sábado, 10 de dezembro de 2011

A primeira vez que esperei Noel


Seu irmão mais velho, em visita de filho pródigo aos pais, lhe prometera um velocípede de presente de Natal ao subir no ônibus no dia do ir embora. Nas quebradas do Sertão daqueles tempos não era comum se presentear as pessoas, muito menos os irmãos, em tempo de Natal. A data era comemorada apenas pelas visitas aos presépios enquanto se aguardava a Missa do Galo. Papai Noel era uma palavra desconhecida das crianças.

O garoto não sabia se faltava muito ou se faltava pouco, mas sentia haver uma eternidade entre a promessa e o dia prometido. Sonhava diuturnamente com a chegada do irmão trazendo na bagagem o seu presente.

Um dia acordou sobressaltado mal o galo cantou e correu em busca da folhinha. Então, finalmente, o Natal havia chegado. Passou o dia sentado à beira do caminho esperando ver a figura do irmão se descortinar na distância. A noite chegou, os pirilampos acenderam suas lanternas, e o seu pai o encontrou atento aos vultos passantes. 

- Vamos, filho! Talvez seu irmão tenha perdido o ônibus de Zé do Padre. Não veio hoje, talvez venha amanhã ou depois de amanhã. 

O Natal foi embora e ele continuou a esperar sentado à beira do caminho. Um dia o seu irmão apareceu sem que ninguém esperasse e o garoto sentiu o coração subir à goela. Finalmente realizaria o sonho de possuir um velocípede.

- Você cresceu um bocado, garoto. Não adiantava trazer um velocípede. No Natal vou lhe trazer uma bicicleta. Aguarde.

Os sonhos não se acabam nunca. Apenas se renovam. Uma bicicleta seria o suprassumo de um sonho de uma criança, principalmente em um lugar onde não existia nenhuma. O Infinito seria nada, perto de sua ansiedade sentado à beira do caminho ao longo dos dias à espera de um irmão que tardava em chegar.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Luís Pimentel - Eu prometo

* ... Que em 2012 faço um regime, volto a caminhar, paro de beber, deixo de fumar e, sobretudo, não farei mais promessas!

* ... Que vou trabalhar menos e aproveitar mais a vida: trabalhando, claro, que ainda é a melhor maneira de aproveitá-la.

* ... Que vou continuar torcendo pelo mesmo time, frequentando o mesmo boteco (que fica em Copacabana, claro), convivendo com os mesmos amigos (o meu parceiro Amorim entre eles), vivendo com a mesma mulher. Até porque, estou muito velho para muitas novidades...

* ... Que não olharei para a mulher do próximo, nem mesmo se o próximo estiver muito próximo (Por aí tem tanta mulher "do distante" para se olhar)!

* ... Não trocar de carro, não trocar as pernas, não trocar a noite pelo dia, não fazer troca-troca, não trocar o certo pelo duvidoso. Aliás, antes de trocar, preciso descobrir: qual é o certo, qual é o duvidoso?

* ... Voltar em Feira de Santana, rever Paris, conhecer Lisboa, mergulhar no mar, dançar numa cachoeira, correr numa corredeira e afastar a morte... essa companhia derradeira. Prometo não filosofar nem pensar besteira!

*... Não usar o santo nome em vão. Nem andar na contramão.

* ... Contemplar mais a natureza, começar melhor a semana, enfrentar qualquer dureza, olhar melhor as pernas da Luana, não fazer poesia; a não ser que seja em legítima defesa.

* ... Agradecer a Deus, todos os dias, por me dar um ano que começa tão bom quanto o que passou!


Programa Repertório - Jeane Hanauer - TV Foz do Iguaçu


Queridos amigos:

O Programa Repertório é o único programa de TV de Foz do Iguaçu voltado à arte e à cultura produzida em Foz e região trinacional.

Seja parceiro deste projeto ou envie sugestões e comentários para jeanehanauer@hotmail.com

Os programas podem ser vistos também no youtube - canal Jeane Hanauer.

