sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Cineas Santos - Pra você também

Por azar ou sorte, o tão decantado espírito de Natal não baixa em mim. Se por um lado, isso me faz um estranho no ninho; por outro, me livra da febre consumista que acomete a maioria dos cristãos do mundo. No sertão onde nasci, 25 de dezembro era um dia como outro qualquer, com direito a enxada, foice, suor, sol e, às vezes, chuva. Quando chovia (chuva mansa, fina, demorada), meu pai aproveitava o “bom tempo” para plantar gergelim nos aceiros das roças. Não nos consumia o desespero de ser felizes a qualquer preço ou fazer os outros felizes à custa da nossa generosidade. Quando vim tomar conhecimento da figura execrável do Papai Noel, a mais nefasta das criações do capitalismo, já tinha perdido a inocência. Não tenho comércio com esse velho ilusionista que alicia e desilude crianças indefesas.

Diferentemente do Natal, o primeiro do ano, era uma data memorável: rompíamos o ano novo num forró puxado a sanfona, zabumba e triângulo. Cultivávamos uma brincadeira inocente: no primeiro dia do ano, quem gritasse primeiro “meus anos”, fazia jus a uma prenda que o outro era obrigado a pagar. Uma melancia, uma espiga de milho, um taco de rapadura, coisas que não causavam maiores danos ao patrimônio do pagante. A vida era simples, e as aspirações, rasas. Viver não doía tanto...

Presentear os amigos é algo extremamente prazeroso, desde que não se faça por imposição de um calendário criado por mercadores e agiotas. Ao contrário do que apregoa, o capitalismo não quer a nossa saciedade; quer – isto sim - a ansiedade de todos nós. Consumir por indução ou compulsão é doença grave. Muito a contragosto, sou obrigado a concordar com o Pe.. Marcelo Rossi, o marqueteiro da fé: “Natal é ser presente e não dar ou receber presentes”. Perfeito.

De qualquer forma, acabamos todos envolvidos ou enredados nessa teia pegajosa que o Natal cria. Este ano, depois de receber todas as bordoadas que fiz por merecer e mais algumas, acabei recebendo dois presentes que me deixaram comovido. O primeiro, coisa de negro para negro: um pires minúsculo com o escudo do Flamengo. Como se sabe, sou flamenguista desde a época da invenção do urubu. Coloquei-o na mesa de trabalho ao alcance dos olhos. Agora, quando quiser chorar (eu também choro), já não precisarei de melhor pretexto. O segundo, confesso, não fiz por merecê-lo: uma chuva fina, mansa, “amorosa”.

Na noite de 25 de dezembro, fazia um calor infernal. No breu do céu, sem o menor pudor, a lua exibia-se completamente nua... De repente, sem aviso prévio, caiu uma chuvinha passageira, mas suficiente para lavar a cara da cidade. Depois, retirou-se para as brenhas do Maranhão, dormitório de todas as chuvas do Nordeste. Com a mesma sem-cerimônia de antes, a lua voltou a exibir-se no céu. Foi aí que uma amiga querida me ligou para me dizer que aquela chuva era “um presente” para mim. Encharcado de emoção, mal balbuciei um Deus lhe acrescente e fui dormir sossegado, certo de que não me mataria no dia seguinte. Aqui estou.




quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Edna Lopes - Canção da Esperança


Aos amigos e amigas, companheiros de jornada, afetos tão caros, tão especiais!


No amanhecer
ou no fim da tarde
agradeço pela possibilidade da partilha
de tantos sonhos e pela alegria
de sua solidária presença em minha vida.

Obrigada por entender quando o silêncio se faz
e por entender a ausência nem sempre voluntária.
Obrigada pela oferta da amizade, do carinho
revelado em tantas formas especiais.

Obrigada por cada sorriso
por cada lágrima de emoção derramada
pela alegria da vitória em cada luta, mas
também pelo aprendizado
que ficou no fracasso de algumas e nas perdas
que contabilizamos.

Alguns se foram para sempre,
outros encontraremos em novas jornadas.
Novos oferecerão os braços para a luta
e a vida se renovará em cada ciclo.

Desculpem se faltaram abraços
Desculpem se deixei soltar alguns laços
Não esqueçam que tal qual
o poeta Maiakovski
minha anatomia é toda coração
e sempre estarei por perto.

Queridos e queridas

Que a próxima jornada nos encontre juntos
ainda que a Geografia nos distancie.
O meu abraço terno e fraterno
e o meu desejo mais sincero:
“Que o caminho seja brando aos teus pés
Que o vento sopre leve em teus ombros
Que o sol brilhe cálido sobre tua face
Que as chuvas caiam serenas em teus campos
E até que eu de novo te veja
Que Deus te guarde na palma da mão."


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Luís Pimentel - Duas cenas de Natal

1.
Chegaram a casa com a informação de que o caminhão da Ação Social estava parado na praça, carroceria carregada de brinquedos, farta distribuição de presentes para os necessitados.

O menino largou o time de botão espalhado sobre a mesa, recolheu camiseta e sandálias e partiu na carreira. O moço da Prefeitura disse que bolas de futebol, de couro ou de plástico, não havia mais. Nem carrinhos de madeira ou controle remoto, nem livros ou velocípedes, bonés do Batman, insígnia de comandante, nada.

– Agora, só tem bonecas que choram e fazem xixi.
– Me dê. Vou levar para minha irmã.

O menino não tinha irmã para dar a boneca que chora e faz xixi. Mas não ia perder a viagem.


2.
Barbas e cabelos brancos ele já tinha. Também já andava meio barrigudo, e a rouquidão provocada pelo cigarro e a cachaça ajudavam a voz na hora do Ho, ho, ho! Era só botar a roupa de Papai Noel que ia dar tudo certo.

Vários coroas, muito gordos e meio roucos, já estavam na fila, pegando senhas para a entrevista. Uns dez ou doze seriam escolhidos para representar o bom velhinho nas portas das lojas, fazendo fotos com as crianças e chamando a freguesia.

