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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Dorme Nenê - Cláudia Magalhães


"Tutu-Marambá não venha mais cá, que a mãe da criança te manda matar, bicho-papão sai de cima do telhado, deixa a menina dormir sossegada...'', Ofélia acordou com a voz da criança cantando e sentiu um forte mal-estar, uma náusea que fazia seu estômago dar voltas e mais voltas. As pancadas da chuva na janela só aumentavam sua dor de cabeça. Com as pernas trêmulas seguiu em direção a porta de entrada e ao tocar no trinco pensou que ia desmaiar. Ela estava fechada, não havia como escapar. Segundos depois, andava de um lado para o outro da sala buscando o controle da situação, mas o mundo insistia em correr mais rápido. Foi até o outro quarto e encarou com espanto o rosto quadrado, esquálido da velha. "Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega essa menina que tem medo de careta...", ouviu a voz da criança que cantava sem parar e sentiu o peito fervilhar como se estivesse dentro de um forno. Por que não nos deixa em paz? Por que nos manter presas aqui? - gritou encarando a velha. Sentiu uma forte dor no estômago. Há quanto tempo não comia algo? Não lembrava. Pobre criança, já não sabe mais sorrir, pensou com tristeza.

      Correu até a cozinha e encontrou uma garrafa de gim fechada. “Que alívio, ela vai se sentir melhor”, pensou enquanto abria a bebida. Encheu o copo e, em seguida, voltou ao quarto com a garrafa e ofereceu a bebida a velha que tomou de um só gole. Não gosto de você, te odeio o suficiente para te matar. Por favor, desista! Não me olhe assim, com esse olhar caído, fraco, não terei pena de você! Não use seu sofrimento como pretexto para nos prender aqui! Vou revirar cada canto dessa casa e descobrir onde escondeu a chave. Vou pegar a criança, sair por aquela porta e encontrar meu amor. Sim, eu sei viver um grande amor, ao contrário de você! Por isso fica assim com essa inveja no peito e com esse desejo de morte, disse vendo a velha virar mais um copo de gim. Por que não se mata de uma vez? Não sabe que não pode manipular os desejos do mundo? Não são nossas vontades que fazem a faca cortar nossos pulsos, mas nossas fraquezas. São elas que dão poder às coisas. Então, vá em frente, velha! Pegue essa faca que você deixou sobre a cama, pois fraqueza é o que não lhe falta! Você não consegue, não é? Não minta pra si mesma, não esconda suas limitações. O nome disso é covardia!, disse encarando a velha que, nesse instante, tomava mais uma dose de gim. "Dorme neném que a cuca vem pegar, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar...", a voz da criança a deixava em pânico. O que você fez com a menina? Vamos, diga! E as chaves, onde estão as chaves? - gritou histérica. Por que você faz isso? Por quê? - perguntou com um fiapo de voz. Você foi amada, descobriu o real sentido de levantar a saia e no lugar de se sentir feliz, se tornou inquieta e medrosa. Penetrou mais em você do que no amor que poderia ter te dado tudo e não gostando do que viu, se tornou sua maior inimiga. Perdeu e diante do abandono e da solidão só fez envelhecer, disse revirando tudo pelo quarto. Essa brincadeira toda me perturba. Vou encontrar essa chave e, ao contrário de você, uma fracassada, vou em busca da felicidade. Vou em busca do amor perdido. Vou dizer que ao seu lado dou as costas a tudo que faz tremer a felicidade, que sua companhia me rouba de uma vida miserável e que isso me deixa mais distante da morte. Direi que o amo e se minhas palavras não forem suficientes para trazê-lo de volta, não ficarei de braços cruzados como os covardes que tentam se matar com as mãos nuas, falarei com o olhar, com as mãos, com as coxas, com os pêlos, com o sexo faminto e de cada uma dessas partes que fazem esse amor doarei sua porção mais generosa, doce e erótica, até ele purgar todas as dores, tristezas e dúvidas e me levar ao gozo dos que amam deixando escapar da sua boca um "eu te amo"! Seremos causa e efeito, sob o comando da emoção no espaço e no tempo encontraremos a inteligência do amor e reduziremos a estupidez a pó. Vê a velha tomar mais um gole de gim e sente a cabeça girar. Amamos de maneira diferente. Não vou deixar você tirar ele de mim porque não suporta me ver feliz. "O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada, o cravo ficou ferido e a rosa despetalada!", a voz da menina em sua cabeça a deixava cada vez mais desorientada e a amargura da velha já cobria por completo seu juízo. Sei que perdi, não precisa me lembrar disso. Eu vou gritar. Vou gritar até que apareça alguém para me salvar, disse correndo desesperada até a porta de entrada.

