sábado, 9 de maio de 2009

SEXO: SAGRADO OU PROFANO?


Crônica 1
“Receba eu o beijo da tua boca / porque os teus amores são melhores do que o vinho...”
 “Venha o meu amado para o seu jardim / e coma o fruto das suas macieiras”
“Quão bela são os teus pés / no calçado que trazei, ó filha do príncipe! / as juntas dos teus músculos são como colares / fabricados por mãos de mestres./ teu umbigo é uma taça feita ao torno / que nunca será desprovida de licores / teu ventre é como um monte de trigo cercado de lírios.”
“Os teus dois seios parecem dois cervotinhos / filhos gêmeos de uma gazela.”
“O teu pescoço uma torre de marfim./ Os teus olhos são como as piscinas de Hesebon.”
“Tua estatura é semelhante a uma palmeira / e os teus seios a dois cachos de uva.”

Estes versos e todo seu conteúdo sensual, embora pareçam tentações do Capeta, são versos salomônicos e fazem parte do livro “Cântico dos Cânticos”, da Bíblia Sagrada, usada por católicos, judeus e muçulmanos.

 A obra poética bíblica narra a história de amor de Sulamita, uma ingênua camponesa, e de um jovem pastor, a qual ela é tentada a abandonar a vida simples no campo e levar uma vida faustosa como esposa de Salomão, cuja fama de sedutor extrapolava os limites de Israel. A jovem donzela, porém, fiel à sua paixão, recusou o convite do filho de Davi e continuou sua vidinha de camponesa, ao lado do seu amado, sonhando com o dia de ser possuída por ele.

Ante tal erotismo bíblico, sou tomado pelas reflexões incompreensíveis tentando arrazoar o que se passa na cabeça de certas pessoas quando o assunto é sexo. Tudo bem que algumas citações extravagantes extrapolam a compreensão de alguns e os induzem a se horrorizar ante o que advém do sexo. Mas certos textos ou certas conversas, mesmo na leveza de um erotismo singular, fazem determinadas pessoas ficarem reticentes ou estarrecidas, achando tratar-se de uma indecência libidinosa.

Convenhamos: fazer xixi e defecar são necessidades fisiológicas vitais, pois, sem eliminarmos os excessos de substâncias ingeridas, não conseguiremos viver. O sexo, apesar de não matar, é uma necessidade fisiológica tais quais as citadas acima. Não morremos, porém teremos uma disfunção hormonal e psicológica comprometedora. Olhando sob esta premissa, o sexo, então, é a necessidade fisiológica da mente. Ou latinamente citando Juvenal, o poeta satírico romano: “Mena sana in corpore sano” (mente sã em corpo são). 

 O sexo é um ato sensitivo visível do milagre da perpetuação da vida sem o qual não seria possível a Darwin escrever sua obra revolucionária “A Origem das Espécies”, contrariando o tão polêmico Livro do Gênesis. O Velho Testamento é recheado de histórias de amor, sexo, traições e mortes. Há até incestos, necessários para a continuação da existência humana.

Dalila foi engabelada por Sansão três vezes. Mesmo usando de todo charme e beicinho, Sansão não se deixou enganar e inventou estórias escabrosas para dizer de onde vinha a sua força descomunal. Um dia Dalila radicalizou: trancou-se com Sansão em um quarto e fornicaram por vários dias, até a hora em que ele caiu prostrado. Sem coordenar as idéias, tresvariando, ele capitulou e entregou o ouro ao bandido. Ou melhor: à bandida. E os filisteus fizeram a festa. 
 