– O que você acha do espírito natalino? – perguntou o homem da agência.
– Acho uma merda, mas preciso muito desse emprego.

Expulso da sala, foi fazer o seu Ho, ho, ho no botequim.


domingo, 19 de dezembro de 2010

Cineas Santos - A insólita poesia

Depois de uma tarde de chumbo, dessas que entorpecem a alma, a noite chegou acenando com a promessa de “chuvas amorosas”, como diria o Dobal. E a chuva veio: breve, mas intensa como costumam ser as boas coisas da vida. É incrível o poder que a chuva tem de mudar os ares de Teresina. Hoje (terça, dia 7), a cidade acordou de cara lavada; dir-se-ia uma mulher recém-saída do banho, com os cabelos gotejantes e cheirando a lavanda, uma mulher pedindo para ser amada...

Um dia propício para teresinar, no dizer de A.Tito Filho, de saudosa memória. Com o pretexto de ir ao centro, fiz o percurso mais longo. Por volta das dez horas, na Av. Duque de Caxias, parei um instante para ver mais uma cicatriz no ventre da cidade: um novo supermercado engoliu uma fatia significativa de área verde. Num ritmo alucinante, homens e máquinas trabalham para construir, no menor espaço de tempo, mais um templo destinado ao deus-consumo. Num gesto de “boa vontade”, preservaram um ipê amarelo, prova de que “o capitalismo tem alma”.

De repente, contrastando com a agitação do canteiro de obras, a insólita poesia: um adolescente negro, magro, não teria mais de 17 anos, com a camisa no ombro, percorria lentamente uma das ciclovias, puxando um prosaico carrinho de lata, desses que outrora fascinavam os meninos pobres da periferia. Um carrinho velho, amassado, amarelo. No para- choque do carro, um fiapo de linha, presa a um pedaço de madeira. Às vezes, as rodas do veículo prendiam-se num obstáculo qualquer. O rapaz parava e, pacientemente, contornava o obstáculo, com o cuidado de um manobrista experiente e responsável. Os raros ciclistas que usavam a ciclovia desviavam-se do moço sem importuná-lo. E ele, indiferente ao rugir dos automóveis, prosseguia, atento ao preceito zen: “Jornada longa, passos curtos”.

Aos olhos dos que só veem as coisas rentáveis, a presença daquele moço com seu brinquedo de lata não passava de uma cena patética. Aos olhos do velho cronista, a poesia em estado puro. Por um instante, transportei-me aos longes da minha aldeia onde, por falta de recursos, éramos obrigados a construir nossos brinquedos, usando como matéria- prima latas de sardinha, caixas de fósforos, carretéis de linha... Eram brinquedos pobres, simples, rústicos, mas que se enchiam de beleza e vida com o adubo da nossa imaginação. Era um tempo em que brincar não tinha nenhuma relação com o ato de consumir. Mais uma vez recorro ao Poeta: não nos ardia o desespero de ser donos de nada. Viver bastava.




quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Luís Pimentel - Lembrando o velho Graça

Conta a lenda que o jovem repórter procurou o velho revisor, no covil dos copidesques do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, para pedir uma opinião sem compromisso sobre texto literário. O velho revisor chamava-se Graciliano Ramos, escritor já consagrado que ainda precisava suar a camisa em redações para pagar as contas. Chegando à sexta ou sétima linha do texto, levou o primeiro susto, sublinhou uma palavra mal-empregada e devolveu os papéis ao iniciante, com um comentário sucinto:

– “Outrossim” é a puta que o pariu!

Graciliano detestava conversa fiada. Quando a conversa era escrita, então, nem se fala. Economizava na fala e chegava a ser mesquinho no texto:

“Escrever é cortar palavra” era a sua máxima. E mais:

“Quem escreve deve ter todo cuidado para a coisa não sair molhada. Quero dizer que da página que foi escrita não deve pingar nenhuma palavra, a não ser as desnecessárias. É como pano lavado que se estira no varal. Naquela maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lava. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Depois colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Depois batem o pano na laje ou na pedra limpa e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer”.

Tenso como seus parágrafos e seco como o chão do seu sertão alagoano, onde nasceu em 1892 (Quebrangulo), o Velho Graça nos deixou no ano de 1953. Apreciador de aguardentes e fumante inveterado, não foi correspondido no amor devotado por mais de 40 anos aos cigarros Selma. Teve os pulmões bombardeados pelos bastões cancerígenos.

A fogueira das vaidades vive a incendiar corações e mentes de escritores, sempre achando que tudo o que escrevem deveria estar no index das obras-primas da humanidade. Diante desses, vale sempre a pena a gente se lembrar de Graciliano Ramos, que passou a vida a desconfiar de tudo e de todos, sobretudo dele mesmo.

Ao ser comunicado da premiação pela Prefeitura do então Distrito Federal dos originais de sua ficção infanto-juvenil A terra dos meninos pelados (publicado em 1941), torceu o nariz para o júri, em carta à mulher, Heloísa Ramos: “Premiaram uma bobagem, sem qualquer valor literário”. Diante do contrato para edição, foi além: “O Zé Olympio quer editar Os meninos. Problema dele, se está querendo jogar dinheiro fora”.

Graciliano Ramos interrompeu e retomou inúmeras vezes o ótimo Angústia (1936), por não enxergar ali qualquer valor literário (como também não enxergava nos anteriores, Caetés, 1933, e São Bernardo, 1934). O livro só não foi interrompido de vez (o que talvez interrompesse também a sua carreira literária) por conta da insistente cobrança de Rachel de Queiroz. O desconfiado queixou-se com Heloísa: “Julgo que terei que continuar o Angústia, já que a bandida da Rachel cobra e diz que é bom (...) Escrevi ontem duas folhas, tendo prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria”.

