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quinta-feira, 11 de julho de 2024

Leva eu, minha saudade!


Em 1963 eu morava na roça e caí da jega do meu irmão, bati o cotovelo numa pedra e o meu braço direito dobrou. Não havia médico na cidade, só Zé Botica, o botiqueiro que se fazia de farmacêutico encanador de braço das crianças que caiam de jegue.

A minha mãe chamou o meu irmão e, na mesma jega que me derrubou, ele foi atrás do botiqueiro. Voltou, meia hora depois, trazendo o dublê de farmacêutico montado em outra jega, mais bêbado do que um gambá.
Ele encanou meu braço de qualquer jeito, fez uma tala com dois pedaços de vara, amarrou com uma corda de laçar boi e foi embora. Até chegar na jega, caiu três vezes.
Eu tinha um tio, por parte de pai, que era beato, chamado Ascendino. Minha mãe mandou buscá-lo para puxar umas rezas analgésicas ou anestésicas, pois eu me contorcia de dor.
Depois de rezar umas rezas diferentes, tio Ascendino sentou-se ao meu lado e começou a contar umas historias, criadas à luz de candeeiro, pois ele não conhecia Monteiro Lobato nem outro escritor de criança. Depois passou a cantar umas músicas e eu fiquei vidrado em uma que dizia "e leva eu, minha saudade".
- Tio, canta de novo aquela que diz que tem medo de cair na ladeira!
E ele cantou, cantou, e eu dormi. Dormi, dormi, dormi, e quando acordei ele estava dormindo dentro de um caixão, feito pelo meu pai. Foi a primeira vez que vi um morto de perto e na hora nem me veio à mente que havia perdido para sempre o único tio que me deu uma noite de afeto e carinho. Os outros tios eram bons...mas não sabiam cantar.
Não sei onde esse meu tio aprendeu essa música, maior sucesso de Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano, gravada em 1962, um ano antes, pois lá no Junco não havia rádio.
Só podia ser coisa de anjo. Se o tempo apagou da minha memória o rosto de tio Ascendino, preservou nos meus tímpanos a suavidade da sua voz cantando "Ô, leva eu, minha saudade / que eu também quero ir, minha saudade / quando chego na ladeira tenho medo de cair... Ô, leva eu!"
Minha Saudade.



terça-feira, 25 de junho de 2024

O FORRÓ DE MANÉ VITO

Não me avisaram que havia um rio no meio do caminho. Embora soubesse nadar com destreza, desisti do meu intento.  Nenhuma festa valia molhar meu sapato novo. Meus amigos me convenceram a tirar os sapatos e atravessar caminhando. O rio era só um córrego, mal batia água no joelho.

Fui.

O risca-faca estava animado ao som da sanfona e da zabumba. O noivo e a noiva dançavam alegres e satisfeitos. O padre bebericava uma dose de milome e até parecia casamento de verdade.

- É de verdade! - me disse um convidado.

- E meu amigo Eliseu resolveu se casar numa visgueira?

- É o único lugar que se pode dançar.

Puxei minha namorada pelo braço e fomos dançar o xote. Mal ensaiamos uns passos, fomos interrompidos por um senhor de bigode a la gaúcho. Em vez de três facas, portava um facão.

- Quero a vorta!

- Hein?

- A vorta!

- Mas eu não tenho volta nenhuma! Nem lhe conheço, cara!

- Então vamos poitá!

- Tá me achando com cara de viado! Eu sou Caçarola, irmão de Tombrega! Vá buscar mais facão que um só não dá não!

O falso gaúcho saiu furibundo, xingando até a minha décima quinta geração. O meu amigo, o noivo, se aproximou e esclareceu:

- Caçarola, se acalme. A volta é dançar com a sua parceira. E você dança com a dele. É costume daqui.

- E poitá? É fazer troca-troca?

- Não. Poitá é conversar na porta.  

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

O boto pedófilo

 E a mocinha ribeirinha, lá do Norte, mostra à mãe o que já não pode mais esconder. Inocente, diz displicente:

- Foi o boto, minha mãe!

A mãe engole saliva, engasga um palavrão e apenas sorri para a filha, pois sabe de encantamentos e feitiços do amor. Sua filha também era filha do boto.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

CABOCO SETENTA

O meu avô materno chamava o meu irmão mais velho de "Cabôco Setenta". Um dia lhe perguntei:

- O que é isso, padrinho?

- Ele vale por setenta dos homens daqui! - disse orgulhoso, caneca de café à mão.

- E eu, padrinho?

Ele me olhou meio decepcionado e disse:

- Você vai ser o sessenta e nove.

- Vou valer por sessenta e nove?

- Não!

- E então?...