      A chave está na porta! - constatou em pânico. Como não a vira antes? Deu altas risadas. Gargalhou muito, até a exaustão, até dobrar a esquina daquela emoção extrema e desabar num choro grave, sofrido. " O anel que tu me deste era vidro e se quebrou. O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou!", era a voz da criança que escutava cada vez mais forte. Voltou ao quarto sentindo a alma pesada, capaz das piores atrocidades. Ficou mais uma vez em frente ao espelho e encarou os olhos da velha Ofélia dentro dela, observou sua inércia, seus lábios enrugados que jamais ousariam dizer o que sonhava, que nunca soube se enfeitar de sonhos, seus pés fincados no chão frio e decidiu se salvar daquele mal que a atormentava. Pediu ajuda a pobre criança Ofélia, mas ela desaprendeu a sorrir, desaprendeu a brincar. Antes tão cheia de vida, agora, um pequeno raio de luz, muito fino e frágil, uma voz de saudade, doces lembranças pulando corda, caindo no poço, chupando manga nos quintais. A criança, a velha e a mulher, três forças desordenadas que formavam a Ofélia. Três em uma. Quantas faces cabem em nossa alma? Qual delas irá cuspir na vida enterrando os desejos das outras, sete palmos debaixo do chão? Não importa. A velha venceu. Há momentos em que devemos proibir a compaixão, pois ela torna santo o que devemos desprezar. "A canoa virou, por deixá-la virar, foi por culpa de Ofélia que não soube remar." Nenhuma palavra mais foi dita. Entre ela e a realidade, somente o silêncio e a distância. Ali, diante do espelho, com a certeza de que todas as promessas e desejos da infância se perpetuam, Ofélia deu adeus a si mesmo. Sem rodeios, cortou os pulsos, matando a mulher, a velha e a criança Ofélia de trinta e cinco anos.
 


 

quarta-feira, 17 de março de 2010

Amor em Paris - Cláudia Magalhães




De Paris


Clara está no tempo dos amores mal curados, onde o gozo é controlado por um anjo ou demônio, e este ou aquele, deitado a seu lado, com a mão esquerda torna febril e trêmula a sua fenda e com a direita injeta em sua mente doces recordações do passado, paralisando-a por completo.

É meia-noite. Há horas, ela permanece imóvel em sua cama, lugar onde dormiu por seis anos com um amor que, por ingratidão e egoísmo, há uma semana não está mais ali. Algo difícil demais para se compreender e que tornam loucos os que andam pela terra.

Ela leva a sua mão em forma de concha até o sexo, pois é assim que rezamos para o amor, e sonhando com os míseros segundos em que tocaria as estrelas, tenta acariciar sua lua úmida até ela tornar-se, novamente, seca, fazendo girar mais rápido o mundo, mas as lembranças do passado estrangulam seus dedos, enchendo-os de verrugas e vergonha.

A enorme vontade de tê-lo, de possuí-lo, a faz perder o juízo. Vou à Paris. Vou em busca de Vinícius!, pensa. Segundos depois, ela enfrenta descalça as ruas desertas e o frio da madrugada, usando apenas seu vestido longo, florido e que, por vezes, usava como camisola. Seus gritos entram pelas frestas das portas e das janelas quebrando o silêncio que comanda a decência. Quando um ou outro a pergunta, O que aconteceu, mulher?, ela responde, Vou à paris. Vou em busca de Vinícius!, e segue andando pelas ruas do outro lado do mundo como se fosse a dona delas. Pergunta à todos os que cruzam seu caminho por um homem alto, barbudo e grisalho e diante do silêncio ela responde, Ele está em Paris! Ele está me esperando em Paris! E segue falando da importância das mãos, pois nelas moram as vontades mais urgentes, falando da imensidão do mundo e do desejo que tinha com o homem amado de morar na Cidade dos Sonhos, para novamente, falar das mãos e do desejo, repetindo, incansavelmente, as mesmas palavras. Tenta, por vezes, se calar e escutar as histórias sem pé nem cabeça dos homens, mas ela tem pressa em se livrar dos sofrimentos da vida e segue sem escolher o caminho e sem saber ao certo quem ela é, molhando os pés na lama acreditando que é o mar, vivendo de esmolas, bebendo cachaça ou conhaque, pedindo a benção a Deus que segurando-lhe o juízo não precisa fingir que lhe deu, até adormecer nos bancos das praças ou nas portas das igrejas e sonhar voando.