O livro que o projetou no cenário nacional foi São Bernardo (mereceu adaptação histórica para o cinema, com Othon Bastos e Isabel Ribeiro nos principais papéis. Vidas Secas também foi adaptado e filmado – com Átila Iório de protagonista –, pelo hoje imortal da ABL Nelson Pereira dos Santos). Ali desponta o narrador rigoroso de períodos curtos e contundentes, linguagem crua, magra e fria, contando a história do bruto homem da roça Paulo Honório:

“Aqui nos dias santos surgem viagens, doenças e outros pretextos para o trabalhador gazear. O domingo é perdido, o sábado também se perde, por causa da feira, a semana tem apenas cindo dias e a Igreja ainda reduz. O resultado é a paga encolher e essa cambada viver com a barriga tinindo”.
Não há uma palavra fora de lugar.

Graciliano Ramos correu atrás de bode, trabalhou em balcão de armazém, vendeu tecidos, foi professor, instrutor de ensino, prefeito em Palmeiras dos Índios (AL), preso pelo Estado Novo sob acusação de comunismo (a experiência de cadeia mais valiosa do mundo, pois ao mundo legou Memórias do cárcere, publicado no ano de sua morte) e mais tarde até comunista. Mas jamais precisou de coerência partidária para exibir, ao longo da vida, coerência e apego ao povo mais necessitado do seu sertão ou encontrado por ele nas inúmeras pensões por onde viveu no Rio de Janeiro.



quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Eu sou eu, nicuri é o Diabo



Tá lá um corpo estendido no chão. Em vez de um rosto, a foto estampada de um político sorrindo debochado para a sorte do eleitor. Antegoza o mórbido prazer de sacanear o povo. Mas o defunto não parece se importar com a foto nem se importunar com os homens de branco pisando seu corpo em pose para a posteridade. A multidão reunida, ora olha o corpo, ora olha o assassino, revólver fumegante na mão, em pose de valentão. Em outros tempos alguém gritaria:

- Corre que é Lampião! – e a galera debandava.

Mas não era o caso em questão. O morto, em vida, nunca tivera importância, por que teria agora que já não pode mais comer feijão? Morreu porque todos nós haveremos de morrer um dia e ele só fez se antecipar aos fatos. Pelo seu sorriso de morto estampado na cara, parece que morreu feliz. Mas, espere... não é o morto que sorri. É o seu assassino na fotografia que cobre o seu rosto.

Do meio da multidão surgiu serelepe o rapazinho do Site local. Finalmente uma crônica policial para ensanguentar o seu palavreado confuso. Antevia a manchete: “Dez tiros acidentais e à queima-roupa leva cidadão a conhecer o Paraíso antes da hora. O prefeito, autor dos disparos, pede desculpas à população por perturbar a ordem pública”. Não, assim não está bom. Está muito confuso. É melhor assim: “Prefeito atira no que não viu e mata quem queria matar. A família do morto pede perdão ao assassino pelo incômodo e promete pagar as balas que ele gastou”. Assim está melhor. Quem sabe se com essa manchete não ganhará o Prêmio Esso de Jornalismo?

O delegado, que ninguém nunca viu nem mais gordo nem mais fino, finalmente deu o ar de sua graça. Cumprimentou os homens de branco e puxou conversa com o assassino. Pareciam velhos amigos confabulando à mesa de um bar. Riram desenxabidos de uma piada sem graça. Os homens de branco também riram, e a multidão de puxa-sacos, que não ouviu a piada, aplaudiu. O delegado pediu aos homens de branco para se afastar, pois era necessário fotografar o morto para o laudo cadavérico. Era praxe. O caso já estava esclarecido: legítima defesa do prefeito.

Enquanto o delegado fotografava o corpo, o prefeito dava entrevista a uma rádio local. Estava no ar, ao vivo, pena que não fosse a cores. Falou e falou e falou bonito, disse um bajulador, mais tarde, à sua mulher. Ela não disse nem que sim, nem que não, só fez, “hum, hum”, e o bajulador interpretou como aprovação. 

Alguns vereadores apareceram distribuindo aparelho de rádio ao povo para que pudessem ouvir a entrevista. A torre de celular, que nunca funcionou, nessa hora liberou sinal para que se pudesse ligar para a Rádio e se solidarizar com o assassino, mas logo deixou de funcionar devido ao congestionamento da linha. Todo mundo queria dizer “Alô, prefeito, eu te amo!”, segundo o noticiado no Site local, horas depois.

O prefeito alegou legítima defesa da honra. O cidadão, logo cedo, estava no hospital esperando uma brecha na consulta, mas como só foi atendido três horas depois, reclamou das pessoas que furaram a fila. Ele, como prefeito e médico, podia atender de acordo com o grau de interesses políticos, vez que não precisava do financeiro para clinicar. Era rico. Podre de rico e podia tudo. E quem era aquele Zé Mané para contestar suas preferências? Dias antes deixara bem claro naquela rádio quem era que mandava no pedaço: uma paciente reclamou das longas horas de espera no consultório e ele a mandou tomar naquele lugar. Ela, e quem mais se atrevesse a reclamar do seu procedimento. Fazia um favor ao povo sendo prefeito daquela cidade e ai daquele que ousasse lhe contrariar. 

Nesse dia a Oposição o intitulou de Dr. Arrogância. Ah! Não. Não foi a Oposição. Esta se vendeu no segundo dia de mandato do Zeca Diabo do Sertão. Mas quem foi afinal?

O delegado deu os trabalhos por concluído, o repórter desligou o microfone, o rapaz do Site pediu a alguém para fotografá-lo beijando o prefeito, e este, antes de ser carregado nos braços do povo até o bar ao lado, receitou remédio para lombriga a um rapaz que se queixou de surdez temporária por causa dos estampidos.

Enquanto o carro do lixo não levava o corpo para o monturo, um cachorro se deliciou com o sangue espalhado na calçada.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Moraes Moreira - Sonhos Elétricos

De Moraes Moreira - Livro

 Hoje à noite, a partir das 19 horas, o cantor e compositor Moraes Moreira estará autografando o seu livro "Sonhos Elétricos", na Livraria Cultura, que fica no Shopping Salvador.

