sábado, 12 de fevereiro de 2011

Antonio Torres - Anchieta e os índios


Conferência proferida em Paris, no Amphithéâtre Poincaré – “Carré des Sciences” –, da antiga Escola Politécnica, em 17 de novembro de 2000.


Nunca fui santo

(Anchieta e os índios: a propósito d’O auto de São Lourenço).


Comecemos com um esclarecimento: lemos o texto de José de Anchieta numa adaptação livre do escritor Walmir Ayala. Trata-se de uma publicação destinada ao circuito escolar, em edição datada de 1997. Na apresentação, o adaptador informa que O Auto de São Lourenço é composto de 1.493 versos, 867 deles em tupi, 595 em espanhol, um em guarani e 40 em português. De acordo com o parecer de Walmir Ayala, o texto em tupi é primário, em função da sua audiência: “o índio de inteligência curta e lenta”. A exígua parte em português também comunga da mesma elementariedade, pois era dirigida a brancos rudes, incultos, lançados à aventura da colonização: soldados, marujos, colonos e comerciantes. Já o texto em espanhol é cintilante, bem mais literário, por endereçar-se a uma pequena elite possivelmente presente no Brasil à época. E, naturalmente, por ser o espanhol a língua mãe de José de Anchieta.

Um exemplo da cintilação do texto em espanhol, considerado uma jóia de poesia mística, é a abertura do Primeiro Ato, na cena do martírio de São Lourenço, na tradução do já citado Ayala:

Cantam:

Por Jesus, meu Salvador,
Que morre por meus pecados,
Nestas brasas morro assado
Com fogo do seu amor.

Bom Jesus quando te vejo
Na cruz, por mim flagelado,
Eu por ti vivo queimado
Mil vezes morrer desejo.

Pois teu sangue redentor
Lavou minha culpa humana,
Arda eu pois nesta chama
Com fogo do teu amor...
(etc.)

E assim, com técnica tomada emprestada a Gil Vicente e dicção barroca, O Auto de São Lourenço foi representado pela primeira vez no terreiro da capela de São Lourenço, sobre o morro de São Lourenço, na aldeia de São Lourenço, hoje a cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. E no dia de São Lourenço, 10 de agosto. Presumivelmente no ano de 1583.

Obra de cunho sabidamente didático, a serviço da catequese e da moralização dos costumes, O Auto de São Lourenço é um singelo poema dramático, rico de imagens. Mas é, sobretudo, uma peça de propaganda, de difusão dos dogmas da Igreja Católica, numa terra sem fé, sem rei e sem lei, e onde, na visão dos jesuítas, o diabo pintava e bordava. O demo era o índio, que levava os portugueses a caírem nas tentações de uma natureza luxuriante, do cio da terra, de uma vida selvagem sempre em festa: sol, sexo, cauim, mar e selva. Eta vida boa! Imaginemos o efeito desse excitante cenário para aqueles solitários navegantes que penaram meses e meses na travessia do Atlântico em busca de uma sombra sob as árvores das patacas, o pau-brasil. Com tanta filha de Eva a desfilar do jeito que veio ao mundo, os náufragos, aventureiros e degredados que aportaram às costas do Brasil não hesitaram em despachar o pecado de volta para o além-mar. E caíram na farra. Afinal, os franceses já não haviam descoberto que não existia pecado no lado de lá do Equador? Ah, os franceses! Eles levavam José de Anchieta ao desespero. À loucura.

Leiamos a carta que o santo homem escreveu à Corte, em Lisboa:

A vida dos franceses que estão neste Rio é já não somente apartada da Igreja Católica, mas também feita selvagem; vivem conforme aos índios, comendo, bebendo, bailando e cantando com eles; pintam-se com suas tintas pretas e vermelhas, adornando-se com penas dos pássaros, andando nus às vezes, só com uns calções, e finalmente matando contrários, segundo o rito dos mesmos índios, e tomando novos nomes como eles, de maneira que não lhes falta mais que comer carne humana, que no mais sua vida é corruptíssima.

Mas não foi só por isso que Anchieta, em O Auto de São Lourenço, demonizou a (boa) relação dos nativos com os franceses. O que estava em jogo era o interesse lusitano de ocupar e colonizar o país. Para os portugueses, a presença francesa nestas paragens tornava-se um estorvo.

