sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cineas Santos - A arte a serviço da vida

Quando Aristóteles afirmou que o homem é um animal político, poderia ter acrescentado: com senso estético. Teria dito tudo. Não por acaso, das pinturas rupestres aos grafites urbanos, a arte sempre está presente em toda parte. Por mais violenta e absurda que seja a realidade que nos cerca, sempre encontramos um meio para atenuar (ou denunciar) o sofrimento com algum tipo de intervenção artística. Domenico de Mais é taxativo: “De todas as formas de expressão humana, a estética é aquela que, mais do que qualquer outra, é responsável pela nossa felicidade”. Se a beleza é, como queria Stendhal, apenas a promessa da felicidade, é lícito perguntar: como viver sem ela?

            Mas chega de erudição de Almanaque Biotônico. Vamos ao que efetivamente importa. Desde o dia 22 do corrente, encontra-se à disposição de quem tiver interesse a exposição fotográfica “As cores da Serra Vermelha”, de André Pessoa, um dos mais respeitados fotógrafos brasileiros. Não se trata apenas de um punhado de belas fotografias sobre um mundo perdido no coração do semiárido piauiense. Trata-se, na verdade, de um gesto político de grande alcance. Mais que mostrar as belezas da região, André nos mostra o quanto a associação entre capitalismo selvagem e política rasteira pode ser perniciosa. A Serra Vermelha vem sendo objeto de uma acirrada contenda entre empresários que querem reduzi-la a carvão e ambientalistas que lutam por sua preservação. O ex-governador Wellington Dias não pensou duas vezes antes de fazer sua escolha: apostou suas fichas no projeto dos empresários da morte.  Adversário ferrenho da criação do Parque da Serra Vermelha, usou todo o poder de que dispunha para inviabilizá-lo. O parque  (ainda) não foi criado.

            A questão se arrasta desde 2006, quando a JBCarbon conseguiu do IBAMA autorização para desmatar 78 mil hectares de mata na serra. Paradoxalmente, o nome do projeto é “Energia Verde” que, em tese, consistiria na “exploração racional” de  13 lotes. A cada ano, um deles sofreria “um corte monitorado”, permitindo a regeneração das árvores em apenas 13 anos. Os resultados iniciais revelaram que, entre teoria e prática, há espaço de sobra para “tenebrosas transações”. Para quem ainda não sabe, além de ser uma área de recarga, a Serra Vermelha contém espécies remanescentes da Mata Atlântica. Acrescente-se a isso uma biodiversidade ímpar em todo o nordeste brasileiro.

            Nesta exposição, André Pessoa se nega a ser apenas um excelente fotógrafo da natureza; assume sua militância em defesa da vida com os meios de que dispõe: o olhar atento, as lentes potentes e a palavra afiada. A exposição consegue, a um tempo, ser o registro das belezas da serra,  uma denúncia contundente e um convite à reflexão. Em se tratando de um cidadão da estatura do André, nenhuma surpresa. Sua arte é sempre bela e incômoda como deve ser toda arte comprometida com a vida.
       

quarta-feira, 23 de maio de 2012

A parábola de Nicanor Belas Artes



Acho que Deus já se cansou de tanta hipocrisia. Aqui ao lado do meu barraco morava um cidadão acima de qualquer suspeita. Casa com piscina, vários carros na garagem e, dentre eles, uma pick-up que é o sonho de consumo de qualquer ladrão. Em todos os carros um adesivo: “Foi Deus quem me deu”. 

Vendo a seca e a fome assolar o Sertão nordestino, pus-me a refletir sobre o Deus que dá carrão a uns e tira o sustento de milhões numa só tacada. Certamente não pode ser o mesmo deus, dito justo e bondoso, que leva multidões ao mais baixo grau de indignidade humana enquanto escolhe meia dúzia para filhos pródigos.

Mas haveremos de reconhecer que o mal é o que sai da boca do homem, conforme está na Bíblia. E se tiver a boca cheia de dentes e uma televisão filmando, aí a coisa pega. É o que acontece nessas correntes de solidariedade quando um famoso entra em coma. De repente multidões acodem de vela na mão rezando e chorando para a televisão. Nesse acidente da dupla Pedro e Leonardo, fiquei patético com a patetice de certas pessoas que foram levar flores e “conforto” para a família da vítima. Notadamente, só queriam aparecer para a mídia. 

Antigamente, quando se botava dentadura nova, se dizia que o cara estava rindo até de desastre de trem. Até o grande sambista João Nogueira fez uma música nesse sentido:

“(...)
Ele que tinha um dente só
Agora está de dentadura
Não é mais garfo de doceiro
Agora é boca de fartura
E pra mostrar a toda gente
Que tem dente na fachada
Até quando vê desastre
O Nicanor cai na risada
Ahahahahahahahahah”
Nicanor Belas Artes

Lá na Bahia a gente brincava assim quando o desdentado colocava dentadura:

- Fulano, caiu um avião!
- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá!
- Sua mãe estava nele...
- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá!
- Seu filho também!
- Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá! Quá!