Nesse mesmo livro, ou “Juízes”, que naquela época era o mesmo que “chefe militar”, narra a história de um jovem casal levita que se deslocava de Israel para sua casa, nas imediações do Monte Efraim. No meio do caminho o casal parou na cidade de Gabaa, reduto dos filhos de Benjamim, conhecidos como benjaminitas, para o pernoite. Não encontrando quem lhes desse abrigo por serem de outra tribo, sentaram na praça e se puseram a pensar no que fazer. Nisso, apareceu um velho, também de Efraim, que, sabendo de sua história, convidou o casal para pernoitar em sua casa, o que foi aceito. No meio da noite foram acordados violentamente por homens do lugar que queriam enrabar o jovem levita. Diante de tamanha maldade que os benjaminitas queriam fazer ao pobre rapaz, o velho pediu para que eles se satisfizessem na sua jovem esposa. Arrastou-a para fora de casa e a entregou à sua própria sorte. Por toda noite ela foi seviciada, vindo a morrer quando o dia amanheceu. O marido, ao ver a esposa morta, dividiu o corpo em doze pedaços e espalhou pelas doze tribos de Israel, clamando vingança. Assombradas com o acontecido, depois de inteiradas da ocorrência, as tribos de Israel se uniram e marcharam em guerra contra Gabaa, destruindo suas plantações, tocando fogo nas aldeias e cidades, exterminando seus guerreiros, matando a espada o resto da população. Apenas seiscentos benjaminitas homens sobreviveram e fugiram para o deserto. Finda a batalha, os israelitas prometeram que nenhuma de suas filhas se casaria com algum sobrevivente do massacre.

Tempos passados, ânimos esfriados, bateu o arrependimento por terem aniquilados uma das suas tribos. O jeito era repovoar a cidade com os sobreviventes, mas como lhes arranjar esposas se todas as donzelas estavam proibidas de se casar com os benjaminitas? No conselho dos anciãos alguém sugeriu que se atacasse a tribo de Jabes Galaad, que havia se recusado a marchar contra Gabaa. Então se armou um exército que partiu em direção de Jabes Galaad com a missão de matar todo mundo, exceto as mulheres virgens. Findo o extermínio de um povo pacífico, contabilizaram quatrocentas mulheres virgens, que foram entregues aos benjaministas como esposas. Houve um déficit de mulheres e não era justo duzentos homens ficarem à toa, sem se casar. Como resolver o problema? Um ancião se lembrou que haveria a festa dedicada ao Senhor, na cidade de Silo. Então os duzentos benjaministas restantes foram autorizados a se esconder no mato e quando as virgens de Silo se reunissem para dançar, eles deveriam raptá-las e levá-las como esposa para as terras de Gabaa, o que foi feito. 

 Salomão só não foi considerado um tarado porque o povo nutria por ele uma grande estima, principalmente pela sua sabedoria. Mantinha setecentas esposas e trezentas amantes em seu harém. Mesmo assim pulava a cerca. Foi o que aconteceu com a rainha de Sabá em visita a Salomão.

Primeiro ficou impressionado com a riqueza da comitiva da rainha negra, que trazia camelos e camelos carregados de ouro, pedras preciosas, jóias, perfumes exóticos, desconhecidos em Jerusalém. A rainha de Sabá (hoje Iêmen), por sua vez, ao adentrar o palácio, se deslumbrou com tanto luxo e riqueza. Como havia um piso espelhado, ela pensou tratar-se de água e levantou um pouco o vestido para não molhar, coisa discreta, mas o suficiente para Salomão ver suas roliças e negras pernas refletidas no espelho do piso e que o levou ao desespero dos pensamentos libidinosos. 

A rainha de Sabá era uma rainha mística e havia ido a Jerusalém testar a sabedoria de Salomão, que respondeu a todos os seus enigmas, deslumbrando-a de tal maneira que mantiveram longos dias e noites de intensa paixão. Engravidou e retornou para Sabá com os seus criados, onde nasceu o filho em seu castelo, fruto desse idílio real.

 Salomão só conheceu o seu filho árabe, de nome Meneleque, quando o mesmo completou a maioridade e viajou para Jerusalém.

Para aqueles que acham que sexo é uma indecência a ser combatida, sugiro que leiam a Bíblia Sagrada de vez em quando, onde verão que, mesmo não estando explícito, é tratado sem tabu e sem preconceito.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A HERESIA SAGRADA

Imagem: blog Canção Nova


Quando eu era menino lá no interior da Bahia, minha mãe me exibia orgulhosa para as amigas e falava triunfante:

– Escrevam aí: esse menino, quando crescer, vai ser padre! Um belo padre!