O livro narra a trajetória bem sucedida desse ícone do carnaval baiano, que passou alguns anos esquecido pelos organizadores do carnaval de Salvador, e que ressurgiu no carnaval deste ano arrastando uma multidão pela Avenida e no trajeto Barra-Ondina. Tive a sorte de participar desse momento mágico, inclusive fui matéria no Jornal A Tarde, de Salvador, cujas fotos e texto de Edna Lopes podem ser vistos no link "Carnaval", deste blog.

O livro custará apenas uma rodada etílica sem a gorjeta do garçon, em qualquer espelunca de Salvador, ou seja, R$ 39,90.

domingo, 12 de dezembro de 2010

O Sertão Vai Virar Mar






Fim de ano é tempo de viagem, principalmente no mês de janeiro, por isso escrevo sobre um oásis artificial no meio da caatinga nordestina: a barragem de Xingó. O acesso a ela pode ser feito por três lugares: Canindé de São Francisco, em Sergipe, Paulo Afonso, descendo o rio de catamarã, ou pela cidade histórica de Piranhas, em Alagoas.
Piranhas é uma das cidades históricas do Nordeste, às margens do Rio São Francisco, na divisa de Alagoas com Sergipe, distante trezentos quilômetros de Maceió, porém, para as operadoras de turismo baseadas na capital alagoana, é como se ficasse do outro lado do planeta: simplesmente ignoram esse filão turístico-histórico-arquitetônico.
O descaso começa pela própria Secretaria Estadual de Turismo, que não mantém nenhum serviço de atendimento ao turista na região nem divulga a beleza do lugar. Nem mesmo na Sala de Visitantes da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), um pouco antes da barragem de Xingó, cuja parada é obrigatória para o turista que queira visitar a parte interna da barragem, ninguém sabe informar sobre o que acontece na parte externa dos imensos paredões. Se sabem alguma coisa, não fazem a mínima questão de passar adiante.
Cheguei lá, não por informação dos alagoanos, mas por matéria publicada no Caderno de Turismo do jornal “A Tarde”, de Salvador. Porém a matéria omitia informações importantes e fundamentais para o conforto mínimo do turista: a falta de estrutura básica, como restaurantes e hotéis.
Para o turista avulso e acidental como foi o meu caso, me instalei na cidade de Delmiro Gouveia, e lá, fiz o meu centro de operações, vez que fica perto de Xingó, Piranhas e Paulo Afonso, havendo transporte regular de “Van's” a cada vinte minutos para essas cidades.
Delmiro Gouveia deve sua importância histórica à Fábrica da Pedra, primeira indústria da região nordestina e que desafiou o monopólio britânico na industrialização de linhas de algodão, cuja versão não oficial, dá conta do assassinato do industrial Delmiro Gouveia, em 1917, como crime de mando da Coroa britânica, por ele ter desafiado o poderio econômico de Sua Majestade. Deve-se a ele, também, a construção da hidrelétrica de Angiquinhos, na cachoeira de Paulo Afonso, a primeira hidrelétrica construída aproveitando a energia da queda d'água.
Piranhas se localiza a vinte quilômetros de Delmiro Gouveia. São duas cidades: Piranhas Nova, construída no planalto, ao nível da barragem de Xingó, e Piranhas Histórica, a cidade remanescente da cheia do São Francisco, em 1989, que destruiu metade da cidade. A Piranhas Histórica é rica em seu patrimônio arquitetônico, encravado nas rochas e tendo como cenário as tranquilas águas do Rio São Francisco à saída das turbinas da hidrelétrica, e os cânions formados ao longo do seu leito. Existe um mirante natural, de uns cinquenta metros de altura, ampliando a visão do horizonte.
Na cidade há também o Museu do Cangaço, aberto diariamente das oito às dezoito horas. É lá que funciona a Secretaria de Turismo de Piranhas, mas ninguém sabe dar informações a respeito do lugar ou de qualquer evento cultural. Indicaram a Prefeitura como ponto de informação turística e, na Prefeitura, indicaram o Museu.
Não existem hotéis nem restaurantes; apenas duas pequenas pousadas. O transporte ligando as duas cidades é feito por moto-táxi, cujo ponto de apoio localiza-se na entrada de Piranhas Nova.
Na outra margem do Rio São Francisco localiza-se a cidade de Canindé de São Francisco, mais estruturada por ter sido uma cidade planejada com a represa, vez que  a Canindé primitiva ficava às margens do Rios São Francisco e foi engolida pelo lago de Xingó. Fica a um pouco mais de duzentos quilômetros de Aracajú, em pleno coração da caatinga, e nela está o Xingó Parque Hotel, bem estruturado, mas, por ser o único, dá vontade de chorar na hora de pagar a conta. É este hotel o responsável pela organização do passeio de catamarã, com duas opções: diariamente e duas vezes ao dia, cruza a imensidão do lago artificial e navega em contracorrente pelos cânions do rio até as proximidades da barragem PA- 4, em Paulo Afonso. O ponto de partida é no Bar Flutuante, um bar, restaurante e atracadouro na barragem de Xingó, feito com imensos cilindros flutuantes.  O outro passeio é programado apenas duas vezes na semana e o embarque é feito cerca de um quilômetro depois da descarga das turbinas. O barco segue a correnteza do Rio São Francisco, passando por Piranhas, adentrando outros cânions e aportando em Angicos para um passeio pela trilha do cangaço, onde Lampião, Maria Bonita, e mais nove cangaceiros tiveram suas cabeças cortadas a facão.
Em ambos os passeios é preciso fazer reserva no Hotel Xingó. Contudo, para quem perdeu a reserva ou chegou de última hora, existe a opção de se fazer outro passeio de barco pelo espelho d'água da barragem, parando para um banho entre uma muralha de cânions, a uma profundidade de 80 metros, onde existe uma plataforma flutuante e é obrigatório o uso de coletes salva-vidas durante o banho. Ficam vários guarda-vidas de prontidão na plataforma. A reserva para essa excursão é feita no Bar Flutuante e há dois passeios diários: às onze e às quinze horas. O embarque e desembarque são feitos no atracadouro do próprio bar. A capacidade do barco é de 150 passageiros, fora a tripulação. A desvantagem é que essa excursão não sobe o leito do rio, em direção de Paulo Afonso, como o catamarã.
Caso o caro leitor esteja interessado em participar de um passeio à região, sugiro que faça através das operadoras de turismo de Aracaju, que fazem excursões regulares para Xingó e Paulo Afonso. Também pode obter informações pelo e-mail: mariojorgeturismo@yahoo.com.br. Ou então seguir direto para Paulo Afonso e desfrutar de toda sua estrutura de atendimento ao turista, e, uma vez lá, participar das excursões diárias pelas barragens e cidades históricas ribeirinhas. Uma sugestão é visitar a casa das máquinas das usinas PA-2 e 3, oitenta metros dentro da rocha, e conhecer, in loco, a gigantesca transformação da energia que gera o progresso na Região Nordeste.
Paulo Afonso é um oásis em um deserto de rochas e cânions, paraíso das águas represadas, e o mais novo “point” dos amantes e praticantes dos esportes radicais, principalmente o rapel. Mas, essa aí, é uma história para outro dia de prosa.