Uma hora depois que ela partiu, Vinícius, arrependido de mais uma vez tê-la abandonado, entra no apartamento. Vou pedir perdão e milhões vezes milhões de vezes direi que a amo e nunca mais a farei chorar!, pensa procurando-a com o peito sufocado pela saudade, mas é tarde demais.

Ele a encontra no quarto com a alma liberta. Ora caminhando como uma rainha, ora curvando-se e implorando coisas ao vento. Minha carne foi criada do pó impuro. Meu cérebro, uma grande duna, com a memória e os desejos dos ventos, encheu com o mel do mundo e com os ferrões das abelhas o meu sangue, que de tanto morrer, gerou em meu peito um enorme coágulo chamado coração. Uso salto, quero meus pés com gosto de rua na direção dos abismos. Há muito tempo, o amor me ensinou a cair, agora quero aprender a voar, diz olhando para ele, mas nada vê. A sua carne está acorrentada pelas vontades de sua alma, que cansada de sofrer liberta-se de si mesma, vai à todas as partes do mundo e confunde-se com outras. Desatenta e livre, muda de vontade de uma hora para outra, se reinventa a todo instante. Suas pernas encontram becos escuros, lama, sargaço, o mar e a imensidão das águas, enquanto sua cabeça de lua abraça o Cruzeiro do Sul, a Ursa Maior, as Três Marias, e não somente elas, mas toda a constelação. Múltipla, infinda, ela é a dama, a mendiga, a poeta, a vítima, a algoz, a que ri e chora ao mesmo tempo. Ela é Clara, a sua Clara! Ele observa a mulher que ama, que partiu sem volta para a cidade dos sonhos, deixando em seu peito uma chuva que nunca vai parar e os seus olhos enchem-se de lágrimas.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Noiva - Cláudia Magalhães





Saltou da cama, temendo chegar atrasada. Era o dia do seu casamento! Ah, esse dia jamais será esquecido! A felicidade, assim como a tristeza, tem cheiro de fruta doce, pensou inspirando o suave odor do ar. Correu até o velho baú e retirou, com cuidado, seu velho vestido de noiva. Vestiu-se com dificuldade. O seu corpo agitava-se num vai e vem frenético. Estava, sempre, num balanço, tentando entrar em harmonia com o tempo. E nesse balanço, atingia vôos cada vez mais distantes. A porta do quarto foi aberta por um rapaz de rosto duro e frio, como todos naquele lugar. Não se importaria com ele, estava feliz demais para isso. Poderia, finalmente, reencontrar seu grande amor!

Em busca do seu coração, seguiu em direção ao pátio. Por que quanto mais queremos chegar a um determinado lugar, mais ele se torna longe?, pensou ao atravessar o longo e frio corredor. As pessoas, que por lá circulavam, não notaram sua chegada. Nenhuma alma. Nem grande, nem pequena. De nada adiantava expirar, com seu deslumbrante vestido branco, tanta felicidade. As pessoas não gostam do sucesso alheio. A felicidade, sempre, incomoda, pensou sentindo toda sua alegria pesar o ar.

