sábado, 13 de agosto de 2011

Grande encontro cultural dos junqueses na capital baiana



Enquanto aguardava o preenchimento da nota fiscal na loja de material de informática, puxou conversa com o vendedor, que depois veio a saber tratar-se do proprietário. Entre a conveniência financeira de um “upgrade” do seu computador e o retorno do time do Bahia à primeira divisão do campeonato brasileiro, a conversa descambou para o São João, que se aproximava.

– Pretendo passar o São João em Santo Estevão, terra dos meus avós – falou o dono da loja.
– Eu vou para a minha terra, Sátiro Dias – disse o cliente.
– Sátiro Dias?! Você é de lá?
– Sou.
– Tenho um tio que é casado com uma moça de lá. Ela é da família Torres.
– Então eu devo conhecer.

Naquele instante descobrira a força da terra. Da sua terra. Em pleno centro nevrálgico de Salvador alguém que ele nunca vira tinha relações de afinidade com os seus parentes. Sim, porque lá no Junco todo mundo descende do mesmo saco genético, todo mundo é parente. Talvez esteja aí a razão do grande sucesso do primeiro encontro dos amigos e conterrâneos de Sátiro Dias, realizado por ele no ano passado. A terra é fértil e se ramificou em toda a parte, principalmente na capital do estado. Para cada habitante que ficou, há vinte que honram o nome do lugar em terras alhures.

Este ano o encontro será no próximo sábado, 20, no  Empório Arvoredo – Armazém do Interior, no Imbuí, a partir de uma e meia da tarde, onde haverá homenagens, shows musicais e o tão esperado lançamento do livro “Letras do Junco – antologia do conto sertanejo”, uma seleção de contos de treze autores da terra, idealizado por este escriba que vos escreve juntamente com o batalhador cultural Luiz Eudes, cuja responsabilidade da seleção, quanto da publicação ficou a cargo do mesmo. Com prefácio generoso do grande escritor da terra, Antonio Torres, orelha escrita pelo prefeito, um entusiasta das lides culturais, o livro conta com a participação de autores do velho Junco publicados Brasil adentro e até mesmo na Europa, como é o caso de Décio Torres, que atualmente faz pós-doutorado na Inglaterra e tem dois livros publicados na Alemanha e França. Tem também a estreia surpreendente de Nanty Andrade e Eryca Giuliany, que, na avaliação de Antonio Torres, são duas promessas na literatura sertaneja. 

Marcelo Torres, o jornalista e escritor radicado em Brasília e que atualmente não sai das páginas culturais do Planalto Central (ainda retumba seu livro “O bê-á-bá de Brasília”) faz participação especial e até mesmo Tico de Tiago, que assina José Pedreira da Cruz, deixou a garoa paulista pra narrar um conto do sertão.

O menino Evânio, lá das Gerais, Ademilton, em Conquista,  minha sobrinha Ana Lúcia, de Salvador, Alan Andrade, também responsável pela belíssima capa, a poetisa Cristiana Alves, levando a música erudita para o Junco e, como não poderia deixar de ser, Luiz Eudes, o qual lhe dedico umas mal traçadas linhas, por ser ele o responsável pela concretização dessa coletânea do conto sertanez, como diria Elomar.

Luiz Eudes é um paulista radicado no Junco desde quando usava fraldas. Descende das várias famílias que formaram o caldeirão genético junquês. Graças ao seu empenho incansável, o Junco tem hoje uma biblioteca pública e um departamento de cultura, que já teve seus grandes dias de glória. E, graças a ele, deve sair ainda este ano a primeira feira literária, coisa inédita no sertão do Nordeste.

Charles Cruz, o idealizador do encontro na Velhacap, é um junquês radicado em Salvador e que tem boa circulação entre os políticos, empresários e comunicadores, o tripé que garante o sucesso de qualquer evento. Assim, graças ao empenho desse ex-comedor de rapadura e de mangaba do tabuleiro, a capital baiana uma vez por ano é tomada festivamente pela alegria do reencontro de pessoas que foram separadas pelas necessidades da vida.

Vida longa ao evento e aos seus participantes.

