sábado, 12 de novembro de 2011

Maurício Melo Júnior - Névoa poética sobre a Academia

Os do Norte chegaram arrastando seus sonhos. E o Norte era longe, improvável. Traziam também na bagagem vastas emoções, culturas. Pela estrada cumprida – no mar ou na terra – corriam tantas vidas, tantas paisagens, tantas cores que preenchiam as retinas mais amplas e abertas. E com suas cargas entranhadas na pele, os do Norte espalharam-se por todas as partes.

Um deles, de nome Nabuco, Joaquim Nabuco, falava de noites escurecidas pela opressão onde a resistência fazia nascer desejos libertários. Pelas pregações que fazia, o negro Tobias que esfaqueara de morte o patrão num engenho de Pernambuco não matara um homem, mas séculos de humilhação e dor. Foi contra os incontáveis lanhos abertos nas costas de seus pares que investiu o pobre escravo. Depois da abolição, ainda prenhe de ideário renovador, o agora maduro jurista sofreu por não ver realizado o projeto de inclusão social que sonhou para os deserdados da sorte e se voltou para seus escritos e sistematizou uma academia para abrigar as letras do Brasil. Hoje perpetua-se, com gingado de dândi, na calçada da instituição.

Ao seu lado, sentado numa escrivaninha, tentando arrancar alguma poesia da rigidez do bronze que lhe segura sempre na mesma posição, outro do Norte, Manuel, de sobrenome Bandeira. Este nunca conseguiu chegar em Pasárgada, no entanto escreveu passos líricos em quilômetros incontáveis de terras espalhadas por todos os continentes. Semeou versos em cada palmo desse chão, seduziu a todos com as belezas de sua criação. Sua voz de tísico, de homem com pulmões capazes de tocar tangos argentinos se ouviu alta, em palavras fortes e indissolúveis. Se fez herói trabalhando somento verbos e sentimentos: “Não faço versos de guerra, não faço porque não sei, mas num torpedo suicida darei de bom grado a vida na luta que não lutei.”

Por tudo isso está ali, na calçada de um edifício alto, de muitos andares, com incrição no pilar principal: Palácio Austregésilo de Athayde. Este também era nortista. Foi numa conversa com Rachel de Queiroz, também filha da terrinha, que o assunto surgiu: “Você precisa ouvir o Athayde. Ele tem mais de 90 anos e uma lucidez invejável. É da raça cearense.” “Dona Rachel, ele estudou no seminário de Fortaleza, mas é pernambucano de Caruaru…” “Meu filho, quando o menino é bonito todo mundo quer ser o pai.” Athayde não era necessariamente um homem bonito, portava mesmo uma feiúra danada, mas as palavras saiam com facilidade e explendor de sua imaginação. Em essência foi cronista, homem de jornal, conhecedor dos rigores da linguagem e sua necessidade na defesa dos direitos naturais do bicho humano. 

Hoje se caminha pelos espaços desses edifícios – o palácio propriamente dito e o menor, o mais clássico, o dito Petit Trianon – respirando os prazeres da cultura. Quem preferir pode subir outros andares, onde se cuida de negócias que sustentam numerários, de minha parte vadio olhando livros, reedições bem cuidadas de obras raras e fundamentais – João do Rio no cinema, cartas de Machado de Assis. A língua portuguesa, essa nossa pátria tão judiada, olvidada, precisa de defesas, imunidades que mantenham suas particularidades, suas características seminais. Penso nisso ao cumprimentar o gramático Bechara, outro do Norte. E sigo sem saber bem o que fazer. 

Como peixe-agulha encantado com a luz de lanternas, pulo em outro barco chamado por um cartaz imenso – Presença Poética do Recife / Exposição Sobre o Centenário de Mauro Mota. Desculpe a fraqueza desta memória, meu poeta, mas seu nome estava escondido numa prateleira mais alta de minha cabeça e há muito que não esticava o braço até lá. É também que este país, esta máquina de moer talentos é tão eficiente em sua faina cruel que as vezes nos entregamos ao sentimento ruim e em tempos mais eufóricos esquecemos os primores de ontem. Coisas do bicho humano, você sabe. 