Mais não poderia dizer por que, tendo filho padre, teria comunicação direta com Deus. E estaria eu hoje de batina se no despontar de minha infância não tivesse caído no vício de encostar jega no barranco e descoberto maravilhado que o paraíso é aqui mesmo. Mas minha mãe não desistiu de seu intento e, quando nos mudamos para Alagoinhas, me obrigou a segurar no badalo do padre, como assistente de missa, ou coroinha, como é mais conhecido o garoto que toca o sininho e segura a bandeja na comunhão. A emenda saiu pior do que o soneto, pois angariei mais um vício no meu livro de pecados: o de encher a cara de vinho canônico no vacilo do padre. Descoberto, fui expulso do Clube São Domingos Sávio, o padroeiro dos coroinhas.

O tempo passou e finalmente minha mãe se convenceu de que pau que nasce torto morre torto. Escreveu ao Vaticano pedindo suas escusas ao papa e carinhosamente me expulsou de casa. Dentre suas crenças, uma dizia que todo herege está fadado a ser assado na fogueira santa e ela não queria se envolver com os tribunais eclesiásticos. Sem ter para onde ir, zanzei pelo Baixo Alecrim, a zona da cidade, e fui consolado por mulheres soturnas que bebiam feito esponja e fumavam como condenadas. Senti-me o próprio Salomão e suas quase duas mil mulheres até o dia que o comissariado de menor resolveu pedir minha identidade. Foi o supra-sumo da humilhação: expulsaram-me do pedaço e as mulheres que eu amava passaram a noite no xilindró.

Envergonhado, peguei um pau-de-arara e dei com os costados na Baía de Todos os Santos e por lá fiquei por longos anos a fio a consumir batida de limão e a admirar as belas mulheres da praia do Porto da Barra. Um dia a ressaca bateu forte e, quando dei por mim, era protagonista de um cerimonial de núpcias na igreja do Rio Vermelho. Nesse dia, tornei-me amigo do padre e voltei a freqüentar a sacristia, o que deixou a minha mãe esperançosa, mas depois ela descobriu que as minhas idas diárias à igreja eram apenas para entornar o vinho canônico. Dessa vez, acompanhado do padre, um biriteiro de marca maior. Mas ele não resistiu à sedução das noitadas e sucumbiu aos olhares lascivos de uma de suas beatas: sem pestanejar, largou a batina para se casar e abandonou os amigos da garrafa, vindo a se suicidar tempos depois, talvez, por solidão, conforme está relatado no conto “Carta de Apresentação”. Que bela ironia: enquanto padre, vivia na esbórnia; largou a batina e deixou subjugar-se pela mulher como se fosse boi de canga.

Assim fui consumindo os meus pecados, matando a minha mãe de tristeza, até que no ano passado me convidaram a escrever o prefácio de um livro de conteúdo religioso, com a devida aprovação do bispo da região. Desafio aceito, de repente me vi debruçado na Bíblia Sagrada à procura de fundamentos para a empreitada e acho que dei conta do recado. Dentre todos os textos do livro, o único leigo é o meu, apesar do ceticismo dos amigos e até ironia de alguns, principalmente dos meus irmãos e da minha inestimável consorte. Já a minha mãe, quando recebeu não-sei-quantos exemplares para distribuir nas igrejas de sua cidade, fez questão de levar o primeiro exemplar ao bispo e ainda desdenhou com o orgulho de mãe quando fala do filho pródigo às amigas:

– Tá vendo, Dom Raimundo, meu filho escreveu melhor do que os padres e vocês ficam dizendo que ele é um herege. E agora, como sustentar sua heresia se pode até ser canonizado pelo Papa?

O bispo baixou a cabeça sem dizer nada. Tempos depois me escreveu reticente e cerimonioso, como a escrever ao Papa. Queria a minha intervenção no Vaticano para sua promoção a cardeal.