Correu em direção ao que chamava de “pequeno jardim”. Nesse lugar, todos os dias, na mesma hora, o esperava sentada num banco, branco, de ferro, que ficava sob uma enorme mangueira. A vida é uma enorme repetição, pensou observando uma manga rosa, tão doce quanto seu coração, pendurada na frondosa árvore. Era a fruta mais bela que já vira. Precisava pegá-la, ela seria seu buquê e quando terminasse a cerimônia, a ofertaria ao homem amado. Ela representaria seu amor! Teria presente mais doce? Não, definitivamente, não! Ah, como o amava! Esse amor tomou conta do seu corpo e tornou-se seu universo. Não entendia o real motivo de ter sido abandonada por ele naquele lugar frio e autoritário, dependendo da bondade, indiferente, daquelas pessoas que entendiam, somente, de bulas de remédio. É certo que estivera completamente no escuro por algum tempo e que andara com as mãos no lugar dos pés, mas, agora, estava “recuperada”. Lutaria pelo homem amado. Subiria na árvore, mesmo que se machucasse. Seus arranhões seriam como uma carta de amor. Era necessário mutilar-se com algumas farpas para provar a grandeza do seu sentimento. Toda carta de amor deveria ser escrita na carne, com sangue, dessa forma, todas as promessas de amor virariam cicatrizes, acompanhariam todos nossos passos e jamais seriam esquecidas com o tempo, pensou ao subir na árvore. Alcançou a manga e colocou-a, com cuidado, no banco. Limpou o vestido. Arrumou os cabelos, jogando-os para o alto e, dando-lhes um nó, improvisou um rabo de cavalo. Estaria impecável quando ele chegasse. Depois de alguns segundos de silêncio, retomaria o fôlego e lhe daria um longo e caloroso beijo. Diria que o amava com loucura e sairiam, de mãos dadas, daquele inferno. Escreveriam uma linda história de amor no tempo e mostrariam as pessoas que o amor necessita de perdão. Pensou em como seria bom tê-lo de volta. Preparar com carinho suas comidinhas preferidas, fazer amor e adormecer em seus braços com a certeza da existência de coisas que nunca se acabam e que nos voltam mais fortes quando a esperamos com paciência e determinação. Limpou, novamente, o vestido. Desmanchou o rabo de cavalo e o refez com agilidade. Nunca estava bom o suficiente. O amor, também, é assim. Nunca é bom o suficiente. Por essa razão fora abandonada. Essa sua mania imbecil de querer tudo no seu devido lugar, de arrumar, incansavelmente, a louça, a casa, era uma prova do seu amor. Ao ter a certeza disso, ele a abandonou. Ele passou a odiá-la pelo simples fato dela o amar. Pegou a manga e observou-a com atenção. Nunca vira uma manga tão bela! Cheirou-a e, novamente, colocou-a sobre o banco. Tinha absoluta certeza de que, em algum momento, ela a faria sofrer. Todas as coisas boas nos fazem sofrer. Elas moram na esquina do amor com o ódio, concluiu com tristeza. Limpou o vestido, refez o rabo de cavalo, pegou a manga, cheirou-a e pensou com uma estranha surpresa: Nunca vi uma manga tão bela! Por duas horas, repetiu esse ritual, incansavelmente. Quando ele chegar, direi que o amo com loucura até a exaustão. Repetirei inúmeras vezes. A vida é uma grande repetição e usarei isso a meu favor, repetindo, somente, as coisas boas, concluiu com satisfação refazendo o penteado.

Faltavam poucos minutos para o pôr-do-sol, quando escutou o som de passos firmes. Eram eles. Malditos! Sanguessugas do inferno!, pensou sentindo um medo quase insuportável. Nesse instante, o céu fechou as pernas arrastando nuvens pesadas e cinzentas, e escondeu o seu azul mais profundo. Tudo ficou plano, reto, uniforme. Não havia estrelas, nem firmamento. Sumiram as cores e do arco-íris, somente o nada. Estava tudo acabado. Fechou os olhos e deixou-se molhar pela água que derramava em seu peito. Sem o seu amor, tudo seria somente chuva. Uma chuva que traria seu passado em relâmpagos, queimaria suas lembranças, reduziria tudo a cinzas, fazendo seu futuro fugir pela boca feito fumaça. Cantou em silêncio, vendo-o morrer arrastado pelo tempo. Olhou a manga e constatou que, em breve, ela seria apenas uma fruta podre ou, então, seria devorada por algum estranho. Soltou um terrível grito de dor. Não! Não deixaria ninguém meter as mãos no que tinha de mais doce. Aquela fruta era seu amor. Se alguém tinha que provar sua doçura, esse alguém seria ela! Devorou a manga e sentiu sua felicidade escorrer pelos dedos. Os dois homens observaram com uma estúpida frieza, por alguns segundos, aquela mulher de rosto inquieto, dando as costas à razão em nome do amor. Não entendiam que não existe nenhuma arma contra ele, somente uma defesa: a loucura. Essa fuga dos perigos da vida. É nesse repouso dentro de nós, que ela nos desmonta e nos torna vítima e algoz.

