igreja voltada para o combate à pobreza e a defesa dos direitos humanos. Vários de seus auxiliares mitigaram nos cárceres ou foram assassinados.

Dom Helder não temia. Seguia seu caminho. Tanto que perguntou para minha tia se ela estava de carro. Sim. “Você pode me dar uma carona? Estou indo para casa.” Ela, que morava para os lados do Espinheiros, maravilhada, guiou o próprio guia. E no caminho o indagou. “Dom Helder, o senhor não me conhece e entra em meu carro despreocupado. Não tem medo que eu o sequestre?” Passando a mão na cabeça, respondeu: “Minha filha, eu, quando adolescente, tinha uma cabeleira basta. Aos pouco Deus foi tirando meus cabelos. Assim é a vida, quando Deus quer, tira. E nós somente temos que fazer valer com dignidade o nosso tempo.”

Minha tia não sequestro Dom Helder. Chorou de emoção, apenas, e deixou o arcebispo em casa. E pelas ruas nós chorávamos de revolta a morte de padre Henrique e a prisão de Cajá, de certa forma, dois dos tantos sequestros de que Dom Helder foi vítima.


sexta-feira, 3 de junho de 2011

Maurício Melo Júnior - Elogio ao velho Capone


Conta a lenda que, caminhando pelo deserto da Palestina, sem comer nem beber há quarenta dias, Jesus Cristo avistou um canavial. E não me perguntem como este canavial foi aparecer no deserto; estamos no terreno da lenda. Pois bem, o filho de Deus descansou sob a sombra modesta, sim, mas generosa e saciou a sede e a fome com o caldo doce da cana. Ao sair abençoou a planta e decretou: “Daqui o homem irá tirar algo doce para seu alimento”. Assim surgiu o açúcar, o melaço, a rapadura.

Seguindo na mesma trilha, para atanazar Cristo, Satanás entrou no mesmo canavial do mesmo deserto. A palha da cana o deixou todo lanhado, não consegui uma sombra que fosse e quando tentou se encostar encheu as costas com aquele pelinho que dói prá lascar. Para aliviar a sede quebrou uma cana e a bicha tava mais azeda que jiló. Arretado com aquilo amaldiçoou o partido: “Daqui o homem irá tirar um produto que vai lhe queimar a goela, vai lhe deixar embriagado e vai lhe desgraçar a vida”. Assim surgiu a cachaça.

A lenda tem suas injustiças. Açúcar é doce, mas engorda. Cachaça desgraça, mas pode ser degustada com moderação e prazer. Tudo é uma questão de dosagem. No mais é secundar Ascenso Ferreira: “Suco de cana-caiana tirada do alambique / pode ser prejudique / mas bebo toda sumana…” Daí é apreciar sem culpas as qualidades de uma boa cachaça.

A lenda não fala, mas com certeza na maldição do diabo constava um item falando que a descoberta se daria num país onde o governo tem mais sede que nós, os bravos consumidores. Falo aqui de uma sede metafórica, pois é mais fácil sustentar a gula de um caminhão Ford com gasolina que o governo com imposto.

Esses dias, conversando com um produtor, o cabra foi categórico. Envolvendo todos os custos – plantio, colheita, destilação, armazenagem, embalagem, transporte, salários, direitos trabalhistas, lucros, etc –, ele consegue botar na prateleira uma garrafa de cachaça por 20 reais. Quando entram os impostos federal, estadual e municipal o custo pula prá 50 reais, o preço de um uísque de qualidade. Daí ele se complica com a concorrência.

Como para todo bebedor a persistência é uma norma, apelei para a Internet. Descobri uma página maravilhosamente bem surtida e com preços atraentes. Esperançoso, iniciei as negociações. E fui até a pergunta fatal: Onde devo entregar o produto? Em Brasília, respondi. Não dá, quando chegamos aí o governo local nos morde com tanta força que não há como compensar o prejuízo. Frustrado, fiquei na sede, ruminando prá onde vai tanto imposto.

De onde ele vem, eu sei. Uma pesquisa recente informou que até o dia 25 de maio todos os brasileiros, inclusive os aposentados, trabalharam apenas para pagar impostos. E isso se repete todos os santos anos. Ou seja, a coisa é bem mais séria do que simplesmente taxar a cachaça e seus sagrados consumidores.

Constantemente leio nos jornais que os governos comem 50% da conta de luz. Outro dia caminhei uns três quilômetros acompanhando uma imensa fila de carros para descobrir que todos esperavam pacientemente para abastecer sem pagar impostos. O preço da gasolina estava por menos da metade. E até o cândido açúcar, mesmo abençoado pelo Cristo, carrega 30% de seu preço em impostos.

E tudo piora quando, voltando aos jornais, lemos sobre estradas sem asfalto, hospitais sem médicos ou remédios, escolas sem merenda, sem professores, sem motivação. E o que se faz com todo dinheiro arrecadado? Será? Bom, pode ser uma explicação. Vamos lá.

Marcos Freire era presidente da Caixa Econômica Federal e recebeu a visita de Luís Portela de Carvalho, ex-prefeito de Palmares. Junto entrou no gabinete uma comissão de cinco prefeitos gaúchos que buscava dinheiro para comprar um patrol. Vendo aquilo, Portela desdenhou: “Comprei uma esta semana com recursos próprios.” “Como, tchê?” “Eu não roubo”, respondeu na lata, para constrangimento de todos.

Tudo uma questão de formação moral. Luís Portela sabia o sentido pleno da palavra república, coisa pública, e hoje é quase uma lenda urbana em Palmares onde há um verdadeiro culto à sua atuação na prefeitura.

O velho descontrole na fiscalização e as notícias que assolam os jornais explicam por que não pude comprar minha cachaça com entrega em domicílio. Um amigo chegou a se exaltar e defendeu o Chile como exemplo de política de impostos e de soluções. “Lá o vinho é considerado alimento e tem uma taxação justa.” Bom, como não dá para considerar cachaça alimento, a menos que se queira ser excomungado pelos patrulheiros de plantão, e sabendo que a economia chilena é igual a do estado de São Paulo, o melhor é apelar para nosso sagrado jeitinho.

É preciso ciência até para tomar cachaça. E neste caso a solução foi inspirar-me no velho Al Capone. Pois bem, procurei uma amiga que trabalha em Luziânia, uma cidade goiana nas imediações do Distrito Federal. De comum acordo passei ao fornecedor o endereço de trabalho da moça. Os cabras, livres da mordida distrital, deixaram ali a preciosa encomenda e eu a apanhei aqui, do outro lado da fronteira com ela, numa ação digna de um bom e nobre sacoleiro. Tudo muito prático.

Meu gesto faria ri o velho Capone, pois não passo de um reles amador, mas também nossa Lei Seca não chega aos rigores americanos de antanho, e no mais não consigo correr do governo quando compro açúcar, abasteço o carro, pago a conta de luz. Acho que preciso estudar melhor a vida do velho gangster, afinal a taxação da cachaça ainda dá para agüentar, mas bem que gostaria de saber em que árvore nascem os impostos. Com certeza conseguiria um bom exorcista para tirar dali a praga do cramunhão.