O certo é que passei por um passado que me parecia distante, imemorial, sem lembrar que era parte primordial de meu âmago. O Recife, os canaviais, os engenhos. Tudo isso que foi seu desfilava sob meus olhos de saudade. Livros, poemas, análises de sabor sociológico, o fabrico de uma cabeça inquieta que ousou pensar Pernambuco como pedaço do Nordeste, mas também por isso, síntese do vasto mundo. Daí o carinho pelas tecelãs, pelas moças assustadas com os tiros da guerra e encantadas com a beleza nova de homens vindos de outros Nortes. E a vida em família, entre filhos e amigos. A beleza de Hermantine, a que tinha mãos feitas para construir destinos. O primitivismo artístico brotado das telas de Marly, a de mãos feitas para expressar o belo. Um cochicho com Gilberto Freyre. Um abraço em Chacrinha, o bonachão nortista Abelardo que veio saber de sua glória chegando à Academia. Muitas lembranças, meu velho.

Tudo se transmuta, quando preciso, em poesia. As estantes centenárias da biblioteca me mostram Ferreira Gullar, também do Norte, pedindo a Bandeira que leia seu livro de estreia, Um Pouco Acima do Chão. No mesmo patamar, um volume magro com poemas de Ascenço Ferreira traz dedicatória fraterna ao mesmo Bandeira. É tanta vida a se olhar, moço, que sigo carregando o orgulho de também ter vindo do Norte e poder juntar as forças de um talento miúdo para falar de esferas infindas. 

Penso no tanto que Pernambuco, bicho atrevido que gosta de falar para o mundo, plantou neste solo fértil. E sento para ouvir Carlos Fuentes falar de outros mundos. O México rebelado, Pedro Páramo, gente que conversa com fantasmas, as possibilidades infindas da literatura.

O mundo é grande e não tem porteiras. E as academias quando querem sabem encontrar os caminhos da atividade, do saber e da grandeza.


quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Cineas Santos - As lições das meninas do Zuenir

No milênio passado, eu e o prof. Adala Carnib apresentamos, por mais de um ano, um programa na Rádio Pioneira de Teresina. “Viva o sábado”, com duração de duas horas, ia ao ar nas noites de sábado, das 18 às 20 horas. O foco do programa era a educação, mas falávamos de quase tudo: cultura, ecologia, costumes, etc. Além de não nos pagarem nada pela produção e apresentação do programa, que ostentava a chancela do MEB, ainda tínhamos de levar nossos discos (os velhos vinis) para termos a liberdade de só tocar o que quiséssemos. E, em matéria de música, tínhamos um pacto inegociável: não tocávamos música estrangeira nem brega. Abríamos o “Viva o sábado” com o “Expresso 2222”, de Gilberto Gil, na voz de Simonal. A melodia de fundo era “Assim falou Zaratustra”, de Richard Strauss”, com arranjos de Eumir Deodato. O mais eram Elomar, Quinteto Violado, as feras da MPB e até o bruxo Hermeto Paschoal. Modéstia às favas, o programa era bem feito. Quanto à audiência, devia ser bem chinfrim.
 
Uma noite, uma radiouvinte (palavrinha antiga) me ligou: “Professor, para o senhor, o que é felicidade?”. Esperava, naturalmente, uma longa explanação com incursões pela filosofia, religião, literatura e o diabo a sete. Por preguiça e incompetência, fui direto ao ponto: minha irmã, para mim, felicidade é o dente que não dói. Insatisfeita com a resposta, a cidadã retrucou: “Honestamente, não entendi”. Rebati de bate-pronto: quando lhe doer um dente, você entenderá. E mais não disse. Confesso que, hoje, eu não teria resposta melhor. Na verdade, nunca me preocupei em procurar um conceito para felicidade. Basta-me fruí-la quando ela me concede o ar de sua graça, o que sói acontecer com alguma frequência.

Lembrei-me dessa história ao ler a bela crônica “A Preguiça de Sofrer”, do Zuenir Ventura. O cronista nos fala de sete cidadãs, quatro delas irmãs, com idades entre 73 e 90 anos. São amigas e costumam passar os finais de semana na região serrana de Itaipava. Tornaram-se amigas do escritor na década de 70. De amigas, passaram a fãs. Hoje são conhecidas como as Meninas do Zuenir. Onde quer que o cronista se apresente para uma palestra ou debate, lá estão as sete na primeira fila. A despeito da idade, continuam lúcidas, ativas e alegres. Trabalham, passeiam e divertem-se com um entusiasmo de matar de inveja muitos jovens. Há, entre elas, um acordo tácito: não se fala de doenças, de mágoas, de tristezas. Um dia, o Zuenir lhes perguntou qual a receita para o bom humor do grupo. Guilhermina, de 84 anos, respondeu por todas: “Tenho preguiça de sofrer”.

