sábado, 12 de março de 2011

Edna Lopes - Mulher objeto de Cama e Mesa


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

                         Com licença poética – Adélia Prado
 

            Durante esta semana e ao longo do mês de março vamos ouvir e ler muitas referencias e homenagens ao DIA DA MULHER. Embora reconheça um esforço genuíno de muitos movimentos para qualificar o debate e todos os avanços no campo profissional e até político, os chavões e clichês de todo tipo são, nas chamadas da mídia para vender mais qualquer produto, para “a beleza” e o “charme” de todas nós.


        Reconheço mais ainda que o Dia da Mulher caindo no período de carnaval qualquer reflexão se esvai mas eu me pergunto quantas de nós realmente têm a consciência e a responsabilidade de saber se valorizar e se respeitar em todos os papéis que desempenhemos.

        Um dos problemas que enfrentamos é da construção da identidade, da personalidade. Muitas de nós se contentam apenas em ser a sombra do parceiro e, no lado extremo, outras querem ser a sombra, fazem de tudo para que o companheiro sufoque com sua atenção, seus cuidados e seus ciúmes. Também há uma ala que quer ser famosa, bonita e gostosa a qualquer preço.

        Mas o que estamos construindo no imaginário do sexo oposto, com nossas atitudes? O quanto nos valorizamos, para sermos igualmente valorizadas, respeitadas?

       Enquanto elaborava este pensamento, me veio uma lembrança emblemática: quatro lindas meninas bem da geração “posso te conhecer?” se arrumando para uma noitada num desses mega shows de axé music, forró eletrônico e afins.

        Minha curiosidade vira-lata, sem nenhum subterfúgio, ficou observando-as se vestir com se fossem a praia. Tops que mal encobriam os seios, micro shorts e micro saias bem abaixo do umbigo, maquiagem pesadíssima nos olhos e saltos altíssimos.Todas lindas, com o frescor da juventude tornando-as mais lindas ainda porém, fiquei pensando que pareciam se arrumar para um baile de carnaval, fantasiadas de piriguetes*, ou ainda de peças de carne num açougue, bem a vista do freguês... Mas, longe de mim engrossar o cordão dos intolerantes com micro vestidos e trajes desse tipo... 

        Lembrei que, pela idade, todas elas deviam ter imitado dançado e se vestido como as louras do Tcham, a Tiazinha... Meninas erotizadas na infância com a aquiescência de mães e tias sem noção, para não utilizar adjetivos menos nobres.

         Imaginei (só imaginei) os olhares dos rapazes para aquele quarteto... Uma geração que privilegia a aparência, os desejos, as necessidades afloram pela aparência mesmo, mas o que ficará para além de olhar a superfície?

          As conversas no Day After de um show assim é que são esclarecedoras: meninos e meninas comentam com quantos ficaram, quantos pegaram, quantos beijaram sem trocar uma palavra sequer. Rapazes se vangloriam  que conheceram “ biblicamente”  algumas meninas e até  as recomendam aos amigos! 

        Ir a um point da moçada hoje é se deparar com cenas deploráveis. Meninas mal saídas da puberdade bebendo feito esponja, perfeitamente adaptadas, aguardando ou investindo em relações fortuitas, meninos organizando rankings de Pegação... Mulheres profundamente infelizes de saírem na noite e não arranjarem alguém para “pegar”...

        Mulheres tratadas/se deixando tratar como coisa, objeto descartável. Muitas delas desvalorizando-se por suas próprias atitudes, vidas vazias de sentido e significado. Daqui a pouco gastas pelo tempo e ocas, mendigando afeto, ás vezes se deixando explorar pelo primeiro cafajeste que lhes estalar os dedos, por puro medo da solidão.

       Sinceramente podem me chamar de ultrapassada, cafona, anacrônica e tudo o que mais traduzir esse meu estranhamento com esse comportamento da modernidade mas não abro mão de dizer que, em oposição a tudo isso, mulher que se valoriza e se faz respeitar jamais será mulher objeto de cama e mesa ou mulher objeto de “pegação”.


*Piriguete - Significado:
 
Piriguete, também denominada Piri, é uma gíria brasileira que designa uma mulher, normalmente jovem, de acesso fácil e/ou que tem múltiplos parceiros e tem uma preocupação excessiva em exibir os nuances do seu corpo. Geralmente anda em grupos com outras moças que compartilhem os mesmos valores. O termo teve origem em Salvador, a capital baiana, mas se espalhou pelo resto do Brasil em forma de músicas de pagode como por exemplo "As piriguetes chegaram", interpretada pelo grupo Pagod'Art. http://br.answers.yahoo.com/question/index?

