sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Candidato Adão



Que graça tinha o Paraíso afinal? Viver assim, sem ouvir a Voz do Brasil, sem assistir a “As Pegadinhas do Faustão” ou ver a Mulher Melancia pelada na Playboy, tinha graça?

Adão, apesar da beleza sensual de Eva, vivia triste e angustiado, em graves crises existenciais, em múltiplos conflitos interiores, questionando o ser ou não ser filho da macaca e, por isso, vivia azucrinando o juízo do seu psicanalista. Sentia um imenso vazio por não ter uma sogra e, mais ainda, Deus lhe dera uma mulher em vez de uma caixa de cerveja.

O Todo-Poderoso, cansado da anarquia reinante em seus domínios, convocou eleição direta para eleger os constituintes que iriam fazer a primeira Constituição do Paraíso, um código de conduta para a macacada, leãozada, toda bicharada e os seus dois rebentos feitos à sua imagem e semelhança. Era hora de botar ordem na casa: elegeria também um Presidente ao qual todos se reportariam e deveriam obediência.

Adão se candidatou a Presidente. Aconselhado pelos marqueteiros, andou de jegue, comeu buchada de bode e desfilou vestindo camisa do Corinthians. Eva candidatou-se à Constituinte, contrariando o Todo-Poderoso, que achava a sua segunda criação humana um tanto feminista, de idéias independentes e subversivas. Fatalmente poria o Paraíso em Suprema Revolução.

Nos comícios, Adão descobriu que tinha talento para a política e esperava contar, também, com o fator sorte. Nem só de talento sobrevive o político; mais do que tudo, precisa de uma sorte madrinha.

Prometeu mundos e fundos, prometeu o Paraíso, defendeu o parlamentarismo, reforma agrária, distribuição de renda e total proteção aos descamisados. Em várias ocasiões apareceu abraçado ao Frei Damião e, para gáudio da macacada, seu último comício fora animado pela banda Chiclete com Banana.

Porém, como diz o ditado, “de urna eleitoral, cabeça de juiz e de técnico da seleção brasileira ninguém sabe o que é que vem’, Adão foi fragorosamente derrotado, apesar de ser o único eleitor votante. Eva não votava. Naquele tempo lugar de mulher era na cozinha.

- Houve fraude! – murmurou revoltado o primogênito de Deus – Bem que me disseram para não confiar nessas urnas eletrônicas brasileiras!

Com dívidas de campanha acumuladas até o pescoço, devendo a Deus e ao mundo, com os empresários e diretores de bancos estaduais em seu encalço, ele não via outra saída senão o suicídio. Eva, que também não fora eleita constituinte, se sentia aliviada por não ter que presidir as ações sociais do Governo como a Primeira-Dama do Paraíso. Vendo a angústia e o abatimento do marido, sentiu uma imensa pena fluir sob seus seios ainda virgens. Deitou-o em seu colo, alisou a sua cabeleira e o induziu a procurar Deus e exigir uns três ministérios, sob ameaça de instituir um governo paralelo.

Mais tarde, tarde da noite, em uma reunião secreta com os seus candidatos a ministros, Adão comeu uma maçã oferecida pela serpente. Comeu duas. Comeu três. Bebeu vinho do Porto e tomou duas talagadas de Conhaque de Alcatrão de São João da Barra. Bêbado, matou a cobra e mostrou o pau a Eva. Ela, dengosa, melosa, derretida, no cio, arfando no peito um grito incontido de “É hoje! É hoje!”, se aproximou naquele estado em que, se paredes houvesse, diria: “Tô subindo pelas paredes!” e Adão, metido a gostoso, precavido, quando Eva tocou seu corpo com suas mãos delicadas, saiu de banda e exigiu:

- Só se for de camisinha, meu bem!

A macacada, que a tudo assistia em silêncio escondida entre a folhagem, ensaiou um coro estrondoso que retumbou Paraíso adentro:

- Bicha! Bicha! Bicha!

Eva, depois de muitas considerações a respeito, decidiu partir para o adultério com um gorila assanhado que vivia rondando o seu terreiro, dizendo-lhe gracinhas e chamando-lhe de gostosa. Na primeira vez fez “tchan!” “Quem não tem Adão caça com macaco!”, se justificou. Na segunda fez “tchan-tchan!” “Quem não tem tu, vai tu mesmo!”, disse. Na terceira vez... bem, na terceira vez a Johnson & Johnson havia inventado a camisinha e Eva pegou Adão e... “tchan-tchan-tchan-tchan!...”