Dia desses, um desses sábios de plantão afirmou: “Um dos problemas do homem ocidental é a obrigação de ser ou de, pelo menos, parecer feliz em tempo integral”. Nessa busca desenfreada e inútil, vale tudo: de reza forte a cirurgia plástica, passando por drogas e livros de autoajuda (não seriam a mesma coisa?).Resultado: uma legião de neuróticos narcisistas e consumistas à procura do Valhalla. Enquanto isso, sem gastar um centavo, as Meninas do Zuenir curtem sua saudável preguiça onde quer que estejam. O poeta tem razão: “Viver deveria bastar”.



quarta-feira, 9 de novembro de 2011

José Nêumanne Pinto - A revolução dos “bichos grilos” mimados da USP

É proibido fumar maconha na nave da Sé, na rua, nas boates e no campus da Universidade.

A Universidade de São Paulo (USP) é a maior instituição de ensino superior do Brasil. Com 11 campus e 89 mil alunos matriculados, dos quais 50 mil na Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, figura também entre os mais reconhecidos centros de excelência em pesquisa científica e produção de pensamento filosófico do subcontinente latino-americano. No entanto, nenhum de seus mais respeitáveis mestres de Matemática será capaz de explicar de que tipo de legitimidade foram ungidos os 73 vândalos que ocuparam dois prédios – um da administração da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e outro da Reitoria – para merecerem do reitor anistia “administrativa” pelos danos cometidos contra o patrimônio, de propriedade da cidadania brasileira, que sustenta suas atividades de aprendizado. Nem sequer o grego Aristóteles, preceptor de Alexandre, o Grande, encontraria alguma lógica na concessão dada a, digamos, 600 estudantes para decidirem sobre a permanência de jovens turbulentos e estranhos ao expediente nos dois prédios, a pretexto de protestarem contra a presença da Polícia Milita (PM) no campus, que consideram “território sagrado” e inviolável..

Quem se depara com a informação de que os invasores dos prédios só admitiam negociar com a Reitoria se os policiais fossem afastados da Cidade Universitária pode ter a falsa ideia de que, de repente, num pesadelo inimaginável, tivéssemos voltado à ditadura, que reprimia a liberdade acadêmica. Nada disso! Entre janeiro e abril deste ano, os roubos no campus aumentaram 13 vezes e os atos de violência – entre os quais estupros e sequestros relâmpagos – cresceram 300%. Em maio, um estudante de Economia foi morto num assalto. O sangue dele foi a gota que fez o cálice transbordar e a direção da USP assinar um convênio com a PM para que soldados fizessem o papel que vinha sendo desempenhado por 130 agentes de segurança patrimonial, que, em dois turnos, vigiavam dezenas de prédios e vários estacionamentos e garantiam a segurança de 100 mil pessoas que circulam todo dia pelas ruas da sede da USP. Em quatro meses de policiamento, os furtos de veículos caíram 92,3%; os sequestros relâmpagos, 87,5%; os roubos, 66,7%; e os delitos de lesão corporal, 77,8%. 

Tudo corria muito bem até o dia em que policiais militares que patrulhavam as ruas amplas e arborizadas do aprazível local abordaram três alunos que fumavam maconha no prédio da História e da Geografia.

Quando tentaram levá-los para o 91.º Distrito Policial (DP) para registrar a ocorrência, os agentes da lei foram atacados por uma horda de cerca de 200 estudantes. Do entrevero resultaram policiais feridose seis viaturas apedrejadas. Minorias radicais que controlam diretórios acadêmicos e sindicatos de servidores e professores usaram o incidente como pretexto para um violento protesto contra a presença da polícia “repressora” em “seu” campus. Os rebeldes ocuparam um prédio da FFLCH, transformado em QG de sua guerra contra a “neo repressão”. 

