quarta-feira, 11 de março de 2009

O DIA DA PADROEIRA

De Procissão


Aquele que se criou no sertão e não teve sua iniciação sexual com uma jega, cabra ou galinha, não pode dizer que teve infância. E aquele que nunca brigou quando menino, certamente nasceu um maricas.

Zé Bentinho fez tudo isso quando criança. E fez pior, pois contava com o apoio incondicional do pai. Não havia jega nas redondezas que não suspendesse o rabo quando de longe lhe avistasse; não havia cabra que, sentindo sua presença, não se encostasse ao barranco e berrasse: zéééééééé! Não existia criança naquele lugar que com ele não houvesse emendado os bigodes. Não fazia distinção de idade nem de físico, desde que fosse do seu tope, o desafeto.


Nenzão, seu irmão mais velho, de comportamento tímido e pacífico, muitas vezes se viu envolvido em confusão por causa do arreliento do Zé Bentinho. Em casa, nunca começaram uma brincadeira para que não terminassem se engalfinhando. Tonho Fiscal, pai dos dois pirralhos e fiscal da prefeitura, castigava Nenzão e premiava Zé Bentinho com um pirulito, por achar que, no sertão, homem que é homem não leva desaforo para casa.


- É de criança que se faz homem e filho meu tem que ser é macho! – dizia taxativo, quando alguma mãe chorosa ia à prefeitura reclamar do Zé Bentinho.


Nem todos na família concordavam com as diabruras do pirralho. O seu avô paterno, homem íntegro, achava que o seu neto estava mais para um moleque malcriado do que para um homem de respeito. “Homem para ser homem tem que ser respeitador!”, afirmava, quando o assunto era o seu neto e a educação recebida do pai. Muitas e muitas vezes entrara em atrito com o seu filho, Tonho Fiscal, por causa das molecagens do neto. E descia a madeira em Zé Bentinho quando o mesmo extrapolava as suas molecagens e o seu filho não tomava nenhuma atitude.


Eduardo de França podia se chamar Eduardinho, mas ganhou o apelido de Dudu Pareia graças a sua mania de chamar os colegas de “pareia”. Era um menino de comportamento discreto, porém, depois que se meteu com Zé Bentinho, passou a fazer parte do ditado que diz que “passarinho que acompanha morcego dorme de cabeça para baixo”. Não era arreliento nem malcriado como Zé Bentinho, mas costumava seguir o amigo nas safadezas. Dizia-se que fazia por medo. Pai morto em um desastre de automóvel, fora criado pelo avô, um sertanejo rígido na educação moral e dos bons costumes.

Zebedeu, dono da jega mais cobiçada pela molecada, e até por alguns adultos de Lagoa Azul, trazia sob severa vigilância o seu mais querido e mais sagrado animal todas as vezes que se via obrigado a sair de sua roça para ir à cidade comprar ou vender alguma coisa. Considerava uma terra de depravados, a Sodoma do Antigo Testamento, um antro de marginais e tarados. Porém ninguém haveria de fazer um malfeito com a sua inestimável jeguinha. Que os moleques vadios procurassem outro animal em outro pasto. O dele não, violão!

Comentava-se, à boca pequena, que Zebedeu mantinha um intenso caso de amor com sua protegida. Sentia mais ciúmes de seu animal do que de sua ex-noiva. Desmanchara o casamento pelo simples fato de ela esporar a jega em um raro dia em que ele a deixou praticar montaria e sair a trote pasto afora. Que triste dia! Só não meteu a mão na cara da noiva porque foi contido por um soco, dado pelo sogro, que mais lhe pareceu um coice. Foi o fim de um noivado de seis anos. E de uma amizade de vinte.

Um dia, dia de festa da Padroeira de Lagoa Azul, Zebedeu relaxou na vigilância. Sendo católico apostólico romano, fervoroso devoto da padroeira, acreditava que ninguém ousaria contrariar o ato sagrado da procissão em atitudes vis e pecaminosas. O belzebu queimaria no fogo do Inferno!

Zé Bentinho encontrou o seu amigo Dudu Pareia no justo momento em que descobriu Zebedeu no meio da multidão sem a sua companheira. Escapuliram de mansinho, entraram em um beco, saíram em uma rua deserta e avistaram a jega mais desejada do sertão pastando tranqüilamente em um terreno baldio. Olharam para os lados para ter certeza de que não foram seguidos, puxaram a jumenta pelo cabresto e se enfiaram numa casa abandonada.

Mal podiam acreditar no que estavam fazendo, mas estavam. A emoção era muito grande, enorme, deixando o coração num pulsar acelerado. Quando o feito heróico tivesse se espalhado, seriam considerados os maiorais do sertão. Ganhariam respeito. Teriam lucros imensuráveis: muitos lhes pagariam caro para que contassem a saga. Talvez virassem personagens de cordel, sendo cantados caatinga afora, pelos mais intrépidos violeiros:

Vou contar para vocês
Tudo o que aconteceu
Na proeza de Zé Bentinho
E a mimosa de Zebedeu
Deflorada na casa velha
Do finado Zé do Iguassu
No sagrado dia do jubileu
Da padroeira de Lagoa Azul.