Deixou-se agarrar por eles. Não se moveu, nem falou nada. Tudo poderia ser usado contra ela. Atravessaram o longo e frio corredor. Deitaram-na na cama, deram-lhe alguns comprimidos e saíram. Nenhum sorriso, nenhum carinho. Não chorou, já estava acostumada com a frieza dos homens sem coração. Enfrentaria a insignificância dos momentos em que teria que viver como se nunca tivesse experimentado um grande amor. Não tinha escolha. Tomaria todos os remédios, faria todas as refeições, como um animal domesticado. No início, quando chegou naquele maldito lugar, tentou se rebelar, mas, tal qual um amor contrariado, todas as suas tentativas de se fazer ouvir foram usadas contra ela. Esperaria a próxima oportunidade e fugiria dali. As pessoas enlouqueceram. Elas não sabem mais amar, constatou com a loucura dos que amam demais.
Ele não apareceu. Teria mais uma chance? Não sabia. Restava-lhe sonhar. Talvez, a forma mais humana, mais justa, de viver. Nos sonhos, encontraria o poder da loucura, do seu lirismo, indispensável para alcançar o amor. Somente os loucos amam. Em algum deles, o reencontraria num lugar chamado poesia. E, com uma flor na boca, ele lhe diria, somente, palavras de amor. Ela escutou o barulho de risadas debochadas, dos enfermeiros, vindas do corredor. O mundo ignorava sua tristeza. Adormeceu chorando baixinho, sentindo o gosto, agora, amargo, do que já lhe fora doce, extremamente doce.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A Primeira Mulher de Deus


Por Cláudia Magalhães

De Anjo ou Demônio 1




Nas primeiras horas do anoitecer de uma sexta-feira, depois de desejar fortemente fugir daquele maldito lugar, a primeira mulher de Deus sentiu nascer, do centro das suas costas, um enorme par de asas negras. Descobriu, então, que a liberdade nasce no centro escuro de todas as coisas, onde moram os desejos mais secretos, nas tocas, nos cárceres, nos lugares fechados, onde a saída não é visível ao olhar humano.

Amava Deus com todas as suas forças. Ele, na sua infinita bondade, dera-lhe a vida e sentia uma enorme gratidão por isso. Ensinara-lhe tudo. Falou-lhe da existência do diabo, seu maior inimigo, e do seu enorme poder de sedução. Disse-lhe que ele habitava nas terras além do abismo e que, deixar-se seduzir por ele, só lhe traria grande dor, grande tormento. Inexplicavelmente, a partir desse momento, desejou fortemente conhecê-lo. Condenada a viver isolada naquele lugar chamado Paraíso, pensava, dia e noite, numa maneira de atravessar o abismo e fugir da solidão.

Certa noite deixou-se cair sobre a terra úmida e ficou contemplando o céu vestido de estrelas. “Leve-me com você!” pensou ao observar uma delas cair. Nesse momento, sentiu o seu corpo elevar-se do chão. Um enorme par de asas negras, úmidas de sangue, nascia em suas costas. Sem raciocinar sobre o ocorrido, sentiu-se carregada para o invisível e, com o coração em febre, alçou vôo pela noite fria, deixando para trás uma chuva rala de sangue. Era a liberdade que se levantava ao vento, que se movia no compasso do seu ventre. Agora sou eu quem me persigo, pensou, sonhando com um mundo novo, cheio de novas possibilidades. Perdeu-se no deserto. Exausta e com olhar cheio de espanto, viu uma nuvem de poeira tomar a forma de um belo homem. Era ele, o diabo. Ele a olhava de uma maneira que lhe fez gelar os ossos. Estou perdida, pensou desejando fugir dali. Tenho sede, ele falou docemente. Ofereço-te as minhas águas, não para matar a tua sede, mas para roubar a tua calmaria. E, por livre escolha, prendo-me em tuas pernas de fogo, rodeada de respostas. Esta noite, te amarei... Na tua sombra, esconderei os meus medos, aliviarei o meu pranto. Quando a luz nascer, gritarei ao mundo que ressuscitei no gosto das maçãs, respondeu, tentando fugir da solidão. Uniram os seus destinos. Sob o céu aberto, com gosto de vinho, as suas línguas, demoniacamente puras, uniram-se, acendendo fogueiras, penetrando mundos invisíveis, anulando o bem e o mal. Em busca do amor, ela ofereceu-lhe o que tinha de mais sagrado: a sua cruz, a sua boca, o seu sexo e os seus seios. E, nessa cruz, morreu por amor...