Todos os domingos nova e deliciosa entrevista.

Nesta edição, entrevistamos o ator, diretor e produtor Juca Rodrigues (04/12/2011).

Para que o programa ganhe visibilidade, gere parcerias e assim possamos melhorar progressivamente a qualidade, necessitamos da ajuda de vocês na difusão. Reenviem esta mensagem aos seus contatos via e-mail e redes sociais.

Agradecemos imensamente esta contribuição e os incentivos que temos recebido.

Um abraço com arte,

Jeane Hanauer

apresentadora do Programa Repertório

Mestre em Letras. Escritora e professora

Palestras na área de literatura e comunicação

http://jeanehanauer.blogspot.com

(45)9956-4077

(45)9129-4077


quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cineas Santos - Os semeadores de alegria

De Cara alegre do Piauí

Na semana passada, quando juntava a cabroeira do Cara Alegre do Piauí para mais uma jornada no sertão, uma cidadã, bem-nascida, me perguntou: “Professor, desculpe a curiosidade, mas o que o senhor ganha com esse projeto?”. A resposta cabível seria: a alegria de ensinar, aprender, compartilhar, conviver. De repente, me dei conta de que, para quem só se acostumou a ser servido, a resposta não faria o menor sentido. Em tom de pilhéria, respondi: nada, minha jovem, estou apenas gastando o que me resta de alento. A moça sorriu e desconversou. Indagações desse tipo não me surpreendem: já me fizeram perguntas mais diretas. Certa feita, um ex-colega de faculdade disparou: “Quando é que você vai parar de ser besta?”. Respondi de bate-pronto: nunca, meu irmão. Se o fizesse, já não seria eu; seria alguém como você, o que definitivamente não me agrada. Um dia, com sua sabedoria inata, Edson do Ministério de Nossa Senhora sentenciou: “Cada um para o que nasce”. Nunca ouvi nada mais verdadeiro.

Não seria exagero afirmar que a história do Cara Alegre se confunde com a minha trajetória de vida. Quando concebi o projeto, em 1977, eu sonhava alto: queria construir uma ponte cultural entre Teresina e os sertões do Piauí. Arrebanhei alguns amigos jovens - Paulo Machado, Fernando Costa, Margareth Coelho, Rogério Newton e Alcide Filho - e, amontoados num velho fusca verde-sonho, rumamos para Oeiras, Floriano, São Raimundo Nonato. O destino era Corrente, no extremo sul do Piauí. Na metade do caminho, a gasolina acabou. Por pouco, não voltamos a pé. Sem patrocínio e nem apoio das instituições, o projeto não deslanchou. Ainda assim, as sementes foram lançadas e permaneceram vivas. Ao longo desses 36 anos, nunca deixei de regar essa semente com suor e entusiasmo. 

Em 1997, o prof. Fernando Ferraz sugeriu um novo nome para o projeto que, até então, chamava-se Mão Dupla. Fernando propôs A Cara Alegre do Piauí, com o argumento incontestável: “Até hoje, só mostramos a cara triste do Piauí. O que ganhamos com isso? A piedade de alguns e o escárnio de muitos. Chegou a hora de mostrarmos a face luminosa de nossa gente: a cultura piauiense”. Encorpado e revitalizado, o projeto já percorreu o Piauí inteiro, de Teresina a Guaribas, levando oficinas de dança, canto coral, violão, escultura em argila, pintura, teatro, xilogravura e cursos das mais variadas disciplinas. Na verdade, semeamos alegria e entusiasmo nas comunidades visitadas.