Cineas Santos - A crueza dos contrastes

Na semana passada, presenciei dois fatos que, sem nada em comum, alertaram-me sobre os contrastes que marcam o cotidiano de Teresina. O primeiro: ao percorrer uma das avenidas mais agitadas da capital, ao meio-dia, me dei conta da loucura em que se transformou o trânsito da cidade. Ao longo de todo o trajeto, automóveis, ônibus, ciclistas e pedestres disputavam cada polegada de chão com aquela pressa suicida dos irresponsáveis. Buzinas, freadas, imprecações: um show imprudência e incivilidade. De repente, saído não se sabe de onde, um cidadão comum, encarapitado numa bicicleta desconjuntada, pedalava lentamente, alheio à fúria do trânsito. O sossego do ciclista já seria algo inusitado naquele universo caótico. Não bastasse isso, aquele homem, de idade inescrutável, transportava um jacá na garupa da bicicleta e, no jacá, cachos de tucum. Para os mais jovens, tucum é um coquinho delicioso, isso se o freguês conseguir quebrar-lhe a casca, dura como pedra. O ciclista era um prosaico vendedor de tucum. Até o início da década de 90, a cena nada teria de extraordinária: nas ruas de Teresina, vendedores de bacuri, bacupari, pequi, pitomba, umbu, cajá e outras frutas silvestres disputavam os fregueses no grito. Um comércio informal com cheiro, cor e gosto reconhecíveis à distância. Parei o carro e acompanhei a trajetória do vendedor até onde a vista me permitiu. Ninguém parecia interessado na sua “estranha” mercadoria.

O segundo fato, menos prosaico e mais preocupante: no domingo passado, saí com uma equipe de TV para fazer um documentário. Paramos numa rua, de aparência sossegada, no bairro São Pedro. Mal começamos a filmar, aproximou-se um cidadão que lavava um automóvel em frente a uma residência. Ao reconhecer-me, pediu desculpas por estar sem camisa, e me fez um pedido: Professor, faça uma matéria sobre o nosso bairro. Um pedido razoável que, sem maiores sacrifícios, poderia ser atendido na hora. Fiz apenas uma pergunta: Meu irmão, o que o seu bairro tem de interessante em matéria de arte, cultura? O cidadão, com um olhar de desespero, respondeu: Nada, professor. O que temos de sobra aqui é violência. Violência a qualquer hora do dia ou da noite. Minha mulher foi assaltada na porta de casa; uma sobrinha do diretor da Faculdade Santo Agostinho foi assaltada na entrada da garagem do prédio... E desandou a falar sobre a violência que aterroriza os moradores da rua. Até aí, nada de extraordinário: Teresina, hoje, é uma das capitais mais violentas do país, embora a propaganda oficial diga exatamente o contrário. Extraordinário foi saber que aquele cidadão aflito é um policial civil. Em tese, o policial deveria ser a presença, ainda que simbólica, da segurança pública naquela rua triste. Na prática, um homem apavorado, pedindo socorro a uma equipe de TV. Um tanto constrangido, expliquei-lhe que o programa que apresento – Feito em Casa – não tem o viés mundo-cão. Desacorçoado, o moço retirou-se, deixando no ar o lamento: Desculpe incomodá-lo, professor, eu tinha esperança de que o senhor pudesse fazer alguma coisa por nós. O desabafo daquele policial desarmado estragou-me o domingo.

Foi aí que me ocorreu a seguinte reflexão: os teresinenses vêm fazendo um esforço extraordinário para livrar Teresina do seu jeito provinciano de ser. Querem-na “moderna”: livre de quintais, de vendedores de frutas, de pipas no céu azul. Nada de cadeira na calçada, de bodega na esquina, de picolé caseiro, de banhos no Parnaíba... O que essa brava gente insiste em não ver é que o “progresso”, feito de concreto, de asfalto, de ruas entupidas de automóveis, de supermercados e shoppings, cobra um preço muito alto. A conta – o medo e o desassossego – será rateada entre todos nós.


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O que sei de Lula

[Texto reencaminhado por Antonio Torres. Encaminhamento original: José Nêumanne Pinto]


O jornalista, comentarista de rádio e TV, escritor e poeta José Nêumanne Pinto conheceu Luiz Inácio Lula da Silva em maio de 1975, pouco depois de este haver assumido a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Desde então, tem mantido contato profissional e pessoal – de início, mais estreito, depois limitado ao noticiário – com o personagem que ele considera o maior líder político do Brasil em todos os tempos.

Nos últimos meses do segundo mandato do ex-dirigente sindical e do Partido dos Trabalhadores na Presidência da República, Nêumanne resolveu escrever seu testemunho, com o qual pretende esclarecer o que fez dele o primeiro representante autêntico do homem do povo no poder mais alto. O que sei de Lula relata episódios inéditos, como a reunião de Lula com um emissário do Planalto no governo Figueiredo, o major Gilberto Zenkner, que tinha montado a rede de espionagem do Exército contra a guerrilha do PCdoB no Araguaia, no apartamento do jornalista Alexandre von Baumgarten, vítima de um atentado em alto mar, cuja autoria foi atribuída à chamada “comunidade de informações”. E acompanha a trajetória do menino retirante do sertão de Pernambuco à Praça dos Três Poderes à luz de fatos reais, e não da poeira mitológica com que se tentou cobrir, ao longo dos últimos 36 anos, a verdade histórica, posta a serviço da doutrinação ideológica.

