sábado, 12 de junho de 2010

POR QUEM ERRA MEU CORAÇÃO - Cineas Santos




De Bola



Esférica tentação de todos os meninos,
lua cheia de graça nos pés de Ademir,
trigal de Van Gogh a bailar nos gramados.
Cúmplice de Adílio,treteiro e tinhoso:
finge que bate a acaricia...
Não falarei Dele, suprema magia,
de quem foste escrava, amante, estrela-guia;
nem do Outro, anjo-passarinho,
revoadas de alegria.
Falarei de mim, coração e pernas em descompasso,
pois ao menor sinal de ti,todo emoção
em erros me desfaço.
Vício que consome e alimenta,
paixão que nunca se evola.
Bela, incomparavelmente bela, Bola.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Sobre Pessoas - 16 - Antonio Torres

Oficialmente a Copa do Mundo de Futebol começa hoje, com o jogo África do Sul e México. Brindo os leitores do blog com esta belíssima e emocionante crônica de Antonio Torres sobre João Saldanha.

Foi um prazer te ouvir, João

“As pessoas não morrem. Ficam encantadas”.
Guimarães Rosa – outro João

De João Saldanha



As tevês não mostraram as fotos em que ele aparecia abraçado a Ho Chi Min e Mao Tse Tung. Nem poderiam. Foram queimadas por sua filha Rutinha, em 1972. É preciso dizer quais eram as paranóias de 1972?


E se a imprensa não lhe poupou encômios, não chegou a contar muito de sua história – uma rica, atribulada e longa história, intrinsecamente ligada à própria História do nosso tempo.

João Saldanha era um arquivo vivo de acontecimentos. E adorava relembrá-los, em narrações que dariam para entreter os seus ouvintes por mil e uma noites.

Foi assim que o conheci um pouco mais, em Maricá, no litoral fluminense, sempre que passávamos um fim de semana na casa da sua filha Rutinha (a Kika), e do Rogério, que ficava perto da dele, onde o almoço era sagrado. E ai se não lhe obedecêssemos! E que chegássemos cedo. Impunha tal condição com uma desculpa: “Para os meninos aproveitarem bem a piscina”. (Os meninos eram os meus filhos, Gabriel e Tiago, que a Kika e o Rogério cuidavam como se deles fossem). E ali, numa mesa à sombra de um avarandado, meio que tomando conta das crianças, dávamos os trabalhos por iniciados, significando isto o destampar da primeira garrafa de cerveja, para destravar o seu baú de memórias.

“Põe isto no papel, João, antes que tudo se perca na espuma dos dias” – eu me dizia, sem conseguir interromper aquele senhor de uma energia impressionante que, quando desatava a falar, não parava mais. Às vezes, lá pelas tantas, ele se lembrava de que precisava escrever uma crônica, para deixar na portaria do Jornal do Brasil, a caminho do Maracanã, onde dali a pouco iria cumprir a sua tarefa de comentarista radiofônico do jogo daquele domingo. Então pegava uma máquina de escrever portátil e papel e, numa velocidade de metralhadora, batia as suas trinta linhas. “Vê aí” – dizia, me passando a página escrita, e uma caneta, para que eu corrigisse os seus erros. Mas que erros? Aqui e ali um tropeço datilográfico. E nada mais.

No embalo, ele enfiava outro papel na máquina. E aí engatava uma segunda crônica, depois outra e mais outra, e isso num tempo mais rápido do que o que levávamos para beber um copo de cerveja. E eram linhas soltas, espontâneas, escritas por alguém que jamais se submetera a ditadura alguma, muito menos à da gramática.

João Saldanha escrevia como falava. Daí o charme, a força, a extraordinária expressividade do seu texto. Ele tinha a voz da galera em seus ouvidos. E batia firme e fundo contra os que a traíam. Temperamental por natureza, não conseguia evitar os rompantes violentos, quando contrariado, como no dia em que deu um tiro à porta de uma farmácia do Leblon, na qual uma sua empregada doméstica fora destratada. A sangue frio, era uma doce figura. De uma simpatia inacreditável.

Legou-nos uma verdadeira epopéia – Os subterrâneos do futebol -, em que relata uma excursão caça-níqueis do Botafogo por países das Américas, sob o seu comando. Treinou a seleção de feras que deu o tricampeonato mundial ao Brasil, mas não recebeu os louros, por não aceitar a intervenção de um ditador de plantão - o general Emílio Garrastazu Médici -, que teria tentado meter o bedelho em seu trabalho. (Seria injusto empanar aqui os inegáveis méritos do Zagallo, o técnico que o substituiu, e teve um desempenho brilhante nos gramados do México, em 1970. Tanto quanto esquecer que João Saldanha lhe entregou um selecionado praticamente pronto para a conquista daquela Copa do Mundo, na qual nos apoderamos, definitivamente, da Taça Jules Rimet).

Meus amigos...