A congregação da faculdade cujo prédio foi invadido apoiou a invasão e a reivindicação dos amotinados. Mas, numa demonstração de que, felizmente, é possível estudantes aprenderem certo, mesmo quando seus mestres ensinam errado, a maioria dos alunos aprovou, em duas assembleias, a imediata desocupação dos prédios e o policiamento das ruas. A decisão era de uma sensatez cristalina. Afinal, as únicas prejudicadas com a presença de policiamento no local foram as quadrilhas instaladas nas favelas que cercam a sede da universidade, os quais tiveram reduzidos seus lucros no furto de bens, na sevícia de pessoas e na venda de drogas. A serviço dessas quadrilhas – da mesma forma que as Farc, na Colômbia, se tornaram a guarda pretoriana dos traficantes de cocaína e o crime organizado no México se aliou ao terrorismo internacional patrocinado pelo Irã –, os grupelhos esquerdistas desprezaram a decisão democrática dos colegas, ocuparam a Reitoria e exigiram a retirada da polícia para negociar a retirada.

Ao invadirem os prédios, mascarados, os ativistas da revolução dos filhinhos dos papais da USP mostraram que não tinham vergonha de se comportar como os assaltantes de diligências no Velho Oeste americano. E que contavam com a possibilidade de não ser identificados na hora de terem de pagar por seus crimes. Ao aceitar sua exigência de que os anistiaria desses delitos, o reitor João Grandino Rodas agiu com a pusilanimidade com que habitualmente os administradores universitários enfrentam esses delinquentes. 

Desde que a escolha dos reitores passou a ser feita pelo voto de alunos, funcionários e professores, a politicagem vem sendo a moeda de troca que tem permitido esse tipo de baderna, nociva ao livre aprendizado e à pesquisa que a sociedade paga caro para manter em instituições como a USP. Felizmente, contudo, a autoridade policial não precisa dos votos dos baderneiros e fez o que devia ser feito: numa operação espetacular e exemplar, retomou os prédios dos invasores e os levou em ônibus para a delegacia, da qual cada “bicho grilo” mimado só saiu depois de pagar fiança de R$ 545, valor razoável para as famílias de privilegiados de elite que não frequentam aulas que poderiam estar sendo ministradas a filhos de pobres, que pagam as contas da USP e não têm chance de frequentar seus cursos caros e disputados. 

O campus de qualquer instituição acadêmica é sagrado para a transmissão do saber, não para o consumo de drogas. É proibido fumar maconha na nave da Sé, na rua, em boates e na Cidade Universitária. Os “bichos grilos” mimados que se disseram “torturados” por terem sido levados de ônibus – e não nos carrões dos pais – para a delegacia devem ser fichados como bandidos comuns e expulsos da universidade para outros que querem e precisam estudar recebam a educação que eles desprezam. 

Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde
(Publicado na Pág. A02 do Estado de S. Paulo de quarta-feira, 9 de novembro de 2011)

domingo, 6 de novembro de 2011

Edna Lopes - E agora, José?

Obrigações de genro é dívida em dobro. Negar algo a sogra é negar duplamente, pois nem a sogra nem a filha (no caso, a esposa) perdoam uma desatenção nesse nível e por isso ele concordou em pedir ao chefe para ser liberado naquela tarde. Tinha que levar sua santa sogrinha ao médico.

Na hora combinada liga para a esposa e pega as duas na porta do prédio, recebendo as coordenadas de onde e como seria a maratona da tarde: consulta, depois laboratório e na volta, farmácia.

No carro, a conversa amena, com rádio ligado baixinho para não incomodar Dona Júlia, a pessoa mais teimosa que ele já havia conhecido. Quando cismava com algo, infernizava tanto a vida da família que acabava ganhando “no grito” qualquer discussão.

Já havia dirigido um tanto quando percebeu algo junto ao pedal do freio: um sapato de mulher!

Culpa é mesmo um sentimento perverso e José Alberto, que não era nenhum santo, gelou! Se a “Federal” visse aquilo ele estava frito e mal pago! Disfarçou um sorriso amarelo, pegou a “prova” de sua culpa e descartou pela janela. Por sorte, mulher e sogra olhavam as vitrines no lado oposto.

Estacionou na porta da clínica. Enquanto a esposa descia, abriu a porta para ajudar a sogra a descer do automóvel.

D. Júlia , desesperada, jurava à filha que não estava doida, que havia calçado os dois pés do sapato quando saíram de casa.