quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Vou lá buscar a noite e já volto



Os cientistas buscam no Universo a explicação da cosmogonia, os religiosos buscam em seus livros sagrados o princípio da teogonia e Susana Ventura foi buscar na floresta, entre os caiapós, a origem das coisas, se não tudo, pelo menos as principais, como o arco, a flecha e o fogo.

“Vou lá buscar a noite e já volto”, podia ser um livro de poemas como sugere a poética do título, mas trata-se d’algumas lendas do povo caiapó (onze contos), deliciosamente narradas por Susana. Catalogado como infanto-juvenil, é um livro ideal para os avós lerem para os netos em noite de lua cheia.

Com belíssimas ilustrações de Vanina Starkoff, são histórias que vieram para resgatar a nossa porção indígena que se deixou mutilar nos genes dos colonizadores.

Livro:
VOU LÁ BUSCAR A NOITE E JÁ VOLTO
Literatura infanto-juvenil
Susana Ventura. Ilustração de Vanina Starkoff
Editora Berlendis & Vertecchia – São Paulo
47 páginas

Do pouco que desaguou na Lapa quando a Lapa era Lapa


“Lapa, minha Lapa boêmia

A Lua só vai pra casa

Depois do sol raiar.”

(História da Lapa, samba de Wilson Batista e Jorge de Castro)


Quando conheci a Lapa, não tinha idade suficiente para compreender a boemia de suas noites. Mal despontava a adolescência no dia que subi de bondinho sobre os Arcos para conhecer Santa Teresa. Desci mais de uma década depois, na efervescência cultural do Circo Voador nos anos 1980. Estive lá, em noite de gala, me representando legitimamente numa empreitada esotérico-literária da Cristina Oiticica e mal tive tempo de entornar o copo em um das suas dezenas de bares. Ficou para o depois da ressaca de outras bebedeiras, mas certas emergências pela sobrevivência me deixaram ao largo do Largo da Lapa.

Este ano visitei a Lapa. Senti-me o próprio personagem da música de Adelino Moreira: “Esse pedaço / Que passa gingando em seu braço / Meu chapa / Já foi rainha da Lapa / Quando a Lapa era Lapa”.

Não havia bonde sobre os trilhos. Nem a boemia que a universalizou na música. Nem o medo estampado dos capoeiristas de Wilson Batista, do travestido e protetor das putas Madame Satã, nem do encouraçado Aquidabã que colocou o bairro no centro das atenções. A Lapa estava lá, como um bairro qualquer, mas ainda possuía seus encantos boêmios. Eu é que não estava zen. Para quem foi condenado a beber cerveja sem álcool, nada na noite faz sentido, nem mesmo no dizer de Caetano Veloso de que tudo deságua na Lapa. Nessa noite desaguava apenas nostalgia.

Mas a Lapa, aquela que deu guarida aos notáveis da nossa MPB e aos célebres malandros estampados nas manchetes de outrora, acaba de ser revisitada por Luís Pimentel e Amorim, o primeiro, escritor, o segundo, desenhista, numa deliciosa e preciosa revista em quadrinhos chamada “Aconteceu na Lapa – Novela Carioca”, onde eles mesclam a Lapa de Noel Rosa, Wilson Batista, Ismael Silva, Assis Valente com a Lapa de hoje. E ainda nos brinda com a biografia dos dias de glória e de tragédia do compositor mineiro Geraldo Pereira, autor de várias músicas de sucesso gravadas por vários intérpretes ao longo das décadas, como Falsa Baiana, faixa  no LP “Fa-Tal (A todo vapor)”, de Gal Costa, Acertei no Milhar, gravada por Moreira da Silva, Jorge Veiga, Gilberto Gil e Germano Mathias, estes dois últimos no LP “Antologia do Samba-Choro”, Pisei num Despacho, gravada por Jackson do Pandeiro, Cyro Monteiro e Zeca Pagodinho e Bolinha de Papel, interpretada, nada mais, nada menos, pelo ícone da bossa-nova João Gilberto, em 1961.

Foi na boemia da Lapa que Geraldo Pereira escreveu seu último samba, vitimado por um sorriso desprevenido e traiçoeiro, assim nos conta a dupla Pimentel – Amorim.

Para quem não sabe, Luís Pimentel é jornalista e escritor, com vários livros espalhados no Brasil de Dentro e no Brasil de Fora, e também colaborador irremunerado do blog Onde canta a acauã. Amorim começou a pintar o sete no humor na reedição do Pasquim, em 1984. É um cartunista premiado em vários países, e atualmente se diverte com charges editoriais, caricaturas, ilustrações e quadrinhos.



domingo, 7 de setembro de 2014

Therezinha Hernandes - Brincando com a língua - Do brega à etimologia e à polissemia.



Há algumas semanas descobri uma palavra nova: “brega”. Bem, acredito que a maioria dos paulistas vai dizer que essa palavra é antiga, que eu devo estar delirando, “onde já se viu não saber o que significa ‘brega’?”, e por aí vai.

A questão é outra. Descobri para essa palavra dois significados que para mim são novos: brega como substantivo sinônimo de bordel, lupanar, zona de meretrício, cabaré de baixa categoria, e, em Portugal, brega como substantivo que designa o ofício do toureiro durante a tourada, por empréstimo ao espanhol – e deste último significado vem muita reflexão, mas vamos por partes.

Sempre ouvi a palavra brega como adjetivo: música brega, roupa brega, decoração brega, pessoa brega, etc.

Pesquisando a origem do termo (e rindo muito! Quem disse que pesquisa não pode ser divertida?), deparei com várias definições, ou tentativas de definir um vocábulo tão abrangente e ao mesmo tempo tão vago como “brega”.