No último final de semana, por exemplo, estivemos no município de Fronteiras, a 400 km de Teresina, para mais uma jornada . Seria ótimo se a cidadã que me fez aquela pergunta inteligente pudesse ver o brilho nos olhos das dezenas de alunos e professores que participaram dos cursos e oficinas. Não resisti à tentação de publicar, neste espaço, a foto da Ângela Kelly, de 11 anos de idade, que, embora nunca tivesse ouvido falar de xilogravura, com duas horas de oficina, fez uma xilo de matar de inveja muita gente metida a artista. Por essas e outras, vamos continuar semeando: alguma semente há de vingar. Assim seja.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Luiz Ruffato - Domingos sem Deus

Se você é católico, aproveite para saber o que o Diabo anda aprontando...
Se for evangélico, cuidado que o Capeta anda solto;
Se for ateu, então todos os seus dias são sem Deus.
Não precisa levar água benta porque o lançamento será numa sexta-feira, a próxima, e o bispo do Rio de Janeiro estará presente. 


De Domingos sem Deus

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Cunha de Leiradella - Síndrome da dúvida compressiva


O casal caminhava, devagar, pela calçada. A mulher, de calça jeans desbotada e blusa xadrez solta na cintura e uma bolsa de pano a tiracolo, e o homem, de paletó esporte e óculos de aros grossos e um livro debaixo do braço. Escurecia e o trânsito estava lento, e eles caminhavam em silêncio. De repente, a mulher parou e ajeitou a alça da bolsa no ombro.
- Pô. Já tava até aqui daquele táxi.
O homem não respondeu. Um carro saiu da fila e fez a volta, e subiu a outra pista na contramão. A mulher olhou os carros quase parados e cuspiu com força na calçada.
- Se tem merda que me torra é andar de carro deste jeito. Carro foi feito pra correr. Foi feito pra andar assim, não, merda.
Abanou a cabeça com força e começou andando.
- Salvador tá que tá um sufoco mesmo, puta que pariu.
O homem apontou a bolsa balançando e batendo nas pernas da mulher.
- Quer que leve?
- Precisa, não. Tou é puta mesmo.
Continuaram andando. Na porta de um bar, rapazes e moças, os capacetes pendurados nos guidões das motos, conversavam e riam alto. A mulher acenou para um deles e voltou-se para o homem.
- É Zeca.
O homem não respondeu e a mulher parou e olhou-o.
- Zeca, pô. Namorado de Aninha.
O homem acendeu um cigarro e continuou andando. Puxou uma tragada profunda e apontou os carros, quase parados.
- Parece até no Rio.
A mulher não respondeu. Acendeu um cigarro e começou andando.
- Vamos sábado em Maré?
O homem não respondeu e a mulher olhou-o durante algum tempo e puxou uma tragada profunda.
- Quer ir, não?
O homem continuou calado e a mulher parou e tirou a areia dos chinelos, e ajeitou a alça da bolsa no ombro. O homem ajeitou o livro debaixo do braço e a mulher passou-lhe um braço em volta da cintura.
- Você vai gostar de Maré, você vai ver.
Voltou-se e apontou o mar.
- Tá vendo lá, depois do farol? Maré é lá.
O homem não respondeu. Puxou uma tragada profunda e jogou o cigarro no chão. A mulher apertou o braço na cintura do homem e encostou o corpo no dele.
- Maré é a ilha mais porreta que tem Salvador. Você vai gostar, você vai ver.
- A gente não ia pra Arembepe?
A mulher olhou o homem e sorriu.
- Agora, sei, não.
Riu e apertou mais o braço em volta da cintura do homem.