A didática moral de José de Anchieta tinha, portanto, um desdobramento político. O seu desempenho nessas selvas e águas de sonho e fúria foi de agente duplo, a serviço da Igreja e da Coroa. E com muita competência, diga-se. Ele foi um missionário obstinado, incansável, que fez o melhor uso possível da comunicação para atingir os seus fins. Hoje, diríamos ter-se havido nessas terras ignotas como um comunicador imbatível. Usou o sermão, a poesia e o teatro como instrumentos de conquista de corações e mentes. Recorreu ao corpo-a-corpo em suas louváveis ações assistencialistas, facilitadas pelo seu conhecimento do tupi-guarani, chegando a escrever uma pequena gramática dessa língua, na qual poetou de forma participante, panfletária, maniqueísta. E com muita criatividade, como prova O Auto de São Lourenço.

E o que é esse seu auto?

A eterna peleja do Bem contra o Mal, santos x pecadores, anjos x demônios, canibais x cristãos, enfim, Deus e o Diabo na Terra do Sol.

O Bem – A fé cristã e/ou a moral e dogmas da Igreja Católica.

O Mal – Os costumes do Novo Mundo, incluindo-se nisso os rituais antropofágicos do velho povo que aqui já estava havia 15 ou 20 mil anos quando os europeus chegaram com sua santa fé, e dispostos a convertê-lo a ela, subjugá-lo e até mesmo eliminá-lo, em caso de disposição em contrário, pois assim estava escrito na bula Inter Coetera, assinada pelo Papa Alexandre VI, em 4 de maio de 1493, na qual outorgava aos descobridores de novas terras em todo o planeta “a salvação das almas, abatendo-se as nações bárbaras e reduzindo-as à fé católica”. Obedecida ao pé da letra pelos conquistadores espanhóis e portugueses, a bula de Alexandre VI significou, para os silvícolas das Américas, um passaporte para o inferno. O terror instalado nos territórios recém-conquistados levou o Papa Paulo III a emitir uma contraordem, em 28 de maio de 1537, quando, na sua bula Universibus Cristi fidelibus, reconheceu os índios como “homens iguais aos outros, com o direito à sua liberdade e a possuir e gozar os seus bens ainda que não estivessem convertidos”. Mas Paulo III estava longe demais dos campos de batalha. Sua mensagem não surtiu o menor efeito.

A prova disso foi a tese apresentada pelo dominicano Juan Ginés de Sepúlveda, na reunião do Concílio de Trento realizada em Valadolid, na Espanha, em 1550, defendendo a servidão natural dos selvagens e a justiça do extermínio deles. Se por um lado a crueza da tese era chocante, a ponto de dividir o mundo católico, por outro não era novidade, pois já vinha sendo aplicada em larga escala. Era a “guerra justa” contra os hereges, ou seja, os índios rebeldes à catequização. A mesma que Anchieta iria defender no Brasil. Sempre que encontrava resistência à sua missão evangelizadora, proclamava que a melhor catequese era a espada e a vara de ferro.

Soldado exemplar da Companhia de Jesus, o Exército de Deus que surgiu na linha de frente da Contra-Reforma para dar combate ao protestantismo “judaizante”, José de Anchieta fez da palavra a sua arma. Em O Auto de São Lourenço ele pôs no inferno os seus personagens indígenas, que em realidade foram guerreiros tupinambás do Rio de Janeiro, e que preferiram morrer de pé, lutando, até o último homem, a se deixar catequizar ou escravizar. A esse respeito, o auto de Anchieta não deixa de ser uma sublimação da ação pelo pensamento, ou, como nos sonhos, a realização inconsciente de um desejo: quem sabe ele teria desejado passar dos bastidores para o palco das batalhas, junto com os soldados que, efetivamente, mandaram para o inferno os rebeldes tupinambás aglutinados na Confederação dos Tamoios, da qual não sobrou um único índio para contar a história, 16 anos antes desse auto ser representado? Nesse dia, o dia do juízo final das tribos confederadas, Anchieta estava lá – por trás das barricadas.

Considerando-se os antecedentes dos personagens, pode-se até deduzir que O Auto de São Lourenço é também a representação simbólica de uma dupla vingança de José de Anchieta. Aqui ele colocou no mesmo saco, quer dizer, no mesmo inferno, os imperadores romanos algozes de São Lourenço e os líderes indígenas que não rezaram pelo catecismo dos jesuítas, numa associação metafórica entre os martírios dos cristãos nas grelhas e os rituais canibalísticos. Uns e outros mereceriam a condenação eterna, pelos seus pecados sem remissão. E que o terror imposto por Deus aos condenados viesse a servir de exemplo para uma platéia de índios escravizados e colonos broncos.