Da música à moda, passando pelo comportamento, tudo que é deselegante é brega. Se for algo de mau gosto, é brega. Se for excessivamente popular, é brega. Exagerado ou singelo demais? É brega. Algo que apela sem pudor às emoções é brega. Tudo que é fora de moda, antiquado, cafona (e cafona já é uma palavra fora de moda) é brega.

Num dicionário online (http://www.dicio.com.br/brega/) encontrei as seguintes definições:

“adj. m. adj. f. Informal. Pej. Característica da pessoa que não possui cortesia; cujos modos são indelicados; cafona: “naquela festa só havia gente brega!”.
 Que denota falta de gosto; que se apresenta de maneira desapropriada tendo em conta a opinião de quem critica: música brega; vestido brega.
Particularidade daquilo que é grosseiro, reles, comum: apartamento brega.
Que possui características melodramáticas ou expressa seu sentimento de modo exagerado;  kitsch.
s.m. e s.f. Pessoa que possui essas características: “embora se vestissem como ricos, não passavam de uns bregas”.
s.m. Bahia. Informal. Região de prostituição. (Etm. de origem discutível)
s.f. Portugal. Ofício do toureiro durante a tourada. (Etm. pelo espanhol: brega)”

 Também durante a pesquisa online (http://www.dicionarioinformal.com.br/brega/) surgiu esta informação:

“No interior da Paraíba, Pernambuco e Ceará, sinônimo de cabaré, geralmente de baixa categoria. A música tocada nesses ambientes, assim como o modo de se vestir e de se comportar dos seus frequentadores, geralmente gente simples do povo, fez com que o termo fosse utilizado como antônimo de "chique", oposto dos valores das das camadas privilegiadas da sociedade:

- Vamos para o brega hoje.

- Essa é uma música de brega.”

Veja-se, neste último exemplo, que se trata de uma locução adjetiva, “de brega”. Aquilo que fosse característico de um cabaré seria “de brega”: música de brega, roupa de brega, gente de brega. Daí a ser transformado diretamente num adjetivo foi apenas um passo.

Isso pode explicar o emprego da palavra como adjetivo, mas não explica seu surgimento como substantivo significando cabaré ou lupanar. Talvez a resposta esteja no seu emprego, em Portugal, para designar o “ofício do toureiro durante a tourada”.

Deixando de lado o fato de que, pela lógica, o ofício do toureiro é a tourada, a etimologia desta acepção resta bem obscura.

Buscando a origem espanhola do termo (Dicionário de Espanhol-Português, Porto Editora, s. d.) , “brega” significa briga, disputa, conflito, luta, pendência. Isso explica seu uso, em Portugal, para designar o ofício do toureiro.

Como verbo, “bregar” tem o sentido de brigar, contender, mas também de fatigar-se, trabalhar afanosamente; em sentido figurado, “bregar” é lutar contra as dificuldades.

Porém, nesse caminho tortuoso, surgiu o adjetivo “bregado(a)”, que é um barbarismo para “bragado”. Certo. Mas o que é “bragado”? Lá vamos nós...

“Bragado”, figurativamente, é um adjetivo aplicado a pessoas enérgicas e firmes, mas em seu sentido original designa o animal cujas pernas têm cor diferente da do resto do corpo. Por extensão, surge “bragadura”, que dá nome ao entrepernas – parte superior e interior das coxas, ou à parte do vestuário que fica nessa região do corpo.

A partir dessa definição, e conferindo possíveis regionalismos da língua espanhola, chegamos às “bragas”, que em espanhol designam a peça inferior da roupa-de-baixo feminina, ou seja: a calcinha. Mas, em sentido figurado, significa estar sem dinheiro, em situação difícil, ou, ainda, ser desprevenido ou descuidado.

Todos estes significados para a palavra brega, bregado, bragado ou braga, em espanhol – briga, entrepernas, calcinha, situação difícil, trabalhar arduamente -, são origens possíveis da palavra brega, empregada no Brasil como sinônimo de cabaré ou bordel, e a partir daí a sua derivação como adjetivo, para qualificar alguma coisa como de mau gosto.

Mas nenhuma dessas possibilidades tem o mesmo encanto, nem é tão divertida, quanto a origem, ainda que folclórica, suscitada nesta definição (http://pt.wikipedia.org/wiki/Brega):

“Brega: de mau gosto, de baixo nível. Consta que a palavra teve origem em Salvador, mais propriamente numa área urbana de baixo meretrício onde uma placa indicando a Rua Padre Manuel da Nóbrega teve gasto o letreiro, sobrando apenas as duas últimas sílabas. Aplica-se a pessoas que se mostram sem elegância, que exibem mau gosto.”


Quem não gosta de pesquisar em dicionários não sabe a diversão que está perdendo.

Mama África é mãe solteira na soleira da visgueira

Noite de sexta-feira. A visgueira fervilhava. Cliente vazando pelo ladrão. Cerveja gelada, churrasquinho de gato e papo animado. Radiola de ficha tocando Pablo, o rei do arrocha, alguns casais dançando coladinho e de repente, numa mesa do canto, alguém aponta para a entrada e fala alto para se fazer ouvir:

- É Bola!

Para a música. Correria geral. Todos querendo fugir ao mesmo tempo. "Onde é a porta de emergência, essa porra desse vírus mata!", gritou alguém em pânico total. O dono do boteco colocou a mão na cabeça, desesperado com o prejuízo.

Passado o descontrole nervoso, bar vazio, meu amigo Osvaldo Bola Pires entra tranquilo e junta-se aos amigos na mesa do canto, que até então não haviam compreendido o porquê de tamanha balbúrdia.