- Olhe, nem lhe conto. Tem um amigo meu, Paulinho, Paulinho tem casa em Maré. Você conhece Paulinho, não, ele agora tá em São Paulo, mas Paulinho é porreta, amigão mesmo. De verdade. Só pra você ver, quando Aninha começou com Zeca, Zeca, aquele que tava ali no Quintela, sabe onde eles foram se entocar? Em Maré, em casa de Paulinho. Aninha falou comigo, eu falei com Paulinho, Paulinho pegou, me deu a chave, e nem perguntou. Paulinho é porreta. Cabeça feita mesmo.
Fez uma pausa e jogou o cigarro no chão.
- Vamos sábado? Hem? A chave tá comigo.
O homem encolheu os ombros e a mulher olhou-o.
- Quer ir, não?
O homem não respondeu e a mulher afastou-se e colocou-se na frente dele.
- Fale, pô.
O homem tirou os óculos e limpou-os, e voltou a colocá-los.
- Você não tá querendo ir?
A mulher sorriu.
- Só por causa de Fiinha. Jorginho tá querendo...
Calou-se e pegou a mão do homem, e apertou-a com força.
- Vai ser legal paca, você vai ver.
O homem não respondeu e começaram andando. A mulher olhando o mar, do outro lado da mureta, e o homem olhando os carros, buzinando.
- Puta que pariu. Parece até no Rio.
A mulher parou e voltou-se para o homem.
- Falar no Rio, quê você que resolveu lá na agência, hem?
- Nada. Já não disse a você?
- Naquela hora eu tava era puta.
O homem não respondeu. Ajeitou o livro debaixo do braço e começou andando. A mulher puxou-o pela mão.
- Mas vai resolver. Vai, não?
- Vamos ver.
Calaram-se e começaram andando. A mulher largou a mão do homem e ajeitou a alça da bolsa no ombro.
- Tereza falou, lembra de Tereza?
O homem acenou com a cabeça e a mulher sorriu e voltou a pegar a mão dele.
- Tereza diz que apresenta você a um monte de gente, se você quiser. E Dito, lembra de Dito?
O homem voltou a acenar com a cabeça e a mulher continuou.
- Dito também falou. E olhe que Dito conhece todo mundo que trabalha em propaganda, viu?
Fez uma pausa e olhou o homem.
- Quer que eu fale com Tereza e com Dito? Hem?
O homem soltou a mão e acendeu um cigarro.
- Amanhã a gente vê.
Calaram-se. Estavam a meio do caminho, entre o Farol da Barra e o Barravento, e o homem parou e debruçou-se na mureta, olhando o mar. A mulher aproximou-se e passou um braço nas costas dele.
- Quê que tá olhando?
O homem não respondeu e a mulher debruçou-se também. Batida pela luz dos postes da calçada, a água rebrilhava. A mulher encostou-se no homem e apontou as ondas, marolando, devagar, até à praia.
- O mar também é porreta. Mas eu gosto, mesmo, é da lua.
Endireitou o corpo e apontou a lua, quase na linha do horizonte.
- Parece que tou até olhando pra mim. Quando tou na fossa, então...
Calou-se e olhou o homem.
- Gosta de olhar a lua, não?
O homem não respondeu e começaram andando. A mulher acendeu um cigarro e ajeitou a alça da bolsa no ombro.
- Por quê que você falou aquilo, ontem, lá no Juvená, hem?
- Aquilo, o quê?
- Aquele negócio de querer ficar em Salvador.
O homem não respondeu e a mulher puxou uma tragada profunda e soprou o fumo com força.
- Era verdade mesmo? Hem?
O homem puxou uma tragada e jogou o cigarro no chão. A mulher ajeitou a alça da bolsa no ombro e olhou-o durante alguns instantes.
- Só que, do jeito que você falou, sei, não. Parece até que você tá muito mais a fim de se picar do Rio, do que ficar em Salvador.
Fez uma pausa e olhou o homem.
- Era isso, não?
O homem não respondeu e a mulher pegou a mão dele e apertou-a.