sábado, 11 de dezembro de 2010

Cineas Santos - O Juazeiro e a onça

Seu Liberato era um sertanejo atípico: não fazia o menor esforço para esconder a delicadeza, o lirismo e a ternura que o animavam. A violência não encontrava agasalho em seu juízo: não batia nem em jegue, bicho ronceiro e sestroso. Fazia tudo para agradar os filhos. No final do dia, trazia-nos da roça uma pororoca de melancia, uma bananinha de coroatá, uma resina de angico, um favo de enxuí, uma simples flor de caruá ou de rabo-de-raposa... Era lento, sossegado, paciente e excelente contador de causos. As histórias eram as mesmas, mas sempre acrescidas de detalhes que lhes conferiam sabor de novidade. Se tivesse de defini-lo com uma metáfora, não me ocorre outra: um juazeiro, só sombra.

Dona Purcina, ao contrário, era agitada, enérgica, autoritária. Não admitia contestação, desrespeito, desobediência. Partidária da pedagogia da pancada, não hesitava em aplicar corretivos severos e rigorosos nos filhos, afilhados, agregados e afins. Afirmava, sem rodeios: “Quem não faz o filho chorar chora por ele”. Estava sempre atenta a tudo. Nada se lhe escapava ao olhar de águia. Quando alguém lhe questionava uma ordem com o argumento: “não vai dar certo”, ela retrucava na hora: “Você já tentou?”. Nascida e criada no sertão do Caracol, tinha um sonho recorrente: migrar para uma cidade grande, onde “corra dinheiro, saia água das torneiras e tenha escola de graça”.

Com temperamentos tão distintos, ela e seu Liberato nunca brigavam. A canga do trabalho os unia. Quando ele percebeu a vocação dela para o matriarcado, abdicou do poder de mando: deixou que ela o exercesse plenamente. À proporção que envelhecia, fazia-se mais brando, mais suave, mas companheiro dos filhos. Às vezes, no auge das nossas reinações, ouvíamos dele a advertência providencial: “Cuidado com a onça!” ou: “A onça está por perto!”. Serenos e sossegados, esperávamos a fera afastar-se para reiniciar as traquinagens. Aos 75 anos, seu Liberato perdeu completamente a visão. Nunca se ouviu dele uma queixa, uma imprecação. Dir-se-ia ter nascido cego. Fez sua última viagem no dia 1º de maio de 1984, sem saber que aquela data era consagrada ao trabalhador. Era um sertanejo íntegro, um homem exato.
*
Este fragmento de prosa integra o livro A Matriarca dos Loucos, que pretendo lançar brevemente.


sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Perpetuum Jazzile e BR6 - Aquarela do Brasil

O que é bom e bonito é pra ser divulgado. Agradeço ao mano Antonio Torres por me enviar essa pérola.

Os eslovenos falam Português? Não. Falam, claro, o Esloveno. Mas o povo que vive lá no frio ao pé dos Alpes cantam em Português tupiniquim melhor que os lusos, os inventores da nossa língua mãe gentil. Talvez haja uma explicação para essa interpretação musical sem sotaque, mais cristalina que música sertaneja: Portugal e Eslovênia tiveram a mão dominante dos celtas e dos romanos.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Luís Pimentel - O ano e o mês de Noel

No mês em que o Brasil inteiro comemora o seu centenário de nascimento, Noel de Medeiros Rosa, da Vila e do mundo, recebe as mais justas homenagens. Noel faria 100 anos exatamente agora: ele é de 11 de dezembro de 1910. Viveu apenas 27 anos, mas deixou uma obra de tirar o fôlego de qualquer um: mais de duas centenas de músicas, todas com uma garantia de qualidade jamais questionada por quem quer que seja.

O autor de momentos sagrados da MPB, como Conversa de botequim, Pra que mentir?, Pela décima vez, O orvalho vem caindo, Silêncio de um minuto, Feitio de oração, X do problema e de tantos, tantos outros, veio ao mundo marcado (e para sempre) pelo fórceps que lhe fraturou a afundou o maxilar inferior. Carioca, nasceu na Rua Teodoro da Silva, em Vila Isabel, filho de um gerente de loja de roupas (Manuel Rosa) e de uma dona de casa (Marta de Medeiros Rosa).

Noel teve infância de menino classe média no Rio daqueles anos, com direito a escola, alimentação na hora certa, roupas bem passadas e lazer. Estudou em bons colégios e chegou à Faculdade de Medicina. Chegou, mas não ficou. O samba (que não se aprende no colégio) falou mais alto. A Medicina perdeu um doutor, mas a música brasileira ganhou seu mais inspirador compositor.