Depois de algumas horas ela acordou. Procurou o seu amor e não o encontrou. As horas de loucuras impensadas deixavam, agora, uma enorme tristeza, um grande vazio no seu coração. Precisava fazer o céu voltar e com ele o seu amor. Procuro aquele que perdi, mas aquele que perdi não me procura, pensou sem desistir da sua busca. Passaram-se meses. Grávida, prestes a dar a luz, ela ainda o procurava. Arrancou-me o coração, os olhos, o sexo! Ávido de sangue, possuiu as minhas carnes e todas as noites, me persegue. Em fuga, o experimentei, e ele nunca mais sairá de mim, porque ferida de amor eu estou! Pensou, mergulhando na loucura.

Nesse imenso vazio ela trouxe ao mundo o seu filho, o fruto do seu pecado. Em seguida, sentiu-se arrastar, por forças desconhecidas, invisíveis, até uma grande cruz. Nela, com o corpo em chamas, gritou em desespero: Deus, por que faz isso comigo? O amor e o pecado habitam em mim. É esse o meu castigo? O primeiro não me trouxe nada de bom. O segundo, intitulado Satanás, nada mais é que o meu instinto de viver. Por que me criastes imperfeita e com sabedoria? Porque me criastes das fezes, do excremento ao invés do pó puro? Não me livrei da luz, foi ela quem fugiu de mim... Sou feroz no amor como também no ódio. Quando entro numa rixa, não admito insultos. Maldita armadilha! Mesmo que, em minhas sucessivas vidas, queimem a minha anca viva, seguirei em busca do amor... Não tenho saída... Sabes que toda a alma almeja a companhia de outra que lhe complete... Maldito! Trouxestes o amor para o meu espírito feminino e, a partir desse momento, não haverá paz, nem para mim, nem para os homens!...

Nesse momento, o Diabo, observando-a ser consumida pelas chamas, flutuava sobre as águas, refletindo, nelas, a sua outra face, a sua porção divina, a sua imagem de Deus, que satisfeito com a sua criação, sorria, tremendo de felicidade.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Senhor dos Destinos

Por Cláudia Magalhães

De Diário de um ladrão


Quarta-feira, 18 de março de 2009

Caro Sr. Fulano,

Possuo uma crueldade excepcional que, quando adormecida, cede lugar a uma ternura intrigante, curiosa, que me entorpece, me alivia. Sou escravo dessas duas realidades. Elas me fazem nascer e renascer, todos os dias, e me tornam humano. Sempre que atravesso a delicada e invisível fronteira que as separam, sou tomado por uma espécie de estupidez execrável que, com o passar dos anos, me fez perceber que o espaço que separa a vida da morte é feito de silêncio, do simples quebrar de um salto, de uma brevidade não medida pelo tempo. Somos movidos por uma bomba-relógio chamada coração, cujo controle não nos pertence. Deixei de sentir revolta, aprendi a não brigar com o que desconheço, perdi o sentido do pecado.

Acredito basicamente em três coisas: na inexistência de Deus, na existência da maldade e na magia da Literatura. Ah... A Literatura! Ela coloca fantasia na sola dos meus pés, arranca minha língua, educa meus ouvidos e, quando dou por mim, sou mais um personagem dos deuses de minha vida. Identifico-me bastante com Édipo, todos os dias, quando acordo, furo meus olhos para não enxergar a podridão do mundo.

O que falar da Literatura que provoca? Que destrói o belo e se masturba quando apresenta as baixezas do homem? Engana-se quem acredita que ela não espera por resposta. Todo bom livro delira de gratidão quando nos arranca uma lágrima, de alegria ou de dor, que usa, sabiamente, para afogar suas traças.