Acompanhado do amigo Dudu
Seu escudeiro de plantão
Levaram o animal para a casa
Povoada de assombração
Consumando o ato depravado
Com a mais cobiçada do sertão.

Coube a Dudu Pareia a honra de ser o primeiro na disputa do par ou ímpar. E foi. Zé Bentinho ficou segurando o cabresto enquanto o seu amigo aliviava as tensões. Havia um misto de prazer e medo. Foi rápido, ejaculação precoce. Era a vez de Zé Bentinho, que mal continha a emoção; preparou-se lentamente para consumar o ato supremo da zoofilia. A jega era mais alta. Procurou alguma coisa para subir e encontrou uma cadeira velha. Era magro, leve, agüentaria seu peso. Subiu na cadeira e levantou o rabo da jega. Ela deu um passo para o lado. Desceu e se reposicionou, pedindo a Dudu para segurá-la com mais firmeza. Dudu obedeceu e ela aquiesceu. Os animais, nem mesmo as jegas, têm noção de fidelidade. Traição é coisa de ser humano. Zé Bentinho suspendeu o rabo e engatilhou o seu órgão sexual no justo instante em que adentraram a casa os dois avôs e o traído Zebedeu.

domingo, 8 de março de 2009

ILUSÕES DESNUDAS - RESENHA


Ilusões desnudas – Ronaldo Torres.

*Maria Olímpia Alves de Melo


Conheci Ronaldo Torres aqui, no Recanto das Letras, e logo nos tornamos amigos. A empatia foi natural e passamos a ser leitores um do outro. E agora, feliz como se fosse meu, recebo o livro impresso do Ronaldo: Ilusões Desnudas. Editado pela CBJE (Câmara Brasileira dos Jovens Escritores), o livro é lindo. É um livro: você pode cheirá-lo e acariciá-lo antes de abrir e começar a ler. E depois, seguir o conselho que veio impresso na orelha: ‘.. leitura perfeita para um final de tarde, deitado numa rede, ouvindo o canto dos passarinhos e o balançar dos galhos das árvores ao sabor da brisa suave (Luiz Eudes Cruz de Andrade). Tirando fora a rede, com a qual nunca me acostumei, foi o que fiz. Na verdade, reli. Lá fora, entrando pela janela do meu quarto, além dos passarinhos, um cão latindo. Tarde perfeita.

Ronaldo, a quem todos chamam de Tom, é um escritor completo: Escreve contos, crônicas, poemas e o que mais lhe aprouver, porque sabe do mister, o segredo. Dele tive a audácia de resenhar um conto, publicado aqui, em capítulos: O homem que pensou ser Deus. E audácia maior, aceitar o convite para escrever a contra capa do livro. O que fiz com carinho. E de audácia em audácia faço esta resenha para apresentar a vocês o livro do meu amigo.

Seus escritos ora são ternos e suaves, ora irônicos e bem humorados. Busca inspiração dentro da própria vida e recupera as lembranças do Junco, onde passou a infância, tempo que o marcou para sempre. E o marcou tanto que considera ter sido esta a sua sorte maior:

A minha sorte maior

foi ter nascido poeta

na centro da caatinga

do Sertão brasileiro (...).

Sua memória, porém vai mais longe, buscando o poema nos arquétipos distantes encontrados no folclore e na mitologia. Canta a chuva e a noite procurando na insônia e no sonho registro para a sua alegria e sua dor. Sabe usar a palavra em jogos sutis e ritmados. O poema que dá título ao livro joga ao chão a ilusão humana de ser mais do que é, desnudando o homem em sua pretensão de ser o que não é. Começou o poema, Carta aberta a uma entidade falida, com o verso antológico: não te aborreças se um dia eu falar de saudades. E sintam a beleza da última estrofe do amargurado Rotina:

Os passos lentos,

cautelosos,

preguiçosos,

vagarosos,

saúdam a rotina

do recomeçar:

- Bom dia, patrão!

A capa do livro é de Allan Oliveira. Engrenagens monocromáticas em vermelho, o título em negro refletido como em um espelho, em branco. Muito bonita. Em uma página em branco, a dedicatória: Para Edna (Edna Lopes, também minha amiga e companheira no Recanto), Flávia, Cláudia, Ivo e Vinicius, e para os netos Bia e Gabriel.


Não sei o preço do livro. Ganhei. Mas, se não tivesse ganhado, teria comprado. Por qualquer preço. Para ter sempre em mãos, comigo, os versos de um amigo realmente talentoso.


* Escritora mineira e, aos domingos, cozinheira. Mais sobre a autora pode-se encontrar clicando no link abaixo:

http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=27042