Sugestão de leitura:

O livro Mulher, objeto de cama e mesa é uma publicação da Vozes de 1974, da jornalista Heloneida Studart composta de textos concisos, geralmente frases bem chocantes, em forma de colagens, tornou-se um sucesso editorial ao longo dos anos e, atualmente, já está na 27ª edição com quase 300 mil exemplares vendidos.A escritora se propunha a falar da condição feminina, do seu corpo, de maneira tão incisiva e sem muitos rodeios e até insultava as mulheres para que repensassem as suas vidas além do universo doméstico e pudessem construir a sua própria trajetória além do espaço doméstico.
Adaptado por mim do site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104

Um “Pedacinho” do livro:

Em 1970 voltei ao jornalismo, indo ser redatora de uma revista feminina. Em minha mesa, estava a pauta dos assuntos a serem editados:

como prender um homem para toda a vida;
a melhor maneira de aproveitar os vestidos do ano passado,

além do teste:
você se considera bonita?
 
Enquanto isso, os norte-americanos estavam remetendo outro Apolo à lua; os soviéticos enviavam uma sonda a Marte; dois cientistas italianos pesquisavam a possibilidade de criar bebês em provetas; o tevecassete modificava o papel da televisão nas sociedades de consumo. Sobre tudo isso, nem uma palavra na revista feminina. O tema proposto às mulheres era o de sempre:

como prender o marido
para toda a vida e quais
as 10 melhores maneiras de conquistar
um homem.


Quem pode censurá-las se elas parecem retardadas mentais?


quinta-feira, 10 de março de 2011

Homens, uni-vos!

O meu amigo Chuchu agia em consonância com o nome, sem se importar com o que pensavam os seus vizinhos, inclusive eu que, vez ou outra, cogitava lhe chamar a atenção para o fato, porém o mesmo fazia questão de viver sob a coleira da mulher. Ela era o fator determinante de sua personalidade e assim ele viveu (ou pensou que viveu) até o dia em que ela , cansada de tanta submissão, decidiu ser dominada por um homem de verdade: arrumou as malas e fugiu com o pé de pano, deixando Chuchu com o ônus da desonra, além de ser objeto principal dos comentários jocosos da vizinhança: soube-se, mais tarde, que o tinhoso Ricardão era uma amiga do casal.

– Ele não era mole só nas atitudes. Ser corno de mulher é a pior coisa que pode acontecer a um homem – diziam as más e também boas línguas quando ele passava, cabisbaixo, soturno, como a carregar todo o peso do mundo nas costas.

Essa ocorrência data de trinta anos atrás e Chuchu morreu ano passado sem se aventurar em novo casamento. A decepção fora tanta que seria compreensível se tivesse virado a casaca também, mas como já estava cheio de cabelos brancos, precisaria de muita grana para poder arranjar um bofe de bons bofes.

O que aconteceu com ele foi só um exemplo dentre milhares, e por isso devemos colocar nossas barbas de molho. Mulher bonita, boa e liberal faz o homem gemer sem sentir dor e, por causa desse axioma irrefutável, é a preferida nas cantadas e investidas de umas e outras nos bailes e bares da vida, independente de serem solteiras, viúvas, casadas ou que costuram para fora. Ficam na espreita feito caçador à espera da caça, aguardando o momento oportuno para darem o bote. São atenciosas, doces, melosos, e dizem ter a solução para todos os problemas da vida.

Nós, homens, precisamos reivindicar a criação de vários dias do homem ma-chô-chô, com direito a feriado nacional, divulgação na imprensa internacional e caminhada mais barulhenta e concorrida do que a parada gay. Lutemos pelo orgasmo múltiplo, livre, e distribuição gratuita de Viagra nos postos de saúde para que as mulheres se sintam incentivadas a escrever loas ao nosso dia, listando e enaltecendo nossas qualidades. O Governo deverá criar cotas para o Homem com agá maiúsculo nas universidades federais. E, finalmente, quando um casal hétero for barrado numa boate GLS, a casa deve ser fechada e os responsáveis processados por discriminar a minoria.

