quarta-feira, 26 de março de 2014

Luís Pimentel - Beto Foguete, o ex-craque



A banca de jornais e revistas em frente ao Passeio Público exibia a edição especial da revista Placar com uma matéria sobre os dez gênios do futebol brasileiro, escolhidos por jornalistas, treinadores e jogadores que foram glórias no passado. O ex-craque pediu para dar uma folheada e o jornaleiro entregou a revista, de má vontade.

Estavam lá: Rivelino, Tostão, Zico, Gérson, Falcão, Carlos Alberto, Sócrates, Júnior, Ademir da Guia e Jairzinho. Nem uma linha sobre ele, nem uma fotografia. Que fizeram com a bela foto que o Jornal dos Sports deu em primeira página, no dia longínquo em que o Madureira bateu no Fluminense?

Seguiu a pé pela Rua da Lapa, até o ponto do ônibus. Embarcou no Glória–Leblon, circular, via Copacabana. O trocador olhou com cara de poucos amigos para o embrulho que ele carregava debaixo do braço.

– Não se assuste. É apenas um par de chuteiras.

O trocador respondeu com um sorrisinho amarelo:

– Pensei que fosse uma metralhadora.
– Não deixa de ser – disse Beto Foguete, o ex-craque, orgulhoso. – Já metralhei grandes goleiros com ela.

Da janela do ônibus, do lado do motorista, avistou a Igreja da Glória. Mostrou as chuteiras e jogou um beijo respeitoso para a Virgem do Outeiro. Pediu que guiasse seus passos, seus passes e seus dribles.

– Beto Foguete é nome? – perguntou um dia um jovem repórter de rádio.
– Beto, sim. Foguete é apelido. Nunca ouviu falar em Beto Foguete, o maior centroavante que o Madureira já teve?
– Não – respondeu o rapaz, encerrando a entrevista.
– Meu azar foi só esse. Fiz carreira em time pequeno.

Ônibus circular dá a volta ao mundo. Depois de passar pelo Largo do Machado, Flamengo, Botafogo, Copacabana, Ipanema e Leblon, chegou finalmente à Gávea. Desceu perto do Jóquei e se dirigiu para o campo do Flamengo.

“Peço uma chance ao Jayme de Almeida. Basta um treino coletivo e eu mostro tudo. Ele deve se lembrar de mim, vai me ajudar."

Seguiu pela Bartolomeu Mitre, cabeça cheia de planos. No Largo da Memória pegou a Rua Tubira e desembocou na Praça Nossa Senhora Auxiliadora. Nem a Santa sabe de onde os moleques surgiram, em bando, em disparada, arrebatando o embrulho e desaparecendo ao lado da Cobal. Tentou correr atrás, mas viu logo que seria perda de tempo. Sentou em frente à Churrascaria Plataforma e chorou, sentindo o cheirinho bom de picanha na brasa.

Pedir chuteiras emprestadas seria humilhante demais para quem já foi um grande craque. Melhor deixar a chance para outro dia, quando esbarrar com ela em outra esquina.

Do livro “O gandula que comeu a bola – Histórias e historinhas de futebol”. Editora Dimensão, 2014.

segunda-feira, 24 de março de 2014

DO JUNCO ARCAICO AO JUNCO DE HOJE



Já houve um tempo em que na minha terra o homem mais importante do lugar era o motorista do ônibus. O segundo, pela linha de importância, o cobrador. O terceiro, o padre, mas este último morava em Alagoinhas e sua importância não era levada em consideração. O prefeito e o delegado, homens da terra, tinham os seus destaques, mas careciam de deferência especial por serem homens iguais a qualquer um dali. O motorista do ônibus, não. Conduzia o povo para alhures, o desconhecido, trânsito infernal, ladrões dando em cacho e espertos à espreita a cada esquina. Ninguém confiava em ninguém. Só no motorista. E ele, diligentemente, orientava o povo como andar naquelas ruas traiçoeiras até a hora de voltar, na boquinha da noite. Era um Moisés conduzindo os judeus nas terras dos faraós.

O cobrador era reverenciado pelo manejo honesto do troco e das bagagens. Nunca houve um troco errado e nenhuma bagagem extraviada. Já o padre manipulava as almas e a salvação, e o povo, na sua simplicidade, sentia mais medo do que respeito.

O prefeito lutou pela emancipação do município. Era um deles. O candidato da oposição lutou pela emancipação. Era um deles. O delegado lutou pela emancipação. Era um deles. Na cidade nada acontecia que merecesse maiores registros até que um dia foi destacado um soldado de polícia. E a terceira posição no ranking das importâncias fora ocupada.

- Bom dia, seu delegado! – disse o roceiro.
- Bom dia! A que devo a visita?
- Vim lhe avisar que fiz aquilo que o senhor me mandou fazer.
- E o que eu lhe mandei fazer?
- O senhor me disse pra eu matar o cabra que andava arrastando as asas pra minha mulher.
- Homem de Deus, eu tava brincando quando falei isso! Vou lhe dar oito horas pra você sumir da cidade antes de mandar o soldado lhe prender!

Havia uma padaria. A de Josias Cardoso. Vendia o pão mais gostoso que já comi na minha vida. E Josias também tinha duas filhas, as moças mais bonitas do lugar. Tinham um sorriso lindo. Às vezes eu ia comprar pão e saía sem pedir nada, encabulado com a beleza delas. A minha timidez preferia levar uma surra da minha mãe a ter que travar conversa com elas, mesmo que fosse só pra pedir cinco pães.

O tempo passa, o tempo voa, e esta semana recebi um e-mail com um anexo. Abri e me surpreendi. Era uma moção da Câmara de Vereadores da cidade de Pedrão, na Bahia, parabenizando Norma Cardoso pela eleição e posse na presidência do Conamp – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público.

Norma vem a ser uma das irmãs que me faziam tremer de timidez. Agora ela vai fazer tremer quem não andar na linha. A moção aconteceu em Pedrão, cidade que nada tem a ver com a minha terra, mas os vereadores se reuniram em sessão especial em consideração ao meu primo Luiz Eudes, que é secretário das Finanças dessa cidade.

Já os vereadores da minha terra, e a de Norma também, passaram ao largo dos acontecimentos, como passarão no dia da posse de Antonio Torres na ABL, porque, para eles, as pessoas mais importantes da cidade continuam sendo o motorista de ônibus e o cobrador.