A ficha técnica do auto:

Personagens: Guaxará, rei dos diabos. Aimberê e Saravaia, criados de Guaxará. Taturama, Urubu e Jaguaruçu, companheiros dos diabos. Valeriano e Décio, imperadores romanos. São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro. São Lourenço, padroeiro da aldeia de São Lourenço. E mais: uma velha, um anjo, o Temor de Deus, o Amor de Deus, cativos e acompanhantes.

Sinopse do auto:

Após a cena do martírio de São Lourenço, Guaxará chama Aimberê e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia. São Lourenço a defende, são Sebastião prende os demônios. Um anjo manda-os sufocarem Décio e Valeriano. Quatro companheiros acorrem para auxiliar os demônios. Os imperadores recordam façanhas, quando Aimberê se aproxima, o calor que se desprende dele abrasa os imperadores, que suplicam a morte. O Anjo, o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade, contrição e confiança em são Lourenço. Faz-se o enterro do santo. Meninos índios dançam.

Quem foi cada personagem principal desta história:

São Lourenço, o mártir. Diácono da igreja de Roma pelos anos 250, quando o imperador romano passou a ver no crescimento do cristianismo uma ameaça ao seu trono, mandando fechar e confiscar todos os lugares de culto. Ao ser preso e conduzido ao martírio, o papa Sisto II encarregou Lourenço de distribuir tudo o que tinha aos pobres. Mas o imperador exigiu que ele lhe entregasse todos os tesouros da igreja, dos quais tinha ouvido falar. Lourenço, então, reuniu e apresentou-lhe toda a ralé romana, dizendo: “Eis aqui os nossos tesouros, que nunca diminuem e podem ser encontrados em toda parte”. Por causa disso, foi posto na grelha, no dia 10 de agosto de 258. Enquanto era queimado num braseiro, ainda teve ânimo de fazer uma piada para o carrasco: “Vira-me, que já estou bem assado deste lado”.

Roma dedicou-lhe 34 igrejas, uma honra maior do que as merecidas pelos seus padroeiros, São Pedro e São Paulo. São Lourenço era o padroeiro da aldeia onde o auto foi representado pela primeira vez.

São Sebastião (245 – 288). Natural da cidade de Narvonne, França, educou-se em Milão, terra natal da sua mãe, uma cristã fervorosa. Ao atingir a idade adulta, tornou-se militar, chegando a ser nomeado comandante da guarda pessoal do imperador Deocleciano. Quando descobriram que Sebastião era cristão, condenaram-no a morrer por flechadas. Os arqueiros deram-no por morto, mas seus ferimentos foram curados pela viúva de outro mártir, São Castulo. Ao saber disso, Diocleciano enfureceu-se e ordenou que Sebastião fosse surrado a pauladas até morrer. O seu dia é 20 de janeiro e o seu emblema, uma flecha, motivos que o levaram a tornar-se o padroeiro do Rio de Janeiro. Foi no dia 20 de janeiro de 1567 que os portugueses liquidaram a Confederação dos Tamoios, matando todos os confederados e apossando-se definitivamente da cidade.

Valeriano – Publius Vicinius Valerianus foi o imperador que mandou prender e martirizar São Lourenço.

Décio – Caio Méssius Quintus Valerianus Trajanus, imperador romano de 249 a 251. Foi quem desencadeou a primeira perseguição sistemática aos cristãos, em 250.

Guaxará – Como poderoso chefe indígena de Cabo Frio, participou das lutas da Confederação dos Tamoios. Em 1566, comandando 180 canoas de guerra, deu combate aos portugueses na baía de Guanabara, numa longa batalha naval. Foi assassinado pelos soldados lusitanos, a 13 de julho daquele ano.

Saravaia – Outro grande chefe, também integrante da Confederação dos Tamoios.

Aimberê – Cacique da aldeia de Uruçumirim, cujo território ia da Glória ao Flamengo, no Rio de Janeiro, foi o fundador da Confederação dos Tamoios, entre os anos de 1554 e 1557, unindo todas as tribos inimigas, de São Vicente, no litoral de São Paulo, a Cabo Frio, no litoral fluminense, na maior organização de resistência nativa que o país teve. Sua legenda de grande guerreiro só é superada pela de Cunhambebe, o maior líder indígena dos quinhentos, que foi cortejado por Villegagnon como chefe de Estado e rei do Brasil.