A primeira música foi gravada em 1928 (neste ano, do outro lado da linha do trem, Cartola, Cachaça e outros bambas estavam criando a Estação Primeira de Mangueira) e chamava-se Ingênua, uma valsa. Dois anos depois estourou com a irreverente Com que roupa? (Eu hoje vou mudar minha conduta/Eu vou pra luta, pois eu quero me aprumar). Em 1931, ainda tentando conciliar as atividades de estudante de Medicina com as de compositor, cantor, boêmio e namorador inveterado, gravou mais de 20 músicas e viu seu nome consagrado, sobretudo por conta da divertida Gago apaixonado (Mu-mu-um-um-mulher/Me fi-fi-fi-zeste um estrago).

Daí em diante, era Noel Rosa, o poetaço da Vila, pontificando no Café Nice, nos bares da Lapa, no teatro de revista, no Theatro Central, nas principais emissoras de rádio, polemizando com Wilson Batista (outro gigante), namorando coristas e produzindo sem parar. Numa época em que uma simples tuberculose matava, o Poeta da Vila bebeu muito sereno – sempre acompanhado de um bom traçado, um conhaque e a cervejinha de fé – e descuidou do peito. Tentou salvar os pulmões nos inúmeros recantos de recuperação então existentes, mas não conseguiu.

O coração mais inspirado que já bateu na Vila fez silêncio no dia 4 de maio de 1937, na casa dos pais, na mesma Teodoro da Silva onde nasceu, deixando uma multidão de fãs órfãos e de mulheres apaixonadas.



domingo, 5 de dezembro de 2010

Eliezer Setton no Programa Sr. Brasil

Hoje é um domingo de música. Não uma música qualquer, mas as nossas canções hinárias em arranjo e voz de Eliezer Setton, acompanhado do excelente sanfoneiro alagoano Tião Marcolino, no programa de Rolando Boldrin, intitulado "Sr. Brasil". Além das músicas, o artista também fala (e canta) de algumas curiosidades do Hino Nacional e até do hoje universal "Parabéns a Você".

Delicie-se com esse presente dominical que o blog oferece aos seus diletos leitores.







Manifesto Sururu ressurgiu das cinza




No dia 25 de abril de 2010 recebi o seguinte e-mail de Cláudio Canuto:

“Tom, achei o seu texto sobre o meu artigo. É uma beleza, um retrato sem disfarces e muito acurado da realidade cultural da província. Acho que talvez você possa aproveitá-lo, adaptando-o em artigo, se necessário excluindo a citação ao meu próprio artigo, já que o perdi.

Por seu intermédio, fiquei sabendo que ele foi publicado em 3 de outubro de 2007. Vou tentar acha-lo. Neste caso, publicaríamos os dois: o meu artigo e o seu comentário que, aí, poderia ficar tal veio ao mundo. O que você acha?

A ilustração no texto sobre Prometeu, foi uma grande sacada. Obrigado.”

Cláudio Canuto se referia a um texto publicado no jornal Tribuna de Alagoas, em apoio ao seu artigo no jornal Extra, de Maceió, sobre o Manifesto Sururu, um movimento cultural capitaneado pelo sociólogo, poeta, compositor e músico Edson Bezerra. Infelizmente Cláudio Canuto não pôde cumprir a promessa e levou para o túmulo todo seu desejo de resgatar esse Manifesto que seria tão importante para a Cultura alagoana.

Hoje, no intervalo do jornal local, ouvi a chamada para outro programa que seria exibido logo após o noticiário e qual o quê?! tratava-se de um programa baseado no Manifesto Sururu, e assim vos apresento, diletos leitores deste blog, para que  fiqueis sabendo que a Cultura de Alagoas, em particular, de Maceió, vai muito além da cultura de cana-de-açúcar e do fumo de Arapiraca. 

Em pouco mais de trinta minutos de vídeo há uma verdadeira mistura de música, imagem e história. Também publico o texto ao qual o saudoso Cláudio Canuto fez referência.





DESPINICANDO O SURURU DA CULTURA OFICIAL

“Colonialismo ideológico consciente de alguns intelectuais que moram nas almofadas do poder, abraçando-as, defendendo-as como filhos. (...)”    

Assim Cláudio Canuto inicia o seu introito em manifesta defesa do “Manifesto Sururu”, publicada em um jornal desta cidade, no ano passado, sob o título “Sururu apresenta sua grande couraça”.

Cláudio Canuto, sociólogo, escritor e jornalista, conhece de letra o que é a cultura alagoana, o que é a literatura alagoana e, principalmente, o que é o sururu da Lagoa Mundaú, e ninguém melhor do que ele para avalizar o chamado Manifesto Sururu, um movimento que segue na contramão da cultura oficial das Alagoas.

Apesar da coerência que rege a fundamentação ideológico-cultural do texto em questão, sou completamente cético quanto aos rumos da bandeira levantada em prol da cultura alagoana, haja vista outros projetos de igual teor ter sido jogado na vala comum do esquecimento. Em 2002, o Governo do Estado, em noite de gala, inaugurou uma nova política para a nossa cultura, cuja ação, se posta em prática, tiraria Alagoas do marasmo em que se encontrava e ainda se encontra. Lamentavelmente existiu um longo corredor entre as palavras e as ações e as boas intenções foram enterradas na inanição ou má vontade de seus executores.
Infelizmente os atos evidenciam um fato, embora haja algumas exceções: Alagoas é uma terra de amadores. As políticas públicas para a cultura são amadoras. Os patrocinadores são amadores, os artistas são amadores e os veículos de comunicação conseguem se superar no amadorismo. O artista brinca de ser artista. O Governo brinca de fazer cultura. A imprensa faz de conta que divulga. 

