segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Nem todo fim é the end




– Não há nada mais a se dizer, a não ser adeus! Aqui nossos caminhos se separam e, para a nossa felicidade, é bom que não voltem a se cruzar.

Assim sentenciou Carmesita, sem emoção nem compaixão. Inflexível e seca, sem chances para recursos ou apelação.  Impessoal, como se falasse ao vento.

Não era um rompimento qualquer, de paixões platônicas ou amores transitórios. Havia uma história, com início, meio e, agora, o fim. O desenredo de um relacionamento apaixonado, vibrante, cujo “adeus” nunca fora cogitado. Mas nada dura para sempre, nem mesmo os amores eternos.

– Eterna é a areia porque não padece de sentimentos – falou um amigo quando ele desafogava o peito numa mesa de bar – As mulheres são assim mesmo: imprevisíveis. Hoje nos amam como se fôssemos o único; amanhã nos desprezam na mesma intensidade, sem rancores nem pudores. Isso quando não depenam nossa conta bancária. Ah! As mulheres...
– São umas vacas, sem sentimentos! Fingem-se boazinhas até nos envolver até o pescoço nas teias sinistras da paixão e depois vão embora como se nada tivesse acontecido. Vacas!
– Garçom, mais uma rodada de cachaça! Meu amigo aqui precisa afogar suas mágoas num copo de aguardente. Vou de carona, solidário. Aproveita e traz duas lingüiças fritas.
– Foram três anos juntos. Falávamos por telepatia, de tão envolvido que estávamos. Ela dizia me amar para sempre, que nem a morte nos separaria, pois morreria também caso eu fosse primeiro pra terra dos pés juntos. Prometia ressuscitar Shakespeare numa tragédia tupiniquim.
– De certa forma ela cumpriu a promessa...
– Como assim?
– “Há mais mistérios entre as mulheres do que sonha a nossa vã filosofia”.
– Nada. As vagabundas são previsíveis. Eu é que não soube ler nas entrelinhas do nosso dia a dia. Deixei me enrolar na conversa mole, carinha de santa, jeitinho de anjo e eis o resultado: estou aos frangalhos por dentro, à beira de um colapso emocional. Como dissolver essa sensação de perda moral e espiritual? Como encarar a cama sem o ronco daquela ingrata?
– Dê tempo ao tempo. Lembra-se daquele presidente que corria com a camisa escrita “O Tempo é o Senhor da Razão”?  Então, tudo se ajeita com o passar do tempo, menos a morte, claro. Por falar nisso, nada de fazer besteira, viu? Nenhuma mulher vale a vida de um homem.
– Me lembrei de Serafim. Coitado de Serafim! A esta altura até seus ossos já serviram de banquete aos vermes.
– “In pulverem reverteria”.
– Como?
– “Ao pó voltarás”. Latim. Está escrito na entrada do cemitério da minha cidade. E é o que resta de Serafim: pó. Não pensei que ele fosse tão fraco de espírito. Bastou a mulher ameaçar se separar, pra meter um tiro na cabeça, como se isso resolvesse alguma coisa. Queria o quê? Só vivia na esbórnia, passeando com as vagabundas pra cima e pra baixo enquanto a mulher ralava o dia todo. Mais dia, menos dia, ela iria ficar sabendo da sua vida de putanheiro.  
– E ainda deixou duas vagabundas grávidas pra dividir a herança.
– Acho que essa parte chocou mais a viúva do que o suicídio em si.
– Os suicidas vão pro Céu?
– Como é que vou saber? Nunca me suicidei. Mas aposto que a mulher do Serafim reza todo dia pra ele não ir. Ela quer que ele fique vagando por aí, vendo-a dar o troco, saindo com um e com outro todos os dias. Era tão recatada e virtuosa e agora liberou geral. Como diz o provérbio francês: “A quelque chose malheur est bon”.
– Traduza.
– “A desgraça serve para alguma coisa”. É o nosso “há males que vêm pra bem”.
– Ou: “morre o cavalo a bem do urubu”. Garçom, outra rodada! Vamos deixar os mortos de lado que continuamos vivos. Quero dizer: você. Eu ainda estou na dúvida, posto que a chama que mantinha acesa a minha vontade de viver se apagou quando a ingrata me disse adeus.
– Para com isso, cara! Mulher é como ônibus: você perde um, logo vem outro.
– Ou como alça de caixão: um larga e outro põe a mão. Por falar em caixão: quanto custa o enterro de um indigente?
– Temos que perguntar ao prefeito... Mas por que você quer saber?
– Por nada. Só curiosidade. Os ricos gastam tanto em enterros pomposos e no fim, ricos e pobres, se encontram no mesmo buraco. Está com dinheiro aí pra pagar a conta? Estou a zero.
– Fique frio. Vamos pro puteiro? As putas amam melhor quando pegam um cara mal resolvido sentimentalmente. Nesse amar transitório, elas querem garantia de estabilidade. Ou seja: se aproveitam das nossas carências afetivas pra nos engabelar emocionalmente. Assim nos enredam e acabamos nos casando por puro arranjo sentimental. Mas há uma grande vantagem nesse tipo de casamento: elas podem não nos amar, mas são fiéis para sempre.
– Se eu fosse corno ia pra um pagode. Mas acho que não é o meu caso. Tenho um tio, bem situado na vida, que se casou sete vezes. Sete. Das sete mulheres, seis eram da vida, putonas mesmo. O mais incrível é que a única que botou chifre nele foi justamente a que não era puta e se passava por santa, comendo hóstia toda semana.
– Isso é comum. Desses meus trinta anos, quinze vivi perdido nos bregas da vida. E a única doença venérea que peguei foi da namorada, uma mocinha de família quase perfeita. Garçom, mais duas doses de aguardente!  E a conta!   
– Vou tirar a água do joelho.

Levantou-se cambaleante. O álcool subiu à cabeça, mas não com intensidade suficiente para ofuscar seu sentimento de perda, sua sensação de abandono. Carmesita foi tudo na sua vida e, sem ela, não sabia como recomeçar. Pensou em seu amigo Serafim e então compreendeu suas razões em pôr a termo a própria vida. Seria ele também um suicida em potencial? Olhou para o prédio em frente e imaginou se atirando do último andar. A cena seguinte: o corpo estendido no chão, um monte de curiosos atrapalhando a polícia técnica e o trânsito congestionado. As manchetes sensacionalistas no outro dia: “Bêbado pensou que podia voar”. Ao lado da notícia, a foto do morto com um jornal cobrindo seu rosto. Ao fundo, um vendedor de churrasquinho de gato cantando João Bosco: “Tá lá um corpo estendido no chão...”.

Carmesita não saberia que o morto era ele. Não pela foto dos jornais. Mesmo assim exclamaria indignada: “O miserável ainda teve a petulância de atrapalhar o trânsito! Esses suicidas deviam ser presos e enforcados! Morte aos suicidas!”

Saiu do banheiro e tornou a olhar o prédio em frente. Contou os andares: dez. Quanto tempo levaria em queda livre até chegar ao solo? Seria o suficiente para sentir o gosto de voar? Descoberta inútil essa: não teria o prazer de contar a mais ninguém.

Dirigiu-se à porta de saída do bar e parou na calçada, vacilante. O sol estava a pino, próprio pra se cometer suicídio. Teria coragem? Acenou para o amigo, antes de atravessar a rua.

– Vamos, porra! As putas não podem esperar!