Na primeira grande assembléia dos indígenas confederados, realizada em Ubatuba, no litoral paulista – e que ainda se chamava Yperoig –, Aimberê propôs o nome de Cunhambebe para ser o chefe supremo da Confederação dos Tamoios e foi ovacionado estrondosamente. O grande morubixaba, que se orgulhava de ter nas veias o sangue de mais de 5 mil inimigos, a maioria portugueses, emocionou-se com a aprovação unânime de seu nome. E assumiu o comando dando o seu grito de guerra: “PERÓS!” O que significava: ferozes! E foi aí que a terra tremeu, nas fazendas e engenhos de açúcar dos escravizadores de índios, entre os quais se destacavam Brás Cubas, em Santos e São Vicente, e João Ramalho, por todo o planalto de Piratininga, até onde é hoje a cidade de São Paulo.

Com a morte de Cunhambebe, em 1557, vitimado por uma estranha epidemia levada pelos europeus, Aimberê passou a comandar a Confederação dos Tamoios. E morreu lutando, na batalha final do Rio de Janeiro, em 1567. Essa batalha, aliás, foi insuflada por José de Anchieta, que foi de São Vicente à Bahia, para convencer Mem de Sá, então o governador-geral do Brasil, a liquidar de vez com “a brava e carniceira nação, cujas queixadas ainda estão cheias do sangue dos portugueses”. E foi uma carnificina. Os soldados de Mem de Sá e de seu sobrinho Estácio enlouqueceram com a vitória e avançaram sobre a praça da guerra, cortando as cabeças dos cadáveres e enfiando-as em estacas. Essa praça era uma enorme área, onde estão hoje dois famosos bairros do Rio de Janeiro, o Flamengo e a Glória, a glória das cabeças cortadas. Morreram todos, inclusive uns 30 franceses que haviam aderido ao sistema de vida tribal, entre eles o genro de Aimberê, marido de sua filha Potira, de nome Ernesto, que o sogro chamava de papagaio louro.

José de Anchieta tinha um verdadeiro pavor de Aimberê, que descreveu como “homem alto, seco, de catadura triste e carregada, e mui cruel”.

Encerramos este episódio com um esclarecimento: tamoio nunca foi nome de tribo. Tamoio quer dizer o mais velho da terra (“tamuya”), o mais antigo do lugar. Logo, a Confederação dos Tamoios significava a Confederação dos Nativos.

O Apóstolo do Novo Mundo:

Tido e havido como Apóstolo do Novo Mundo, Santo do Brasil e fundador da literatura brasileira, José de Anchieta nasceu em São Cristóvão de la Laguna, capital de Tenerife, nas ilhas Canárias, em 19 de março de 1534. Em 1551, entrou para o Colégio dos Jesuítas em Coimbra. Por motivos de saúde, mudou-se para o Brasil em 1553. Em 25 de janeiro de 1554, ajudou o padre Manuel da Nóbrega na fundação do Colégio de São Paulo, em São Vicente.

A bem dizer, Anchieta foi o maior embaixador que Portugal teve no Brasil, por todo o século XVI. Seus dotes diplomáticos eram insuperáveis. Tinha uma coragem pessoal e uma autoconfiança surpreendentes, ainda mais levando-se em conta o seu porte físico nada privilegiado. Era capaz de adentrar territórios indígenas sublevados e convencer os chefes mais exaltados de que não era um português igual aos outros, e que não aprovava as atrocidades cometidas pelos seus patrícios. Em 1563 foi incumbido por Mem de Sá de tentar a pacificação dos tamoios, que vinham impondo sucessivas derrotas aos fazendeiros e donos de engenhos numa vasta região conflagrada. Arrastando um Manuel da Nóbrega doente e com os pés em chagas, Anchieta empreendeu uma expedição arriscada a Ubatuba onde, depois de longas conversações, acabou ficando naquela aldeia como refém, enquanto Aimberê, o chefe supremo, negociava com os administradores portugueses de São Vicente e de Piratininga as suas condições para um acordo de paz, sendo a principal delas a libertação de todos os índios em cativeiro. Anchieta, durante a lenta e dramática espera pelo desenrolar das negociações, escreveu nas areias da praia de Ubatuba o seu célebre poema à Virgem (De Beata virgini Dei matre Maria). Quando, finalmente, a paz foi conseguida e ele mandado de volta para casa, garantiu que, se dependesse dos portugueses, o acordo não seria quebrado. Mas foi, um ano depois. Por eles mesmos, os que pediram a paz.