Fiquemos antenados porque a concorrência é acirrada e desleal, principalmente das mulheres com excesso de testosterona. Além de elas conhecerem melhor a alma feminina, pois, querendo ou não nasceram com uma, frequentam o mesmo banheiro do boteco, onde se desnudam sem o menor pudor e falam de suas intimidades em cumplicidade de amantes, embora a candidata a sandaliazinha não tenha malícia em suas ações e atenções, até então, inocentes, tal qual Chapeuzinho Vermelho sendo conduzida (e induzida) pelo lobo mau.

Portanto, tratemo-las com deferência, não só no dia internacional da mulher, mas nos trezentos e sessenta e quatro dias, seis horas e cinquenta segundos seguintes, sem esmorecer, porém. Como dizia o camarada Che: “Hay que endurecer sin perder la ternura jamás”. Quando a sua mulher lhe chamar para lavar os pratos, grite bem abusado para que seus amigos e a vizinhança saibam quem é que fala mais alto na sua casa:

– Já vou, meu bem!



quarta-feira, 9 de março de 2011

Luís Pimentel - Duas histórias de carnaval

1.
Foi num Carnaval que passou

O folião chegou no bar Bip-Bip, em Copacabana, e puxou uma cadeira. Arrasado, depois de “três dias de folia e brincadeira” e de se esbaldar no desfile do rancho Flor do Sereno, despejou os cotovelos sobre a mesa e grunhiu:
 – Uma cerveja, estupidamente gelada.
Alfredo, dono do estabelecimento, conhecido e aplaudido pelo mau humor, grunhiu mais alto:
– Só tem quente.
– Serve – gemeu o folião, caindo imediatamente num pranto de derrubar encostas. Tão sincero que até o Alfredo se comoveu:
– Que foi, querido?
Acarinhado, o sujeito abriu o verbo:
– Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um motorista de ônibus?
Corno em fim de festa é comum, mas plagiando Lupicínio Rodrigues, não é a toda hora que se encontra.
Alfredo tentou ajudar:
– Qual é a linha?
– Nenhuma. Piranha da pior espécie.
– Estou falando do Ricardão. Qual é a linha que ele pilota?
– 571, Glória-Leblon, via Jóquei.
O comerciante enxugou uma lágrima discreta:
– É duro mesmo. Sei o que você está passando.
Começando a se acostumar com o chifre, o amigo recente se animou:
– Você também já levou bola nas costas?
E o Alfredo, olhar distante, pôs mais uma dose de maldade no alfinete de pontinha fina:
– Só levei bola nas costas nos meus tempos de médio-volante do Bangu. Agora, se pelo menos a vadia tivesse escolhido um motorista do 572, que é via Copacabana...


2.
Paixão na avenida

Saio do Sambódromo na madrugada de terça-feira, depois de ver o desfile da última escola de samba da segunda, e me dirijo à estação do Metrô na Praça Onze. Na fila dos bilhetes, o folião me aborda, lata de cerveja na mão e cigarrinho apagado no canto da boca:
– Tu conheces a Doralice?
– Só a do samba: “Doralice, eu bem que te disse, que amar é tolice, é bobagem, é ilusão”.
– Falo sério, meu chapa. Doralice parece mulata do Lan, tu manja? Sorriso lindo, todos os dentes na boca, peitinhos de amora, coxas de italiana, balaio grande...
Estava musicalmente inspirado, atropelei novamente:
“Mexia um balaio grande, muito mais macio que o boto cor-de-rosa do Custeau”.
– E como é que tu sabes?
– Isso é de outro samba. Fala mais de Doralice.
– Conheci domingo, no desfile da Mangueira.
– Como diria o grande Wilson das Neves, “ô, sorte!”.
– E perdi ontem, no embalo da Mocidade.
Adoro essas histórias, desde menino. Vivia pedindo para minha mãe recontar o drama de um corno amigo, que se ajoelhou diante da infiel, aos prantos: “Volta, amor. E traz quem tu quiser contigo”. Quis saber como é que foi:
– Como ganhei ou como perdi?
– As duas. O importante é competir.
O folião não regateou:
– Ganhei de um sambista desatento, que marcou bobeira. E perdi para uma loura de cinema, que encostou no meu patrimônio, como quem não quer nada, e prometeu vaga de rainha de bateria pro ano que vem.
– E Doralice?
– Foi. A essa altura, já deve estar ensaiando com a louraça.