- Quando você crescer, saberá.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O ventinho amigo

Quando eu era adolescente pelas ruas de Alagoinhas, em vez de caçar Pókemon, eu caçava aquele ventinho amigo que arribava a saia das meninas em frente do convento das freiras. Um dia, uma garota que o vento pegou de mãos ocupadas com o material escolar, me disse irritada depois de se recompor:

- Besta! Viu a tela, mas não viu o filme!
- Ah! Mas o resto fica mais fácil de imaginar - respondi.
- Seu tarado!
- Tarado é o vento. Eu sou só testemunha.
- E por que não fechou os olhos como todo menino educado?
- Porque em vez de tarado, você ia me chamar de vi...
- Pare!
- Tou parado.
- Seja gentil, segure meus livros!
Segurei e em seguida sangrei pelo nariz.
- Você me bateu!
- Você apanhou porque mereceu.
- Mamãe!
- Desse tamanho e ainda chama por mamãe!
- Não. A minha mãe era que dizia isso, de apanhar por merecer.
E entre réplicas e tréplicas, namoramos um semestre inteiro. Eram tempos de se engarrafar sonhos sem precisar de Mc Donald feliz.

domingo, 15 de outubro de 2023

Associação criminosa para cometer crimes, segundo os visionários novelísticos

     O Ouro, a Prata, o Cobre e o Níquel se associaram ao crime organizado, sequestraram o Oxigênio e ameaçaram destruir a família Ferroso lançando bombas letais de O2. Desbaratada a quadrilha metaleira numa fantástica ação batizada de “Operação Ferrugem”pela PF, sob o comando da delegada federal Helô e investigação conduzida pelos repórteres do Fantástico, o único elemento a ser preso sem direito a sursis nem à Lei Fleury foi o famigerado Carbono, que não fazia parte do Grupo e tampouco se inseria na história. Motivo alegado para a prisão: foi o único preto que a diligente delegada encontrou na Tabela Periódica.

domingo, 3 de setembro de 2023

A arte da sedução

Ele vê uma mulher perfeita desfilando pela calçada: corpo escultural, sensualidade de ninfa e, quando ela deixa cair o lenço dois passos adiante, ele diz:

- Ei... fofinha!

Ela se abaixa bruscamente, recolhe o lenço à bolsa, vira para trás e diz:

- Fofinha é a puta que lhe pariu!

E segue em frente com seu andar provocante em busca de uma alma que saiba a diferença entre um corpo de mulher e uma almofada.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Festa no Sertão

Milagre não foi eu ter nascido. Milagre foi ter sobrevivido. Depois de uma fileira de filhos a consumir sua farinha de mandioca, teria passado despercebido se ele, o meu pai, não tivesse pregado o olho em mim no dia que nasci. Chapéu de palha na cabeça, cigarro de palha nos lábios, baforou um palavreado de admiração e contentamento:

- Mulher, se esse moleque tivesse nascido mais feio a gente podia matar que era monstro!
longe, na cajazeira, o riso estridente das cigarras abafou meu choro.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Surpresa!

 

- Cara, nem te conto!
- Conta, vai!...
- Ontem eu saí com uma mina espetacular. Que corpo! Que papo, que sorriso de endoidar! Lá pras tantas, pintou o clima e fomos para um motel. Aí, quando chegamos lá, a coisa desandou.
- O que aconteceu?
- Descobri que ela era jornalista.
- E o que é que tem isso?
- Cara, você não sabe que sou diabético!

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Um conto de fada sem princesa

Seu nome era Maria da Luz e numa manhã de conspiração de Santo Antonio conheceu Tonho de Lisboa com quem se casou uma ano depois. Tiveram dois filhos, um casal. O menino foi batizado Tonho de Lisboa Júnior; a menina, Maria da Luz Júnia. Seria uma daquelas histórias que terminam no "e foram felizes para sempre", mas quem consegue ser feliz carregando uns nomes desses?

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Fábula moderna com moral da história

Era uma vez, numa história sem rei e sem grilos falantes, um cidadão chegou na casa de um compadre para uma visita de dois dias e se estabeleceu a longo prazo. Foi ficando, ficando, ficando, na maior cara de pau, e o compadre se incomodando, a mulher do compadre se chateando, os filhos do compadre reclamando da falta de espaço - até o cachorro do compadre parou de balançar o rabo - mas ninguém tinha coragem de mandar o cidadão embora.

Em uma manhã abençoada o compadre dono da casa se lembrou
de que, quando criança, leu uma história na escola que tinha um enredo parecido com o seu dilema: um sujeito se aboletara na casa de um amigo e também foi ficando, ficando, e o amigo um dia fingiu que estava dormindo e começou a falar impropérios contra o boca livre. Mas como toda fábula tem uma função educativa, ele não conseguia se lembrar justamente da tal “moral da história".
Assim, o anfitrião dessa minha história passou a escrever indiretas ao amigo, esperando que um dia ele se desse conta do quanto estava sendo inconveniente e ganhasse os quintos do inferno. Porém, como na moral da fábula (apesar das curtidas dos amigos e dos mais diversos comentários, inclusive do próprio compadre invasor de domicílio), não se pode levar a sério indiretas ditas no Facebook.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A quadrilha periódica

O Ouro, a Prata, o Cobre e o Níquel se associaram ao crime organizado, sequestraram o Oxigênio e ameaçaram destruir a família Ferroso lançando bombas letais de O2. Desbaratada a quadrilha metaleira numa fantástica ação batizada de “Operação Ferrugem”pela PF, sob o comando da delegada federal Helô e investigação conduzida pelos repórteres do Fantástico, o único elemento a ser preso sem direito a sursis nem à Lei Fleury foi o famigerado Carbono, que não fazia parte do Grupo e tampouco se inseria na história. Motivo alegado para a prisão: foi o único preto que a diligente delegada encontrou na Tabela Periódica.

domingo, 16 de agosto de 2020

Fatalidade

 Nem só de Covid 19 se morre hoje em dia:

- Coitado do nosso amigo Alceu, morreu de catarata!
- E catarata mata?
- A do Iguaçu, sim. Despencou lá de cima.

