quinta-feira, 25 de março de 2010

O Foguete e as Lágrimas



De Queima de Judas



Era um cavaleiro solitário. Ideologicamente solitário. Em tempos que vereador prestava juramento de fidelidade, não aos poderes, mas aos mandatários constituídos, ter cisma ideológica era crime contra a moral e aos bons costumes e o pseudocriminoso se tornava um pária, estigmatizado socialmente para todo o sempre.

Dizia-se que ele era um comunista de carteirinha, desgarrado da Coluna Prestes, infiltrado pelos cossacos para perverter a pacata gente da terra, embora ninguém ali, salvo umas duas exceções, soubesse o que era ser comunista, muito menos cossaco, e pior ainda, Coluna Prestes. Não acreditava em santo e comia carne na Semana Santa, justificavam-se, assim, seus detratores. Podia ser muçulmano ou judeu, ter outro preceito religioso, mas ali, naquele lugar, sob a influência do padre, judeu, muçulmano e comunista era tudo uma coisa só: o AntiCristo.

Chamava-se José Jacinto de Melo, primeiro oficial de cartório do distrito de Sátyro Dias, vereador no raiar do novo município, mas não entrou para história pelos seus feitos cartoriais, pela sua falta de Fé ou pela sua atuação política (que não se sabe se foi boa ou ruim). A história, que se conta, reservou um lugar nos seus anais para o Mestre Zezito Fogueteiro, o pirotécnico, reverenciado até hoje, principalmente nas noites de junho, e o povo mais antigo chora sua falta no Sábado de Aleluia.

O judas, em Sábado de Aleluia, de Zezito Fogueteiro, iniciava o espetáculo no cair da tarde, em desfile apoteótico pelas ruas da cidade, montado no jegue Cemirréis, acompanhado de dezenas e dezenas de crianças e adolescentes, que diziam impropérios contra o famigerado traidor de Cristo. Vestido a caráter, de paletó, gravata e chapéu, depois de concluída a volta olímpica, era pendurado no cadafalso (que ficava embaixo do tamarindeiro existente perto do Mercado) à espera de sua sentença, que vinha após a leitura do seu testamento, um primor de irreverência e sátira aos homens notórios da cidade. Ninguém escapava da “herança” do judas, nem mesmo o padre e o prefeito. Milhares de pessoas se aglomeravam em volta de um caminhão, improvisado como palanque, para se divertir com a leitura do testamento, que era escrito em quadras: “Para o meu amigo Prefeito/ como não tenho o que deixar/ Deixo a minha vassoura/ Para a cidade ele limpar”. Eram versos picantes e divertidos, que levavam de uma a duas horas para seu desenredo final.

Feita a leitura do testamento, o povo corria para a calçada da igreja para se deliciar com o espetáculo que viria a seguir. Por questão de segurança, e também de perícia técnica, o judas era aceso à distância, da calçada da igreja, onde havia uma estaca enfiada na terra e dela saiam dois fios de arame até o umbigo do judas. Em cada um dos fios existia um foguete luminoso, que ficava em extremidades opostas; o primeiro rojão a ser aceso era o da igreja, que corria pelo arame até o cadafalso, acendia o outro foguete, que retornava para a igreja, e o pavio que desencadeava a queima dos fogos no corpo do judas. O primeiro foguete era chamado de “gato”; o segundo, de “gato de resposta”. O ir e vir por si só já era um espetáculo multicolorido. Após a chegada do foguete “gato de resposta” à estaca da igreja, se iniciava a queima do judas, com as bombas explodindo em série, soltando fogo e fumaça da barriga, gerando um espetáculo de puro êxtase visual, transformando o Sábado de Aleluia em verdadeira manifestação de congraçamento cristão. Vinha gente de outras cidades assistir ao espetáculo. O povo da roça comparecia em massa, contentando o padre, que no dia seguinte teria os óbolos consideravelmente aumentados.

Apagadas as chamas da glória (ou o fogo justiceiro dos vingadores de Cristo), tudo voltava a ser como antes, no quartel de Abrantes. Zezito Fogueteiro, ou José Jacinto de Melo, tão amado e admirado, retornava à odisséia de ser o proscrito solitário Cavaleiro da Esperança, sem coluna e sem seguidores, porém seus foguetes rasgavam o breu da noite seguinte, em estouro de bombas de “resposta” ou em chuva de lágrimas policromáticas, em anunciação da Ressurreição de Cristo.

- Judas morreu!
- O cavalo é teu!


Crônica extraída do livro "Arraial do Junco: Crônica de sua existência", deste escriba que vos fala.




quarta-feira, 24 de março de 2010

Pelas Ruas Que Andei...