- Era isso, não?
O homem continuou sem responder e a mulher parou e olhou-o.
- Se arrumar tudo lá na agência, você fica em Salvador?
O homem continuou calado, os olhos vagando no horizonte, por cima da mureta. A mulher olhou-o durante algum tempo e, de repente, puxou a mão dele com força.
- Fale, pô. Parece até que tá com medo, merda.
O homem tirou a mão e começou andando. A mulher ficou parada, olhando as costas dele, mas o homem não se voltou. A mulher xingou um palavrão e correu. Na frente deles, o letreiro do Barravento piscava, iluminando a areia da praia. De mãos dadas, um casal andava, devagar, junto da água. O homem acendeu um cigarro. A mulher puxou uma tragada profunda e jogou o cigarro por cima da mureta.
- Merda. Amanhã tou com prova.
- Vai dormir em casa?
- Precisa preocupar, não. De inglês eu entendo.
Calaram-se. Uma moto passou, a moça colada nas costas do rapaz e os cabelos esvoaçando. O rapaz gritou e acenou para a mulher.
- Oi.
A mulher sorriu e agitou os braços.
- Oi.
O homem olhou a moto ziguezagueando por entre os carros e a mulher riu.
- É Zeca. Namorado de Aninha. Aquele que tava no Quintela, lembra, não?
O homem não respondeu e a mulher riu outra vez.
- Zeca é fora de série. Mal Aninha vira costas, ó. Zeca é porreta. Cabeça feita mesmo.
O homem parou e olhou a esplanada do Barravento. A mulher continuou andando e parou junto de uma mesa vaga.
- Vai de caipirosca, não? Tou sequinha, sequinha.
O homem não respondeu, mas aproximou-se da mesa. Sentaram. A mulher pendurou a bolsa nas costas de uma cadeira e tirou a areia dos chinelos. O homem colocou o livro em cima da mesa e puxou uma tragada. Apesar da hora, a maior parte das mesas estava lotada. A mulher passou as mãos no rosto e abanou a cabeça com força.
- Pô. Salvador tá que tá uma merda mesmo.
O homem não respondeu e chamou um garçom.
- Duas caipiroscas.
O garçom anotou o pedido e afastou-se. A mulher olhou as mesas à volta.
- Tá uma merda mesmo.
O homem não respondeu e a mulher acendeu um cigarro e puxou algumas tragadas. O garçom trouxe as bebidas e ambos beberam, em silêncio. O ar cheirava a maresia e o vento trazia gotas de espuma até à mesa. O homem olhou a mulher. A mulher olhava o mar. O homem puxou uma tragada profunda e olhou a rua, os carros ainda andando devagar. A mulher pegou o copo e bebeu dois goles. Colocou o copo em cima da mesa e ficou olhando para o homem.
- E se você não arrumar nada lá na agência, hem?
O homem não respondeu e a mulher debruçou-se na mesa e pegou a mão dele.
- Vai procurar outra. Vai, não?
O homem continuou sem responder e a mulher tirou a mão e puxou uma tragada profunda, e jogou o cigarro no chão.
- Hem?
O homem continuou calado e olhou a esplanada. A mulher olhou a rua. Ficou assim algum tempo e, de repente, cobriu o rosto com as mãos. O homem pegou o copo e bebeu um gole. A mulher tirou as mãos do rosto e espalmou-as em cima da mesa.
- Tá uma merda mesmo.
O homem bebeu outro gole e olhou a mulher. A mulher abanou a cabeça com força.
- Tou gostando daqui, não.
Olhou o homem fixamente, durante alguns instantes, e passou as mãos no rosto.
- Parece que a gente tá presa, merda.
Voltou a passar as mãos no rosto e abanou a cabeça com força.
- Suporto sufoco, não, pô.
O homem colocou o copo em cima da mesa e olhou a mulher.
- Quer ir?
- Ir pra onde, merda? Pro hotel?