Em 1567, tomou parte ativa na conquista definitiva do Rio de Janeiro, por Mem de Sá, tendo exercido vários cargos administrativo em São Vicente, até 1577. Foi elevado a provincial, na Bahia, em 1578. Da Bahia foi a Pernambuco, voltou a São Vicente e passou a residir no Rio de Janeiro. Indo e vindo de um lado a outro, em 1585 ficou bem doente e deixou o cargo de provincial. Voltou ao Rio em 1586.

O Apóstolo do Novo Mundo viveu 44 anos no Brasil. Morreu no dia 9 de junho de 1597, aos 63 anos, no estado do Espírito Santo, e num lugar chamado Reritiba, que hoje é a cidade de Anchieta. E entrou para a nossa História como o José do Brasil, aquele que o país inteiro espera ver canonizado, para levantar a nossa auto-estima cristã, já que nunca tivemos um santo.

Vai ver, Anchieta jamais o será. Pela simples razão de também haver cometido os seus pecados, como todos nós.
Amém.





sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cineas Santos - Por quê?

Dileto amigo me manda um “belo poema do Drummond”, com alguns comentários adicionais. Até aí, nada de extraordinário: em Teresina, até as pedras sabem que não respiro bem sem a minha cotidiana ração de poesia. Regularmente, leio, edito e divulgo poesia em todos os veículos de que disponho. Uma das maiores tristezas que experimentei na vida foi deixar de editar, mensalmente, o Calendário Poético que, por mais de dez anos, distribuí aos “viciados” em poesia. Com o acesso à internet, passei a enviar, semanalmente, poemas para um seleto punhado de amigo. Para mim, consumir poesia é um hábito salutar. Mas voltemos ao amigo: o “belo poema” que ele me mandou era tão verdadeiro quanto uma nota de três reais. Não me contive: Amigo, agradeço-lhe o carinho da lembrança, mas o Drummond que você me mandou é paraguaio e com prazo de validade vencido.

Um tanto contrafeito, o amigo me fez a seguinte pergunta: “Meu caro mestre, o que levaria alguém a servir-se do nome de um autor conhecido para divulgar o que escreve?”. Como não sou psicólogo nem vidente, não tenho a resposta. As razões poderiam ser as mais diversas. A primeira delas: a consciência da própria desimportância e, consequentemente, a certeza de que ninguém leria as baboseiras que escreve. A segunda: arrogância travestida de humildade. Explico: o impostor acredita que o seu texto é muito bom, primoroso, essencial, mas como o leitor é “burro” e só se interessa por “medalhões”, recorre a um bonde famoso para veicular sua “preciosidade”. Prefiro ficar com algo mais simples, direto: pura e simples falta de vergonha na cara.

Ora, já disse que a internet é a casa da mãe Joana; vou um pouco além: é a cloaca da civilização. Nela, cabe tudo e mais alguma coisa. Hoje, qualquer idiota pode difundir o que bem entender, protegido pelo manto do anonimato. As vítimas desses cretinos são sempre autores famosos: Borges, Drummond, Quintana, Millôr, Veríssimo. Agora, por exemplo, circula na internet, com enorme sucesso, uma crônica atribuída a Luís Fernando Veríssimo sobre o BBB. Entre outras baboseira, o “Veríssimo” afirma: “Dizem que Roma, um dos maiores impérios que o mundo conheceu, teve o seu fim marcado pela depravação dos valores morais do seu povo, principalmente pela banalização do sexo. O BBB 11 é a pura e suprema banalização do sexo”. Imaginem o L. F. Veríssimo, sempre elegante e inteligente, convertendo-se num pregador moralista. O texto é rebarbativo, medíocre e preconceituoso. É realmente digno do BBB. Em nota elegante e discreta, o verdadeiro Veríssimo explica: “Não poderia escrever nada sobre o ‘Big Brother Brasil’, a favor ou contra, porque sou um dos três ou quatro brasileiros que nunca o acompanharam. O pouco que vi do programa, de passagem, zapeando entre canais, só me deixou perplexo: o que afinal atraía tanto as pessoas – além do voyeurismo natural da espécie – numa jaula de gente em exibição?”.