Engrossei a multidão que foi dizer adeus ao “João Sem Medo”. O que não se curvava ao despotismo. Nunca poupou os cartolas corruptos ou simplesmente estúpidos do futebol. Nem os jabazeiros da crônica esportiva. Naturalmente, isso lhe rendeu alguns desafetos. Porém irrisórios, se comparados aos que compareceram na hora em que ele finalmente acabava de dar todos os seus combates por encerrados, todas as suas histórias por contadas – e para a nossa desolação. Acompanhando o cortejo que o conduzia à sua última morada, vi artistas, políticos, jornalistas, publicitários, dirigentes (uns poucos), e torcedores (muitos) de futebol. Mas o mais emocionante foi quando reconheci os pescadores de Maricá, aquela gente anônima com a qual ele proseava nas noites de junho, entre as barracas da festiva pracinha da Divinéia, e que viera de longe certamente para agradecer-lhe pela graça da sua fala. E ali, com minha mulher, a Sonia,
ao lado de Ruth Viotti, a mãe da Rutinha, digo, a Kika, eu fazia minhas as palavras de Scott Fitzgerald – devidas ou indevidamente adaptadas para aquele momento -, escritas como um epitáfio a um amigo dele, chamado Ring Lardner, que também fora um cronista esportivo:


“Um grande e bom homem morreu. Não o escondamos sob flores, pelo contrário, contemplemos aquele belo rosto todo sulcado de mágoas e tribulações que talvez não estejamos equipados para compreender. Foram muitos os que dele receberam os melhores momentos de evasão e inesquecível recreio de suas vidas”.

- Vidas que seguem – como diria João Saldanha.
(23.07.90)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Acidente em uma noite de chuva - Luís Pimentel

De Toco na estrada


– Que barulho foi esse?
– Acho que atropelamos alguém ou alguma coisa. Um gambá ou um cachorro.
– Só pode ter sido um cachorro. Nunca vi gambá por aqui.
– Claro que você nunca viu gambá por aqui. Você nunca passou por aqui.
– Tomara que não tenha sido uma pessoa.
– Vi o vulto. Muito pequeno para uma pessoa.
– Então, você matou um cachorro.
– Se matei foi sem querer. Está escuro pra cacete. Com essa chuva piora. E a estrada é uma porcaria.
– Não acredito. Você mata um cachorro inocente e reage assim?
– Assim, como?
– Com essa calma.
– Devo fazer o quê? Me jogar embaixo do carro para morrer junto com o cachorro? De mais a mais, que bobagem é essa de cachorro inocente? Todo cachorro é inocente.
– Como é que você sabe?
– Sei o quê?
– Que todo cachorro é inocente.
– Por quê? Você conhece algum cachorro culpado? Culpado de quê? Cachorro carrega culpas, se penitencia, tenta o suicídio? Será que esse tentou o suicídio hoje?
– Acho que não. Mas você deveria carregar a culpa, uma puta de uma culpa por ter tirado a vida de um ser, friamente.
– Friamente?! Foi um acidente, caramba! Uma porra de um acidente. Está escuro, chovendo, o bicho atravessou a estrada.
– Bicho?
– Bicho. Nem sabemos ao certo se é mesmo um cachorro.
– Como assim, “se é mesmo um cachorro”?
– Pode ser uma raposa, um macaco, um veado, uma onça, um tatu!
– Tatu?
– Por que não? Estamos numa estrada quase deserta. Tem mato pra todo lado. Por que não pode ter um tatu e o filho da puta do tatu resolver atravessar a estrada justo na hora em que passamos nessa porra dessa estrada, com essa bosta desse carro de faróis ruins, limpador de pára-brisa fodido, e praticamente sem freios?
– O carro está praticamente sem freios?
– Pastilha gasta, sei lá.
– Você pega uma estrada desconhecida com um carro sem freios e ainda me convida para participar da aventura?
– Não convidei você. Você se ofereceu para vir comigo.
– Não senhor. Você disse “quer vir comigo, venha”.
– Eu disse quer vir comigo, venha, porque você já tinha se oferecido.
– E daí? Isso justifica?
– Justifica o quê, meu cacete?!
– Vê como fala comigo! Quero saber se isso justifica você meter o carro em cima de um pobre de um cachorro que não tinha nada que ver com o seu desespero.
– E eu estou desesperado, por acaso? Atropelei esse infeliz de caso pensado, por acaso?
– Infeliz? A vítima agora é que é infeliz?
– Maneira de falar.
– Infeliz não é o cachorro, não. Infeliz é você, que vai hospedar essa mancha na alma para o resto da vida.
– Não vou hospedar mancha nenhuma. Já disse que não tive culpa desse acidente.
– Acidente?! Já percebeu que é sempre assim?
– Sempre, como? Assim, o quê?
– As barbaridades, a violência, os desatinos, as atitudes deploráveis são sempre justificados como se fossem acidentes. Os assassinos modernos são todos personagens de acidentes.
– Assassino!? Eu sou um assassino?
– Sei não. Pergunte à sua consciência.
– Já disse que não tenho culpa, merda!
– Entendi. Culpado é o cachorro.
– Para de falar bobagem e faz alguma coisa.
– Fazer o quê? Eu não matei ninguém.
– Pega o cachorro e põe no banco de trás. Pode ainda estar vivo. Se estiver, levamos a um veterinário.
– Levamos, não. Você leva. E não vou pegar nenhum cachorro morto ou moribundo. Essa função é, por lei, do atropelador.
– Está bem, imprestável. Vou pegar.
–...
– Merda! Mil vezes merda.
– Não trouxe por quê? Já está morto?
- ...
– Não era um cachorro?
– ...
– Uma pessoa? Meu Deus.
– Era um toco de madeira podre.
– Que porra fazia um toco de madeira podre no meio de uma estrada, numa noite de chuva, com tanto maluco que tem por aí nos volantes?
– ...
– Estou falando com você. O cachorro comeu sua língua?
– ...
– Vamos seguir, ainda temos muito chão pela frente.
– Mais alguma recomendação?
– Os tocos. Cuidado com eles.