Nada há de extraordinário em minha vida. Rejeitado pelos meus pais, ainda adolescente, eu roubava para sobreviver. Amante da solidão, usava o dinheiro para pagar o quartinho fétido da pensão, comprar comida e livros nos sebos da cidade. Antes de dormir, sentava com alguma bebida barata e escrevia sobre o meu dia, hábito que mantenho até hoje. Escrever é minha única forma de perder a sanidade quando não estou vendo um bom filme ou lendo um bom livro. Não conseguindo viver na “normalidade”, escondo-me em qualquer lugar dentro das infinitas possibilidades das palavras em seus altares devassos, em seus inferninhos divinos, onde o ponteiro do relógio move-se na velocidade e na direção dos meus pensamentos, onde a única lei é a de perder o juízo. Sem escrever, enxergaria minha existência da mesma forma que meus olhos, desprovidos de um espelho, enxergariam minhas costas.

Aos vinte e dois anos cometi o meu primeiro crime. A boa quantia em dinheiro apagou, rapidamente, qualquer possibilidade de remorso. Afinal, aquele pobre homem poderia, ao atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. Quem pode prever o futuro nessa bola que gira manipulada pelo desconhecido? Desde então passei a viver sempre de malas prontas. Não permaneço mais que uma semana na mesma cidade, motivo pelo qual dou de presente meus livros assim que os termino de ler, mas sempre com a dedicatória: Cuide bem deste livro, ele salvará sua vida!

Hoje o senhor me fez viver um fato curioso, mágico. Quero que atire nas duas partes podres do corpo daquela filha da puta: na buceta e no coração! Foram suas últimas palavras no início da noite. Depois de anotar o endereço, seu rosto, antes nervoso, estampou uma sensação de solidão absurda. Seria essa a face do amor contrariado? Por que sofrer por um simples abandono? Desgraça maior é morar num apartamento luxuoso sem estantes, sem livros! Bem, isso, agora, não importa. Saí da sua cobertura elegante, parei num boteco de esquina, em frente ao fatídico hotel e pedi um conhaque. Quanto mais se aproximava a hora marcada, mais aumentava minha excitação. Uma espécie de gozo contido queimava meu juízo e me fazia beber compulsivamente. Não tardou para que ela aparecesse na rua deserta, com um vestido solto, preto, que lhe ia até a altura dos joelhos. Aproximei dela com a fúria de um animal selvagem desprovido de alimento. Assustada com o barulho dos meus passos, ela se virou abruptamente e protegeu o peito segurando com as duas mãos um livro: Diário de um Ladrão, de Jean Genet! Gelei até os ossos. Em minha mente, somente as palavras daquele Deus, cujo túmulo não poderia depositar flores: Conservei-me atento para agarrar esses instantes que, errantes, me pareciam estar a procura, como de um corpo, uma alma penada, de uma consciência que os anote e os experimente. Quando a encontram, param: o poeta esgota o mundo. Essa lembrança eletrizou meus cabelos, escorreu pelas minhas costas, preencheu minha coluna e virei verso. A minha alma, farta de poesia, assumiu proporções indescritíveis. Vestindo de letras as minhas fraquezas e a minha maldade, tornei-me a mais bela das criaturas. Observando a minha cara assassina coberta de vergonha, ela correu assustada, em direção ao hotel. Se prosseguisse com meu plano, desmoronaria. Não poderia matar alguém com um livro que me fez encontrar o vazio, a existência do mundo e a certeza de saber que não o possuo.

Coloco, agora, sob o seu cadáver essa carta para que outros a leiam quando o encontrarem em sua luxuosa cobertura "sem livros". Peço-lhe perdão, embora não sinta o menor arrependimento, afinal, você poderia tentar, novamente, matar o que temos de mais belo e raro: bons leitores! Quanto ao senhor, quem se importa? O senhor poderia atravessar uma avenida, tropeçar em alguma pedra solta e ser fatalmente atropelado. O que me resta dizer? Desgraça maior é ser Lady Macbeth e ser coroada com a loucura. É ser Othelo e não poder viver em paz seu grande amor. É viver numa mansão sem livros, é saltar para o nada sem ter conhecido o lirismo de Genet!

Ass.:Um amigo.