Por Edna Lopes







Conhecer uma cidade requer certo envolvimento, disposição. Confesso, não sem remorso, que Curitiba nunca esteve na minha lista de prioridades. Não dá para explicar, mas quem sabe foi pelo distanciamento com minha realidade imediata ou talvez temesse a falta de calor humano como era descrita. “Curitibanos não falam com estranhos”, diz-se à boca pequena...

Como um encontro de amor que se adia para que aconteça em grande estilo, eis que a oportunidade surge e parece que estive ali a minha vida inteira. Recebeu-me calorosa, não só pelos 29 graus da chegada, mas pela recepção dos amigos, os queridos Luiz Andrioli e sua Lóis e a maravilhosa família da querida Rita Jankowski, sua irmã Ana Silvia, sua mãe Lili e o lindinho do Manjericão que tornaram meus dias e noites na bela cidade, inesquecíveis.

Dia desses desabafei numa crônica a minha indignação e tristeza com o centro da minha cidade, Maceió, a capital das Alagoas. Lembrei o espaço urbano como um espaço que também educa e que, infelizmente, estamos longe de qualquer coisa assim parecida.

Destaco aqui que Curitiba educa. Transpira lições de cultura e Arte, meio ambiente preservado, convívio respeitoso com o tradicional e o moderno. Educa e emociona pela beleza de suas calçadas e praças, pelo colorido de suas flores, dos seus parques e monumentos. Alegria enorme em relembrar o Jardim Botânico, a Universidade Livre do Meio Ambiente e a Ópera de Arame, símbolos de uma cidade que certamente tem problemas, mas encanta.

Educa e impressiona pela simplicidade de seu cotidiano de cidade grande que não perdeu o charme, a leveza, o encanto. Alguns nomes de bairros de Curitiba - Bigorrilho, Juvevê, Bacacheri , só para citar alguns - são gostosos de pronunciar com ou sem sotaque. Um destaque para Santa Felicidade e seus restaurantes e para os ótimos cafés por toda a cidade.

Andar pelas ruas de Curitiba é reconhecer, nos detalhes, a influência das várias culturas que as construíram. São alemães, poloneses, ucranianos, italianos, japoneses, entre outros, que marcam presença na arquitetura, na culinária, no jeito de ser curitibano.

Sem contar que, a cada passo, ficava imaginando se encontraria um certo vampiro... não encontrei, mas fiquei sabendo de certa livraria em que, silencioso, frequenta e recebe cartas de leitores.

É. Conhecer uma cidade requer disposição, envolvimento. Garanto que tive os dois e mais: excelentes companhias, gente boa e amorosa que abriu o sorriso e o coração para me acolher, para me mostrar pedacinhos e contar histórias dessa cidade que só quem vive e ama sabe. E eu agradeço cada emoção, cada alegria tatuada na alma pelas ruas que andei.

E, pra variar, selecionei umas fotos. Lugares especiais, pessoas mais que especiais. O que meu olhar viu e se encantou, o seu pode ver também. Obrigada a minha linda amiga Rita pela parceria nas fotos, por generosamente partilhar a casa, os sonhos, a vida. Meu convívio com a família de Luiz e a sua me fez relembrar, emocionada, uma frase atribuída a Vinícius de Moraes : “A gente não faz amigos; reconhece-os.”



terça-feira, 23 de março de 2010

O fim de todos os milagres

Por Cineas Santos




Tenho um amigo estúrdio, especialista em engendrar teses de difícil comprovação. Uma delas: “A morte é má, invejosa e burra: leva primeiro os melhores”. Como não tenho comércio com a morte, falta-me autoridade para contestá-lo. De qualquer forma, passei a prestar mais atenção nas tiradas do cidadão depois que a indesejada das gentes, no mesmo dia, de uma foiçada, subtraiu-me dona Purcina e Paredão, duas das pessoas que mais amei na vida.Eu teria acompanhado os dois , “sem saudades, pena ou ira”, como queria Faustino no poema “Romance”. Mas a vida tem o seu próprio curso como um rio sinuoso que desemboca no desconhecido.

Na semana passada, a iniludível contribuiu para dar alguma credibilidade à teoria do meu amigo maluco: num curto espaço de tempo, privou-nos das presenças luminosas de Glauco Vilas Boas e Totó Barbosa, dois homens bons. Do primeiro já se disse quase tudo: jornalista, músico, compositor e cartunista, criou uma galeria de personagens que, de tão neuróticos e desajustados, parecem reais. Geraldão, Dona Marta, Zé do Apocalipse, Edmar Bregman, Faquinha, Cacique Jaraguá, para citar apenas os mais conhecidos, fazem parte do nosso dia a dia. Sem eles, o Brasil ficou mais pobre e mais triste. Glauco foi sacado da vida, aos 53 anos de idade, vítima de um alucinado que, dentro de uns cinco anos, no máximo, estará, outra vez, nas ruas, pronto para barbarizar.