domingo, 4 de dezembro de 2011

Onde a saudade dói


Eu queria ter um coração duro o suficiente para não tremer de emoção quando recebo notícias de Salvador. Antigas lembranças se libertam e me envolvem numa teia nostálgica e crescente, aflorando a saudade dos velhos tempos. Foi o que aconteceu hoje, numa releitura de Sargaços, do Cunha de Leiradella.

A cidade fascinava, encantava, enlouquecia. Conheci cada canto dos seus encantos, cada centímetro de suas emoções. As ondas traiçoeiras de Stella Maris, o feitiço mortal da Lagoa do Abaeté, a solitude de Itapuã, as batidas de limão de Amaralina, a boemia do Rio Vermelho (e também as batidas do meu amigo Diolino), a prostituição da Barra, o tradicionalismo de Santo Antonio Além do Carmo e o samba-de-roda do Mercado Modelo ou da Ribeira, em triste e nostálgico entardecer da Baía de Todos os Santos. Paripe, Periperi, Lobato e a cachoeira de São Bartolomeu, perigosamente linda e desconhecida das autoridades policiais. Era preciso salvo-conduto pra se chegar até lá sem ser importunado pelos meliantes e gatunos. O nosso era Clóvis Loureiro, um amigo do bairro do Lobato, nascido e criado na floresta de São Bartolomeu e os pivetes e malandros da redondeza o chamavam de “Maluco”. E só podia ser maluco para adentrar a mata para tomar banho de cachoeira ao som dos atabaques. Em Salvador toda nascente de água é santuário sagrado para a religião de matriz africana.

As noites soteropolitanas eram curtas para o tamanho das farras. Quando os bares fechavam, à meia-noite, a farra continuava no Zanzibar, no Garcia, reduto GLS, mas que, na quebrada da noite, aceitava héteros. Quando a barra pesava, o jeito era descer pro Jereré do Macedo e ver o sol nascer no mar de Amaralina. Quando o Jereré fechou, o mestre e poeta Batatinha nos abriu as portas do seu “Toalha da Saudade”, na Ladeira dos Aflitos, onde se podia amanhecer o dia em conversas interessantes, ouvindo uma boa música da nossa MPB.

A praia do Porto da Barra era – e continua sendo - o metro quadrado de mulheres mais bonitas e sensuais do Nordeste. Eram ninfas, sacerdotisas de Eros, deusas da estética. Foi nessa praia que tive a sensação de morar em Sodoma ou em Gomorra. Não havia como conter a libido ante a exuberância sensual das mulheres do Porto. Wonderful!

Mas, infelizmente, o que é bom tem seus dias contados. A roda-de-samba do Mercado Modelo foi substituída pela exibição de capoeira, tempos depois do último incêndio. Trocaram o improviso e a espontaneidade do baiano por grupos coreografados para turista ver. Na verdade, um assalto: o inadvertido que fotografar um “rabo-de-arraia” terá que deixar o filme ou pagar uma fortuna para os chamados “mestres”. Uma simples olhadela de um passante significa ter que desembolsar o cachê. Pague e não chore. Ou passe e não olhe.

A Ribeira e toda península itapagipana entrou numa decadência sem volta. Uma tristeza só. Último reduto das famílias tradicionais soteropolitanas, vive entregue ao Deus dará, em total abandono dos gestores públicos. E dos moradores, que migram para a Cidade Alta.

Como dizia Gregório de Mattos e Guerra: triste Bahia, o quão dessemelhante e triste. Acabaram os puteiros, acabaram as barracas de praia, acabaram as festas de largo, acabaram o carnaval de frevos e marchinhas; o Elevador Lacerda funciona capenga, só vai ao Pelô quem é turista, os clubes sociais e cinemas viraram igrejas evangélicas e Gal Costa só é lembrada como um ferry boat em fim de carreira.

A Salvador de hoje perdeu o brilho e o encanto que existiam nos meus tempos de boêmio, pelos becos do Pelourinho, pelos bares do Rio Vermelho, pelas barracas atrás do Clube Português, na Pituba, que a ressaca marinha destruiu, e nos ensaios ritmados do Ilê Ayê, na antiga Casa de Detenção, no Largo de Santo Antonio. Tudo hoje funciona em função do turismo e da exploração do turista. E os nativos sobrevivem em guetos, comendo as sobras. Fora deles, tem que se pagar pedágio. Até catador de lata é obrigado a ter licença da Prefeitura, sem falar que os padres da Igreja do Bonfim estão cobrando pela água benta aspergida sobre os fieis.

Triste Bahia! Tão dessemelhante e triste. A mim foi-me trocando, e tem trocado, tanto negócio e tanto negociante.