Hoje, depois de ver no noticiário matutino que a dupla sertaneja Pedro e Leonardo estava se recuperando de vento em popa, a minha secretária me surpreendeu com uma confissão: Deus havia ouvido as suas preces e salvado o garoto. Olhei para ela e perguntei se também orava pelo Elenilson, o piscineiro do condomínio, que agonizava no leito de um hospital público, com insuficiência renal. Além de vizinhos, eles eram amigos de longas datas. Ela respondeu que não. Só tivera tempo de rezar para o rapaz da dupla sertaneja.

Ê, vida que segue! Diante da comoção em massa que nos abala quando algo de ruim acontece a um famoso, o que era uma simples gozação passou a ser a parábola da hipocrisia:

- Fulano, caiu um avião!
- Rsrsrs!
- Sua mãe estava nele...
- Rsrsrsrsrs!
- Seu filho também!
- Ashuashuashuashuashuashuashuashuashua!
- E também uma dupla sertaneja e um artista global...
- Buááááááááááááááááááááá!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Mas, voltando ao meu vizinho que usa dente de ouro e cujos carrões haviam sido presentes de Deus, dia desses a Polícia Federal bateu à sua porta com mandado de prisão, busca e apreensão. Descobriu-se que o Deus dos escolhidos chamava-se Corrupção.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Antonio Toores - Na cidade do invisível Dalton Trevisan


Aproveito a festa do grande Dalton Trevisan pelo Prêmio Camões, maior prêmio da Literatura de Língua Portuguesa em termos de prestígio e cifrões, para republicar uma crônica de Antonio Torres, do seu livro "Sobre Pessoas" em que fala da invisibilidade do autor numa feira de livro de Curitiba.


Tudo que sabia dela era de ouvir dizer. Coisas assim: que no fundo de cada filho de família dorme um vampiro, como o Nelsinho, o Delicado, ou o Dalton, o Contista, suplicantes de beijos das virgens - e de suas carótidas. Mesmo sendo refratários à luz do dia, tornam-se invisíveis, só para contrariar os bisbilhoteiros que a visitam na vã esperança de identificá-los. Quais seriam eles, entre aqueles encostados num balcão, de olho nas meninas que passam, sem lhes prestar atenção? Se é isto o que você quer saber, pode ter certeza de que perdeu a viagem. No entanto, acredite: bem diante dos seus olhos, um deles estará às raias do êxtase, ante a esplêndida visão de uma viúva que acaba de sair de um carro: ''Ela está de preto... Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!''. 

Impossível não associar Curitiba ao ritual de seus pequenos vampiros, súditos de Onã, priápicos inofensivos a enxugar conhaques, para afogar os dissabores de uma adolescência espinhenta. Ou a um humorístico jogo de palavras que certamente lhe soa tão espirituoso quanto incômodo: ''Ritiba quer dizer 'do mundo'''. E ainda à definição que lhe cunhou a roqueira Rita Lee: ''Uma cidade arrumadinha, bonitinha, com uma gente educadinha''. Só que esta cidade, justa ou injustamente reduzida a diminutivos, é uma das que mais crescem no país. 

Fiz um bordejo por lá, a convite da Confraria da Palavra. Palestras. Na PUC-PR e numa simpática Feira de Livros na Praça Osório. Quando cheguei, Carlos Heitor Cony já tinha pegado o avião de volta. Logo outro carioca talentoso, o Fernando Molica, deu o ar da sua graça para um reforço à programação cultural do evento e, a bem dizer, preencher um pouco a lacuna deixada pelo experiente Cony. 

Para mim, foi como ir a Roma e não ver o papa, pois Dalton Trevisan, o sumo pontífice das letras paranaenses, ficou famoso também pela invisibilidade. Recluso sistemático, não se sabe se o ermitão Dalton existe ou é ficção. Modo de dizer. Miguel Sanches Neto, um novo valor que se alevanta no Sul, uma vez me garantiu que costuma bater em seus umbrais, e que ele lhe abre a porta, numa prova inequívoca de que sua existência é real, embora escondida a sete chaves da curiosidade pública. 

Esse ourives de palavras - um gênio minimalista - foge do assédio como o diabo da cruz. E nisso faz lembrar o finado Scott Fitzgerald, quando dizia que não podia suportar a visita de celtas, ingleses, políticos, estrangeiros, virginianos, lojistas, intermediários em geral, todos os escritores (evitava os escritores com o maior cuidado, porque eles podem perpetuar a agitação e o desassossego melhor do que ninguém) - e todas as classes como classes, a maioria delas pelos seus membros... 

Seja lá qual tenha sido o motivo, o certo é que o criador de O vampiro de Curitiba não foi à feira. Ainda assim, a praça atraiu de poetas a loucos. Nenhum dos autores convidados conseguiu causar mais impacto do que uma mendiga. Esta roubou a cena diante de uma mesa de autógrafos, ao bradar, insistentemente: ''Senhor vereador, eu quero uma saia nova!''. Acabou sendo tratada respeitosamente. Aí dei razão a Rita Lee: em Curitiba há uma gente bem educada, sim senhora!