Uma short history de uma short history

 Quando eu fiz quinze anos a minha mãe me perguntou:

- Ô, menino malino, o que você prefere como presente de aniversário: uma viagem pra Disney ou uma noite no brega?
- Ôxente, maínha, que pergunta mais besta! Que goitana vou fazer na Disney?

A difícil missão de se ser coroinha

 

Caminhar pelas ruas de Alagoinhas é transitar na minha memória de infância e adolescência. Nessa igreja eu fui expulso da ordem dos coroinhas por um motivo banal: fui flagrado pulando o muro do convento para roubar laranja no pomar. E o padre franciscano ainda me disse:

- Roubar laranja não é um pecado tão grave assim que não possa ser perdoado com uns cascudos. Beber o vinho canônico escondido também não. Agora, beber o vinho e comer a hóstia consagrada como tira-gosto, isso é imperdoável!

E o sacrista ainda me encanou para a minha mãe e como castigo passei seis meses proibido de ir pro brega.

Não se faz mais cavalheiro como antigamente

Ele vê uma mulher perfeita desfilando pela calçada: corpo escultural, sensualidade de ninfa e quando ela deixa cair o lenço dois passos adiante, ele diz:

- Ei... fofinha!

Ela se abaixa bruscamente, recolhe o lenço à bolsa, vira para trás e explode:

- Fofinha é a puta que lhe pariu!

E segue em frente com seu andar provocante em busca de uma alma que saiba a diferença entre um corpo de mulher e uma almofada.

Ato de confissão

"Eu pecador, me confesso ao padre..."

Como confessar ao padre certas iniquidades que fazia trancado no banheiro e não confessava nem sob tortura de minha mãe? Como confessar a um estranho, mesmo se dizendo representante de Deus, que havia segundas intenções quando levava a jega para comer milho no barranco? Ora, se Deus é onisciente e onipresente, então para que confessar a um dito Seu representante tudo aquilo que Ele já sabia?

E foi com esses pensamentos que me ajoelhei no confessionário no ato da primeira comunhão. E falei daquilo que devia falar: da minha mãe que solava meu lombo com o cinto do meu pai por causa do arengueiro do meu irmão mais novo; dos cascudos que levava do meu irmão mais velho porque não me submetia a ser seu escravo; do pão que o Diabo amassou que eu tinha que comer todo santo dia.

Se segurava vela, apanhava do namorado da minha irmã; se relaxava, apanhava da minha mãe. Era uma vida sem muitas opções. Não sei se o padre entendeu, não sei se Deus me perdoou. Sei apenas que levei uma surra memorável da minha mãe para não desdenhar das coisas sagradas e mastigar a hóstia consagrada como se estivesse comendo um sanduíche da McDonald’s. Não sei de onde ela tirou essa ideia se naqueles tempos não havia McDonald's.

Ai se ela descobre que o catecismo que eu lia era o do Zéfiro!

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Medo ou respeito?

O medo na simplicidade ou a simplicidade do medo. Ou, como dizia o meu pai, quem não deve, não treme.
O meu irmão Nininho era supervisor do Censo lá pras bandas do Junco. Um dia ele resolveu passear nas roças para saber se os recenseadores estavam fazendo o trabalho direito. Na primeira casa que bateu, atendeu uma senhora, cigarro de palha nos lábios:
- Bom dia, minha senhora. Seu marido está?
- Quem deseja falá cum ele?
- Diga que é Nininho, sou supervisor do Censo do IBGE e queria fazer umas perguntas a ele.

A mulher jogou o cigarro no chão, entrou apressada, pulou pela janela da cozinha e saiu correndo para roça, gritando:
- Se esconde, Bié, que o ôme do governo veio lhe prendê!


Uma escolha difícil

Quando eu fiz quinze anos a minha mãe me perguntou:
- Ô, menino malino, o que você prefere como presente de aniversário: uma viagem pra Disney ou uma noite no brega?
- Ôxente, maínha, que pergunta mais besta! Que goitana vou fazer na Disney?

Sem sinal

A pandemia, além de consumir a nossa saúde, engoliu o sinal de celular. Em alguns lugares nem subindo em coqueiro a gente consegue uns traços. Precisando fazer uma ligação urgente no centro da cidade, perguntei a um guarda onde havia sinal forte de celular. Ele me olhou incrédulo e respondeu:
- No presídio!