O público, que seria o consumidor final, o cliente a ser cativado, a ser conquistado, de repente se tornou em válvula de escape do mau humor dos dirigentes culturais que atribuem a ele, o público, a culpa pela incompetência gerencial dos promotores dos eventos culturais. No show de abertura do Projeto Pixinguinha, os nossos “promoters” deram uma aula de sandice administrativo-cultural ao colocar o artista roqueiro alagoano Basílio Sé para encerrar um show do grupo Época de Ouro, um conjunto de chorinho e que tem o seu público cativo entre os “jovens” da meia-idade, os saudosistas de Jacob do Bandolim. Outra coisa não poderia ter acontecido, senão uma revoada do povo ao final da apresentação do artista maior, exibindo sorrisos de satisfação pelo reencontro com os anos doirados da década de sessenta. Após uma overdose de saudosismo, não havia espaço nem clima para um outro estilo musical.
Dias depois, dois jornais da cidade publicaram artigos de alguns colunistas envolvidos de corpo e alma com a nossa administração cultural – desconfio até que sejam os verdadeiros responsáveis pela gafe –, criticando e culpando o público pela estupidez de uma carapuça que só cabia a eles, os gerentes culturais. O que fizeram com o Basílio Sé foi de uma sandice contundente, coisa de aventureiros e não de amadores, pois, estes, ao menos se esmeram para mostrar competência e duvido que algum amador, por mais imaturo que seja, coloque a carroça na frente dos bois.

Voltando ao tema central, o problema de certos manifestos é que se limitam ao próprio gueto cultural, ignorando a presença do público lá fora. Salvando as raras exceções, o artista alagoano acha que o público é quem deve ir onde o artista está, e não o inverso. É como se dissesse: “eu me basto”. Cultura, para certos artistas, é o que está ligado ao seu umbigo. Quando mete o pé em um cargo da “viúva”, trata logo de puxar a brasa para sua sardinha. Pensa no individual, em prejuízo do coletivo. Patrocina certas figurinhas do seu círculo de amizade em detrimento do verdadeiro artista, aquele que sobe no palco e expõe sua alma para o público, certo de atingir um objetivo, porém a voz das massas embevecidas e reconhecidas do seu talento não ressoa além dos paredões blindados dos interesses mesquinhos e individuais daqueles que podem fazer acontecer.

Assim, em vez do Marechal Deodoro apear do seu cavalo para que um líder legítimo tome as rédeas da História, conforme o implícito no Manifesto Sururu, vemos o explícito puxa-saquismo de pseudos líderes puxando as rédeas do cavalo de algum marechal de plantão no poder público em total atitude de subserviência e incorporando o servilismo brutal à gente descomprometidas com a cultura alagoana, mas que ocupa cargo por mera indicação política. Quem haverá de se esquecer de um secretário de Cultura que, no discurso de posse, disse: “A única cultura que entendo é a do fumo”?

São pessoas assim que acham que “ópera-bufa” tem a ver com flatulência intestinal, que pululam na nossa cultura oficial. Oxalá o “Manifesto Sururu” não seja apenas um rompante passageiro de indignação de alguns e que, tal qual o molusco nos últimos tempos de matança da poluída Lagoa Mundaú, não se asfixie nos gases venenosos formados pela estagnação das suas traiçoeiras águas.

No presente caso, as águas deslumbrantes e sedutoras do Poder Público.   


        

sábado, 4 de dezembro de 2010

Cineas Santos - Da importância do primeiro passo

É senso comum que qualquer jornada se inicia com o primeiro passo. Não poderia ser diferente. Para surpresa de todos, o conservador Bento XVI deu o primeiro passo rumo a uma caminhada que poderá salvar milhares de vidas: admitiu, ainda que em caráter excepcional, o uso da camisinha. Em entrevista concedida ao jornalista Peter Seewald, o Papa acenou, pela primeira vez, com a possibilidade de as prostitutas recorrerem aos preservativos para se protegerem do HIV. Para Michel Sidibe, diretor executivo da Unaids (agência da ONU para o combate à Aids), ”É um avanço significativo por parte do Vaticano. Esse movimento reconhece que um comportamento sexual responsável e o uso da camisinha desempenham um papel importante na prevenção do HIV” (Folha de São Paulo- 22/11/10). Católicos progressistas do mundo inteiro saudaram a declaração do pontífice como “uma vitória da razão e do bom senso”.

Bento XVI, como se sabe, em curto espaço de tempo, teve de enfrentar dois problemas muito sérios: a prática da pedofilia no seio da Santa Madre Igreja e a debandada de fiéis que, cansados da intolerância da Igreja, migram para religiões menos conservadoras. Ao condenar as pesquisas com célula-tronco, o divórcio, a união entre pessoas do mesmo sexo, principalmente, o uso de preservativos, a Igreja Católica parece trafegar na contramão de tudo. Exigir dos fiéis que, em pleno século XXI, encarem o sexo como “atividade (meramente) reprodutiva” é, no mínimo, um anacronismo.

Há quem afirme que “a novidade” de Bento XVI já chegou tarde. Em alguns países do continente africano, a Aids atingiu proporções epidêmicas. Estima-se que só na África do Sul existam 6 milhões de pessoas com HIV. É certo que não se pode responsabilizar apenas a Igreja Católica, com sua postura retrógada, pela disseminação dessa “praga contemporânea”. A pobreza e a ignorância têm peso muito maior.

Por oportuno, vale ressaltar que muito antes do nascimento da igreja de Cristo, egípcios, chineses e romanos já protegiam suas espadas com bainhas de tecido (linho), peles e tripas de carneiro. Esses avós dos preservativos modernos protegiam os combatentes das doenças sexualmente transmissíveis. Por acreditarem que tais enfermidades eram castigo da deusa Vênus, os romanos batizaram-nas com o nome de doenças venéreas.