O Lula que emerge das páginas deste livro não é o socialista que trocou a revolução pela carreira política de sucesso na democracia, mas sim um gênio da comunicação que conseguiu falar diretamente à alma e ao coração do homem comum, com sua experiência de convívio com a fome, a humilhação e o desemprego. Admirador declarado de Mahatma Gandhi e de Adolf Hitler, como confessou a um entrevistador à época em que liderava os metalúrgicos do ABC em greves que ajudaram a derrubar a ditadura militar no Brasil, tornou-se amigo de revolucionários como o cubano Fidel Castro e chegou a ser publicamente elogiado pelo presidente dos EUA, Barack Obama, que o chamou de “o cara”.

O texto deste livro acompanha as mudanças da “metamorfose ambulante”, expressão inspirada na canção do roqueiro Raul Seixas que o próprio líder adotou para se definir, que começou se negando a participar da campanha pela anistia dos exilados, proposta pelo general Golbery do Couto e Silva, e terminou levando ao poder um dos mais notórios deles, o ex-líder estudantil José Dirceu. “Nêumanne escreve porque esteve lá, diante do evento que estava sendo gerado. É irretorquível, portanto, o caráter conservador de Lula e de sua turma. Não dá, depois das páginas deste livro, para tagarelar em ‘esquerdês’ no caso do gárrulo presidente”, escreveu o filósofo e professor de ética Roberto Romano.

O profissional de televisão José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, definiu o livro como “fascinante na forma de narrar, no conteúdo sólido e na construção precisa e detalhada do personagem. Transcende ao Lula. É uma aula de política brasileira”. Segundo o cientista social Leôncio Martins Rodrigues, “neste livro, Nêumanne nos dá uma contribuição extraordinária para entendermos as idas e vindas de quem se definiu como metamorfose ambulante.

LANÇAMENTO NO RIO:

Terça-feira, 16 de agosto, a partir das 19h
Livraria da Travessa
Rua Visconde de Pirajá, 572/ Ipanema
Tel.: (21) 3205.9002

LANÇAMENTO EM S. PAULO:

Terça-feira, 23 de agosto, a partir das 19h
Livraria da Vila
Rua Fradique Coutinho, 915/ Vila Madalena
Tel.: (11) 3814.5811

O QUE SEI DE LULA
Autor: José Nêumanne Pinto
Editora: Topbooks
Formato: 16x23cm
Páginas: 522
ISBN: 978-85-7475-188-7
Preço: R$69,00

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Maurício Melo Júnior - Renunciar palavras, frases inteiras

Nas mãos repousavam os originais de um clássico. Um papel amarelado pelo tempo, descolorido pela ação de tantos dias, iluminado pelo olhar atento de incontáveis leitores. Um clássico. Na página agora frágil e preciosa, num tempo de muito ontem, o autor, determinado e conciso, riscou o título já impresso com a força da máquina tipográfica: O Mundo Coberto de Penas. Sobre a frase riscada, a nomeação definitiva: Vidas Seccas. Assim mesmo, com dois cês, como exigia a gramática da época. 1938.

Alguma mensagem ainda oculta naquele caminho tantas vezes percorrido? Segui em frente debatendo-me com outras tantos riscos, outras tantas correções, outras várias necessidades de se apurar a linguagem, secá-la, enxugá-la, extrair de cada palavra o máximo de suco e delícia. Um ofício danado de incertezas e revisões este de botar no papel as vidas imaginadas.

No mesmo dia me deitei sobre outro emaranhado de palavras escritas numa letra miúda, maldita, ilegível. Um caderno escolar pautado e ocupado da primeira à última página em todos os espaços possíveis. O autor devia ser muito pobre, posto ter economizado cada milímetro do papel, como se temesse faltar brancura onde pontear suas idéias. Branco mesmo, de fato, somente parte da primeira página onde se podia ler com alguma clareza uma única frase: Memórias de um Menino de Engenho, com um risco forte cortando as três primeiras palavras.

Como daquele mato não me pareceu possível retirar algum coelho, parti para outro encanto. Um volume massudo, gordo, farto, coronelístico. A primeira palavra do texto datilografado com esmero foi preservada: Nonada. Também o título, desenhado com caneta colorida, em letra de forma, com certa simetria sobre o papel – Grande Sertão: Veredas.