Moral da história: Se é que gorila é macaco, então não há o que se discutir sobre a origem do homem.


quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Cineas Santos - Reinações de um violeiro

De Pedro Costa e Luís Carlos



Seu Liberato era um sertanejo atípico: não caçava, não pescava, não maltratava animais e tinha pavor a queimadas. Tratava a terra como fêmea por sabê-la grávida de vidas. Era exato e preciso como a palavra não. Avesso a manifestações ruidosas, nunca o vi colérico ou eufórico. Sua vida era balizada pelas chuvas e suas aspirações não excediam os limites de sua gleba. Sabia ler os sinais da chuva na agitação das formigas, na floração dos mandacarus, na posição do ninho do João-bobo. Um homem que cabia em si, perfeitamente integrado ao seu chão. Não fazia versos, não tocava viola, não cantava chulas nem loas. Se bem me lembro, conhecia apenas uma cantiga: “O cabelo de meu bem tem areia/tem areia, tem areia, vou tirar/cabelo de meu bem tem areia/tem areia, só tiro se ela mandar”. Era temente a Deus, mas avesso cultos de qualquer natureza. Certa feita, quando o convidaram para uma quermesse, sentenciou: “Homem que segura pau de andor ou carrega viola não sustenta a família”.

Homem de rasas sabenças, seu Liberato não viveu o bastante para perceber o quanto estava enganado. Hoje, religião é o mais rentável dos negócios e os violeiros deixaram os terreiros e as latadas e conquistaram a ribalta. É certo que ainda existem os que gaguejam versos estropiados nas feiras dos sertões, mas os mais ladinos são tratados como estrelas. Entre nós, por exemplo, existe um certo Pedro Costa que, segundo o mestre Paulo Nunes, se não houver tropeços, chegará ao Vaticano. Natural de Alto Longá, Pedro descobriu, muito cedo, que puxar cobra para os pés no rabo de uma enxada não tinha futuro. Trocou a enxada pela viola e rumou pra capital. Dublê de cantador, poeta, ator e empresário, Pedro Costa criou a Fundação Nordestina do Cordel (FUNCOR), passou a editar a revista “De repente” e folhetos à mancheia. Autor de mais de 300 folhetos sobre temas diversos, professor de cordel nas escolas de Teresina, Pedro acaba de marcar mais um tento: construiu a sede da FUNCOR, no Parque Itararé, com sala para projeção de filmes, biblioteca aberta ao público e estúdio de gravação.

Enquanto alguns companheiros de ofício queixam-se, pedem ou esperam uma “ajudinha” do poder público, Pedro Costa, com a gana de um sem-terra, trabalha, avança, abre novos espaços e confirma a máxima dos empreendedores: “só se estabelece quem tem competência”. Tem razão o poeta medíocre quando canta: “Pedro Costa, com esse jeito/ de arigó e matuto/ é uma réplica do João Grilo/esperto, ladino, astuto/ só aposta pra ganhar/ conhece os paus que dão fruto”. 

Longa vida ao Pedro, um cidadão que, com talento e trabalho, honra e dignifica a cultura popular do Piauí.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Antonio Torres - Lisboa rima com Pessoa


"Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem disfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular e multicolorida massa de casas que constitui Lisboa”. É assim que Fernando Pessoa começa o guia da cidade que ele chamava de seu lar, e onde se sentia fincado no chão, “senão como uma raiz pelo menos como um poste”. Intitulado O que o turista deve ver, esse guia permaneceu desconhecido durante décadas, até ser encontrado, em 1987, dentro de uma arca com mais de 27 mil documentos pessoanos, que estavam sendo pesquisados em função das comemorações do centenário do poeta, no ano seguinte. O achado foi “um grande e inesperado prazer”, escreveu a professora Teresa Rita Lopes no prefácio ao guia, afinal publicado em 1992, e que, ela esclarece, não é curiosidade avulsa, mera resposta a uma ocasional solicitação, pois fazia parte de um vasto plano de Pessoa. Por volta de 1919, ele decidira escrever, com fervor patriótico, contra o que classificava de “descategorização europeia” e “descategorização civilizacional” - de Portugal, pois, pois.