Melhor sorte teve Antônio Barbosa de Miranda, o nosso Totó Barbosa, que viveu intensamente 90 anos e saiu de cena suavemente, cercado de filhos e amigos. Fotógrafo, político e cantor, Totó foi acima de tudo um boêmio alegre, um seresteiro que enchia de beleza as noites de Teresina no tempo em que a cidade não precisava de “toque de recolher” para dormir sossegada. Gostava de Dick Farney, de Orlando Silva, de Sílvio Caldas, de Nelson Gonçalves, ou seja, gostava de quem efetivamente cantava. Sem ele, Teresina perde muito do seu encanto provinciano.

Tive a felicidade de conhecer os dois: o Glauco, a quem só vi uma vez, me pareceu um puro de espírito, um homem que acreditava na redenção da espécie humana. Não por acaso, fundou a igreja Céu de Maria, ligada ao Santo Daime. Quanto ao Totó, aprendi a admirá-lo desde os tempos heróicos da velha Difusora. Vivia sempre cercado de amigos, contando histórias, bebendo, gozando a vida. Seu maior legado: uma família honrada, bonita, na qual se destaca Luíza Miranda, uma das mais belas vozes da MPB. Coube a ela, com serenidade e competência, dar um toque de beleza ao sepultamento do velho no São José, cantando “A noite do meu bem” e “Manhãs de Carnaval”, as canções preferidas do Totó. Emocionados, os amigos aplaudiram. Despedida digna de um seresteiro.

Na hora, lembrei-me de que, certa feita, resolvemos homenageá-lo na Oficina da Palavra. Totó, feliz, me chamou ao palco e dedicou-me uma canção que falava de cabelos grisalhos e o fez acariciando-me a carapinha branca, num gesto paternal e afetuoso. Glauco e Totó personificavam a palavra beleza. Permitam-me, portanto, usar o velho clichê: a vida perdeu duas belas figuras humanas. Talvez seja oportuno repetir Bandeira: “Tudo é milagre. / Tudo, menos a morte. / Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres”.




segunda-feira, 22 de março de 2010

III Encontro Nacional dos Conselhos de Educação, rumo à CONAE 2010

Por Edna Lopes

De III Encontro Nacional dos Conselhos de Educação



"A esperança me chama
e eu salto a bordo como se fosse a primeira viagem.
Se não conheço os mapas, escolho o imprevisto:
qualquer sinal é um bom presságio.
Seja como for, eu vou, pois quase sempre acredito:
ando de olhos fechados feito criança brincando de cega.
Mais de uma vez saio ferida, ou quase afogada,
mas não desisto.
A dor eventual é o preço da vida:
passagem, seguro e pedágio."
Ônus- Lya Luft

A linda Curitiba sediou a primeira reunião de 2010 da coordenação nacional da UNCME e o III Encontro Nacional de Conselhos de Educação. Daqui a alguns dias acontecerá a I Conferencia Nacional da Educação (CONAE) e muitas questões que dizem respeito a este segmento precisavam de encaminhamentos. O regime de colaboração, uma de nossas bandeiras, dá seus primeiros passos em iniciativas que refletem a preocupação do Conselho Nacional, dos Conselhos Estaduais e das representações dos Conselhos Municipais com os destinos da educação do país.

Todos e todas presentes ao encontro, delegados e delegadas para a CONAE voltam com uma tarefa a cumprir: se preparar para os exaustivos dias da CONAE conscientes das propostas que defenderemos certos de que uma Educação com qualidade social não se constrói sem conflitos. Durante o encontro foram escolhidos entre os delegados dos conselhos estaduais e municipais para que, durante a conferencia, nas plenárias de eixo, pudessem atuar como articuladores. Coube-me representar a UNCME no eixo VI (Eixo VI - Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade), visto que, por afinidade e atuação, transitei neste eixo em todas as etapas preparatórias da conferência. Que prevaleça o bom senso e que os interesses e direitos da população sejam preservados e atendidos.

Como coordenadora estadual da UNCME-AL, coube-me também a honrosa responsabilidade de representar a UNCME Nacional para o exercício 2010 na CNAEJA - Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos- do MEC / SECAD. Espero que a minha atuação no Fórum Alagoano de Educação de Jovens e Adultos seja a credencial para um bom trabalho na comissão.