O que se seguia depois do Nonada era um desembestar de riscos feitos com a precisão de uma régua. Cada uma daquelas frases renunciadas era encoberta pela fúria de muitos riscos, inviabilizando em definitivo sua leitura. Sobrevivia apenas aquilo que era do desejo do autor. Nada além disso deveria prosperar, entrar para eternidade. Nonada, senhor, apenas não se deve correr o risco de macular uma obra com os erros possíveis de serem corrigidos, encobertos.

Num outro caderno, este preenchido na solidão de uma fazenda sertaneja por uma mocinha que tentava se livrar da ameaça de uma tuberculose, a letra de professora bem aplicada foi me dando lições de humanismo e brasilidade. A tal moça, na verdade, de bem comportada tinha apenas a letra e carinha inocente. Era uma danada. Primeiro burlava a vigilância paterna que a queria muito cedo na cama. Quando todos dormiam, ela, sorrateira, acendia uma lamparina e deitada no chão da sala viajava com sua criação.



O curioso é que numa conversa meio antiga a moça agora amadurecida e consagrada confessou-me não saber o paradeiro dos originais daquele livro que não gozava de sua simpatia. “É um livrinho chinfrim”, dizia prenhe de injusta modéstia. Pergunto então ao novo dono como aquilo chegou a sua imensa biblioteca. Contou-me uma estranha saga. Comprou de uma viúva a quem prometeu só revelar sua existência depois que a autora tivesse ido para o sempre. Assim fez e assim pude contemplar a renúncia de uma nordestinada bonita. No título escrito à mão podemos ler A Quinze, e sobre o A inicial um O soberano e definitivo.

Ler todas aquelas pérolas preenchidas de vacilos e determinações nos aponta para a carga humana que pesa sobre os ombros de seus autores.

Há pouco, queimando pestana com um Juazeiro centenário, li emocionado um texto ditado a um datilógrafo pelo padre milagreiro. Depois o patriarca do Cariri fez algumas correções no texto e o assinou. Era uma carta dirigida a um amigo com sugestões à Constituinte de 1932, entre elas um artigo proibindo a venda de terras brasileiras a qualquer estrangeiro, sobretudo quando estas terras estivessem em áreas de interesse primário da nação, como as matas, as vazantes dos rios, o litoral.
Quanta atualidade.

Momento houve em que velho amigo retirou da prateleira um baú de madeira pejado de papéis soltos e aparentemente desconexos. Telegramas escritos no verso, guardanapos de hotéis e restaurantes, folhas avulsas, algumas páginas datilografadas, um carnaval, um cafarnaum desgraçado. Só identifiquei que dali surgiu um livro clássico, o início de uma série fundamental e incompleta, quando li o papel envelhecido que cobria tudo aquilo: Casa-Grande & Senzala.

Seu autor publicou outros dois volumes, como se sabe, e morreu jurando que tinha escrito o quarto tomo: Mausoléus e Covas-Rasas, que teria sido roubado de sua casa. Bem desgraçado o certo ladrão de sabedorias. Havia ainda um livro com a iconografia necessária para melhor se entender a formação social do Brasil, mas este o mestre não conseguiu levar adiante.

Mergulhado nestas lembranças, sentindo o cheiro dos velhos papéis, revejo a solidão necessária ao escritor. Lidar com a palavra e suas armadilhas é ofício para quem ousa desafiar a eternidade. Indubitavelmente a morte nos espreita numa esquina. Ficarão os sonhos que deitamos no papel, caso nenhum deus do esquecimento queira nos brindar com suas graças. Mesmo assim ainda corremos o risco de alguma viúva nos resgatar do limbo.

E como o futuro parece ser uma ordem, uma artimanha da arte e do conhecimento, vale a pena tomar precauções e reescrever, reescrever, reescrever. Literatura é labuta para quem sabe renunciar a facilidades.


domingo, 7 de agosto de 2011

Ordens são ordens






– Quantos maços de cigarro você fuma por dia, meu amigo? – perguntou o médico.
– Fumo quatro maços de Minister, doutor! – respondeu o paciente.
– Pois a partir de hoje você vai ter que reduzir pra apenas um maço de “Minister” por dia. E isso é uma ordem médica, entendeu?
– Sim senhor!

Saiu do consultório disposto a seguir à risca a ordem médica: entrou na primeira tabacaria que encontrou e comprou um maço de “Minister” e três de “Hollywood”.