Portanto, vejamos a velha cidade, cheia de encanto e beleza, através do olhar amoroso de quem se dizia “transeunte de corpo e alma destas ruas baixas que vão dar no Tejo”. Mas antes de seguirmos seus passos de flâneur pela Baixa, a planície na qual desemboca a Avenida da Liberdade, e se assenta o centro de Lisboa, com seus históricos logradouros (Restauradores, Rossio, Chiado, as ruas Augusta, do Ouro e da Prata, do Carmo, Garrett, a Praça do Comércio), parando aqui e ali para ver o tempo passar às mesas de cafés lendários como os do Cais do Sodré, o Nicola, A Brasileira, o Martinho da Arcada (onde Pessoa fazia ponto); ou de nos aventurarmos pelo clássico roteiro que inclui o Padrão dos Descobrimentos, Castelo de São Jorge, passando pela Catedral, de construção parcialmente românica, e subindo a Rua da Saudade, onde morou outro grande poeta pós-Pessoa, chamado Alexandre O’Neill, sem esquecermos o Mosteiro dos Jerônimos, o Museu de Arte Antiga, e os de Artes Decorativas, Arqueologia e de Etnografia, da Marinha, dos coches, da Fundação Gulbenkian, das casas antigas, parte delas decoradas de azulejos - pois antes de tudo isso façamos um breve passeio pela já longa história da cidade.

No princípio Lisboa era de origem fenícia. Chamava-se Olissipo, e desenvolveu-se graças à atividade comercial. Ocupada pelos mouros em 716 d.C, foi reconquistada em 1147. Tornou-se capital de Portugal no século XIII. Viveu seu apogeu a partir da era das grandes navegações, na virada do século XV para o XVI, e que resultaram em descobertas de terras e gentes em praticamente todos os continentes, quando a língua portuguesa se firmou como veículo de expressão de um novo reino, a se espraiar por mares nunca dantes navegados na voz de intrépidos marinheiros, que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487, e descobriram o Brasil em 1500. As aventuras marítimas portuguesas tiveram o seu coroamento com a publicação, em 1575, do monumental Os Lusíadas, de Luís de Camões, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu - como soldado em Ceuta e pelos quinze anos de guerras na Índia.

  Mas, enquanto o mundo girava e a Lusitana rodava, colhendo os louros de suas conquistas, Lisboa era parcialmente destruída no devastador terremoto de 1755. Reconstruída e embelezada pelo Marquês de Pombal, viria, num preito de gratidão, a dar-lhe o nome a uma das suas praças mais importantes, surgida naquela reconstrução.  

Na virada da História, em tempos modernos, Lisboa iria se postar à beira do cais, com um olhar esfíngico e fatal, a fitar o futuro do passado, como se esperasse avistar os navios que desapareceram na fronteira da nostalgia, ou divisar através da cerração um vulto baço, que volta. Ícone do Modernismo lisboeta, Fernando Pessoa fez-se por vezes o intérprete dos sentimentos passadistas lusitanos, a evocar suas lendas heróicas, em poemas de louvor a navegantes e conquistadores como Vasco da Gama e Dom Sebastião, o rei desaparecido em África na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. O rei falhado, que deixou um império na saudade, tornou-se o símbolo de um passado que não volta, por mais desejado que seja o seu retorno. Foram-se as navegações, ficaram as recordações: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram sem casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”).

 Na hora de mostrar a cidade aos turistas, o seu tom é outro: “Para o viajante que chega por mar, Lisboa, vista assim de longe, ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima da massa das casas, como arautos distantes deste delicioso lugar, desta abençoada região”.

Chegando de navio – continua ele -, o espanto do turista começa na entrada da barra. Depois de passar o farol do Bugio, na embocadura do rio Tejo, lhe aparece a Torre de Belém, “como exemplar magnífico da arquitetura militar do século XVI, em estilo romano-gótico-mourisco”.


 Hoje, o poeta teria que recorrer aos seus célebres heterônimos para recepcionar os turistas que chegam de avião, de trem e de carro. Aliás, as auto-estradas do país dão a impressão de terem sido construídas para produções hollyhoodianas, em tempos de categorização européia geral, ó pá!

 E mesmo que essa categorização civilizacional o fizesse, agora, se sentir um fantasma a errar em salas de recordações, com certeza ele haveria de se rejubilar, ao ler estas palavras da professora Teresa Rita Lopes: “Talvez só hoje Lisboa se tenha tornado o lar de Pessoa. De tal forma que é impossível percorrer certos sítios, certas ruas, sem sentir ao nosso lado os seus passos esvoaçantes”.