Em 1564, o italiano Gabriel Fallopius produziu um preservativo de linho relativamente seguro e confortável. Por sua engenhosa invenção, ganhou os aplausos dos seus pares, mas foi condenado ao purgatório onde, até hoje, expia suas culpas por “incentivar a luxúria e a concupiscência”. Com seu gesto significativo, Bento XVI poderá salvar milhões de vidas em todo o mundo e propiciar um merecido descanso à sofrida alma do bravo Fallopius.

Assim seja!

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O EXORCISMO



De tanto ser tentando pelo vizinho, ex-companheiro de copo, da sinuca e da porrinha, capitulou. Iria à sessão de trezentos-e-não-sei-quantos pastores na quarta-feira para ver como é que era. Se gostasse, frequentaria; caso contrário, o vizinho que lhe perdoasse, mas continuaria a adorar o deus Baco.

No dia acertado, foi um dos primeiros a chegar para melhor sondar o ambiente. Apesar de ser, até então, um católico, apostólico, romano, nunca fora chegado à igreja, muito menos a templos evangélicos. Achava padres e pastores mercadores da alma e da fé dos incautos e por eles nutria uma tremenda ojeriza. Os pastores principalmente, pois, estes, faziam verdadeira lavagem cerebral no infeliz que chegava ao ponto de adorar o seu líder espiritual acima de qualquer coisa.

Nesse dia os trezentos-e-não-sei-quantos pastores iriam promover uma faxina em regra para tirar o Diabo do corpo dos possuídos, prova irrefutável de seus poderes e da fragilidade espiritual dos fiéis. Já havia muita gente no recinto e por isso demorou a achar um lugar onde tivesse ampla visão do púlpito e ao mesmo tempo pudesse ser visto pelo amigo.

Sessão iniciada, viu os pastores suar a camisa em exercício de invocação do Divino e ficou impressionado com as exigências que faziam de Jota Cristo, como se fossem seus superiores hierárquicos ou se Cristo lhes devesse obediência por qualquer outro motivo. E, de tanto exigirem providências, um demônio se manifestou no corpo de um sujeito magricela, que pulou agitado no meio do corredor, espumando, gritando palavras incompreensíveis e ameaçando agredir as pessoas próximas a ele. Uma legião de seguranças, saída do invisível, segurou o manifestado e o levou para o local onde se daria o exorcismo. Dez minutos depois o magricela se acalmou e voltou tranquilo para o seu lugar, sorrindo e pedindo desculpas àqueles ameaçados por ele.

Os trezentos-e-não-sei-quantos pastores continuaram a sessão do bota-fora de capetas, dizendo que fora captadas ondas extra-sensoriais dando conta de mais demônios no recinto e que todos deveriam orar com mais fé e aumentar o dízimo. Era o amor ao vil metal que tornava o homem escravo de Satanás. “Desfaçam-se do canal de atração do Capeta! Esvaziem o bolso!” e o povo obedecia, enchendo as sacolas de dinheiro. Gente que, mais tarde, não teria como comprar pão para os filhos. Mas Deus daria um jeito de matar a fome, garantiam os trezentos-e-não-sei-quantos enviados do Divino.

No meio do alvoroço formado pelo esvaziamento de bolso, o candidato a evangélico notou um cidadão ao seu lado em estado de transe. Nada demais se o dito cujo não tivesse para mais de dois metros de altura por outro tanto de largura. A Bíblia, aberta, repousava sem a menor dificuldade na palma da mão do mastodonte, de tão grande que era. Lembrou-se do estrago que o magricela promoveu e temeu pela sua integridade física caso os tremores no corpo daquele cidadão fosse, de fato, o Capeta se manifestando. Dava sinais de alucinado. Haveria seguranças suficientes para dominá-lo? Não quereria o Capeta se aproveitar daquelas mãos gigantes para esgoelar uns quatro a cinco ali ao seu lado? Quem seria a primeira vítima senão ele, um descrente de tudo? Olhou ao redor em busca de outro lugar onde pudesse ficar e não viu nenhum. O templo estava lotado e ele mal podia se mexer. As pessoas oravam cada vez mais alto, respondendo ao comando dos pastores. Só havia uma saída: vigiar os movimentos do cidadão atentamente, à espera de algum gesto violento. O Inimigo é traiçoeiro e ele não iria abrir a guarda, apesar do aparente estado de pânico.

O cidadão pronunciava palavras desconexas, aumentando de volume todas as vezes que os trezentos-e-não-sei-quantos pastores exigiam de Jota Cristo que expulsasse os demônios presentes no corpo de alguns. Começou um autoflagelo, usando a Bíblia como chicote e não mais palavras se ouviam, mas grunhidos e estremecimento corporal, como se fosse ter um ataque de epilepsia a qualquer instante.

“Por que fui me deixar convencer por aquele sacrista, filho duma figa!?” pensou apavorado o ex-futuro evangélico, sem conseguir tirar os olhos das mãos do Possuído, que, àquela altura, pareciam mãos gigantescas. Sentiu um líquido quente escorrer pelas suas trêmulas pernas e os dentes começaram a ranger. O povo todo parecia uma multidão de alucinados e se imaginou sendo trucidado pelo “guarda-roupa” ao lado. Não. Não se deixaria abater por um endemoniado qualquer. Reagiria, lutaria e talvez desse tempo dos seguranças chegar.

Quando os enxota-diabos tornaram fortes seus apelos exorcísticos, o rebanho entrou em histeria coletiva. O possesso parrudo teve um forte estremecimento, largou a Bíblia no chão, levou as mãos à cabeça e, com cara de poucos amigos, virou-se para o lado do aterrorizado estreante na irmandade evangélica, que, sem encontrar um corredor de fuga, deu um salto felino sobre o banco traseiro, depois para o outro, pisando nas pessoas, e assim sucessivamente, até alcançar a saída do templo e sair em desembalada carreira rua afora, perseguido por uma multidão incentivada por trezentos-e-não-sei-quantos pastores incitantes:

– Peguem ele! Não o deixem fugir! Ele está possuído de Lúcifer, o rei dos capetas! Agarrem o possuído!