Irmãos e irmãzinhas, sem querer ser pretensioso, deixo aqui uma advertência: quem só lê na internet acabará, mais cedo ou mais tarde, caindo na tentação de escrever bobagens para atribuí-la a um notável. Não digam que não avisei.


terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Luís Pimentel - Rosa-Macabéa-Clarice

Rosa de casa para o trabalho. Do trabalho para casa. Para o fogão, comida feita às pressas, o banho de pingos regrados, a camisola que só possui o seu cheiro, jamais se misturou com o cheiro de um homem. Rosa para o vaso sanitário e o papel higiênico áspero. Do banheiro para o quarto. Do vaso para o colchão irregular. E ao fundo da noite. Ao calor que o ventilador de hélice quebrada não dá conta.

Rosa veio do sertão. De qual? De tantos. De casa, no quarto alugado na Tijuca, para o trabalho na Rua do Carmo, no Centro. Rosa-Macabéa no ônibus. No metrô. Queimando o corpo no calor do corpo que se esfrega no seu; é assim, vagão lotado. Calor de labaredas que vão com ela, presas às costelas. Alívio só no chuveiro pingapingando na testa.

“Você me lembra uma personagem de Clarice. Da hora da estrela”. Cantada mais besta.
Depois é se estirar na cama, esfregando a camisola entre as pernas, até não suportar mais o cheiro. Do trabalho para casa. Da noite para o dia. Rosa não conheceu Macabéa, nem Clarice. Já perdeu a hora, não viu a estrela.

De manhã bem cedo, o café preto quentinho. Diz para si mesma que um dia ainda vai prová-lo na mistura com veneno de rato.



domingo, 6 de fevereiro de 2011

Antonio Torres - Convidada a continuar

Continuando a republicação do livro de crônicas Sobre Pessoas, de Antonio Torres.



Um dia uma beldade paulistana baixou no Rio com um único propósito: conhecer pessoalmente o célebre senhor Carlos Drummond de Andrade. A moça bonita não era nenhuma estudante universitária em busca de ajuda para uma tese. Já vinha sendo festejada como uma esplêndida ficcionista, dona de um estilo de toque sutil e fascinante. O poeta naturalmente conhecia-lhe os dotes artísticos, pois a recebeu em sua casa, cortesmente. Mas perturbou-se diante daquela beleza que só devia nascer a cada cem anos. Saudou-a com uma frase lapidar: "Com estas lindas pernas, você não precisa escrever."

Lygia Fagundes Telles nunca mais iria se esquecer disso. Anos e anos depois daquele encontro com Drummond, e já tendo atingido o grau máximo na literatura nacional, ela iria refletir sobre as condições do escritor brasileiro, chegando a uma conclusão desoladora: "Todos os dias somos convidados a nos retirar."

Agora Lygia adentra a sala Vip da Bienal do Livro iluminando-a com o brilho de seus olhos, de seu sorriso, de seu belo rosto. O francês Jean-Christophe Rufin, o angolano José Eduardo Agualusa e este velho índio das letras abrem a roda, para lhe dar passagem, sob aplausos. Logo atrás dela chegam a Lúcia e o Luís Fernando Veríssimo. A doce Lúcia a abraça, ternamente, fortemente, dizendo: "Você é a mais bonita, a mais... a mais... a mais tudo!"

Então voltei a olhar para a Lygia. E o que vi foi o rosto de uma mulher feliz. Não só por ter ganhado o Prêmio Camões, o de maior peso da língua portuguesa, em nome, e o mais expressivo em números (100 mil euros), mas pela repercussão que lhe foi extremamente favorável. Um convite definitivo para continuar. Já havia recebido outros, é verdade. As incontáveis reedições dos seus livros; traduções around the world; o seu ingresso na Academia Brasileira de Letras; premiações variadas, inclusive da Biblioteca Nacional; o carinho dos seus leitores em toda parte. Sim, querida, não se retire. Ainda existe justiça neste mundo, por mais que tudo leve a crer no contrário. Agora só falta a Academia Sueca me dar total razão. E com os tardios pedidos de desculpas por nunca ter se lembrado de Jorge Amado, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa e tantos outros brasileiros nobilizáveis que já se foram. Salve, rainha!