Disponibilizo o pacto firmado entre as 03 representações de conselhos no II encontro Nacional em Brasília, novembro de 2009 e ratificado neste III encontro. Pacto este ratificado também como compromisso dos conselheiros delegados conselheiros à CONAE.

OS DEZ MAIORES DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NACIONAL

*Universalizar o atendimento público, gratuito, obrigatório e de qualidade na educação infantil, no ensino fundamental de nove anos e no ensino médio;

*Implantar o sistema nacional articulado de educação, integrando, por meio da gestão democrática, os planos de educação dos diversos entes federados e das instituições de ensino, em regime de colaboração entre a união dos estados, o distrito federal e os municípios, regulamentando o artigo 211 da constituição;

*Extinguir o analfabetismo, inclusive o analfabetismo funcional, do cenário nacional;

*Estabelecer padrões de qualidade para cada nível, etapa e modalidade da educação, com definição dos componentes necessários á qualidade do ensino, delineando o custo-aluno-qualidade como parâmetro para o seu financiamento;

*Democratizar e expandir a oferta de Educação Superior, sobretudo da educação pública, sem descuidar dos parâmetros de qualidade acadêmica;

*Assegurar a Educação Profissional de modo a atender as demandas sociais e produtivas locais, regionais e nacionais, em consonância com o desenvolvimento sustentável e solidário;

*Garantir oportunidades, respeito e atenção educacional as demandas específicas de: estudantes com deficiência, jovens e adultos defasados na relação idade-escolaridade, indígenas, afro-descendentes, quilombolas e povos do campo;

*Implantar a escola de tempo integral na educação básica com projetos políticos pedagógicos que melhorem a prática educativa, com reflexos na qualidade da aprendizagem e da convivência social;
*Ampliar o investimento em educação pública em relação ao PIB, de forma a atingir 10% do PIB até 2014;

*Valorizar os profissionais da educação, garantindo formação inicial, preferentemente presencial, e formação continuada, além de salário e carreira compatíveis com as condições necessários a garantia do efetivo exercício do direito humano á educação.

domingo, 21 de março de 2010

A CONCILIADORA




A assembléia era dinamite prestes a explodir: ânimos acirrados, punhos cerrados, bandeiras vermelhas desfraldadas e muita palavra de ordem. Todo mundo falava; ninguém escutava. Parecia a executiva do PT em deliberação.

Não era. Tratava-se de uma simples reunião de pais e mestres, cuja monotonia fora quebrada pela mãe de um aluno que acusava uma professora de ter destratado seu filho. Destratado não: o-fen-di-do! Simplesmente chamou o seu pimpolho de burro. Burro era ela, a mãe dela, e toda sua família. Se tivesse filhos, eram burros também; se não tivesse, seriam quando nascessem.

A turma do deixa disso tentava apaziguar, enquanto outra turma queria ver o circo pegar fogo. A Secretaria Municipal de Educação enviou um dos seus melhores técnicos pedagógicos, especialista em apaziguar ânimos aguerridos, mas ofensor e ofendido não queriam acordo, era guerra declarada, salvasse-se quem pudesse. Daquela reunião teria que sair um cadáver, se possível, dois. Guerra é guerra e só ganha quem manda mais torpedo:

– O que você me diz de uma professora que chega na cantina da escola destampando as panelas, hein? – indagou a mãe do aluno ofendido.

– É uma mal-educada! Muito mal-educada! – respondeu a técnica, jogando mais lenha na fogueira, mais gasolina no incêndio, pólvora no calor da explosão – Aliás, Rui Barbosa quando foi morar na Inglaterra, mandou fazer uma placa e colocou na sua porta, com os seguintes dizeres em letras garrafais: “ENSINA-SE INGLÊS AOS INGLESES”. Isso em Inglês, claro, pois lá na Inglaterra ninguém fala Português.

– Rui Barbosa escreveu isso? – perguntou a mãe aguerrida, duvidando que o seu vizinho, Rui Barbosa, tivesse escrito tal placa. Aquilo era um vagabundo.

– Claro! E se não escreveu, devia ter escrito!

A furibunda mãe se acalmou. Não sabia que o inútil do seu vizinho, que vivia lhe paquerando, falava Inglês e, principalmente, havia morado na Inglaterra. Mas se a professora afirmava, então era verdade. Quem poderia saber mais das coisas do que a professora? Rui Barbosa, aquele cachaceiro imprestável, que se cuidasse.

Assim, sem falar coisa com coisa, a conciliadora celebrou a paz entre as beligerantes.