sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O menino Lula, do mestre Audálio


Por Nildo Carlos Oliveira


De O menino lula

A história que aqui se conta poderia ser mais uma variação sobre o mesmo tema: os retirantes nordestinos pendurados nos paus de arara rumo aos cafezais, à construção civil ou às metalúrgicas paulistas. O personagem seria apenas mais um, dentre milhares de outros que igualmente se aventuraram por estradas, rios, planícies e montanhas, num estirão de 3 mil quilômetros, para tentar a sorte em São Paulo.


Mas a história, como é contada, deixa de ser apenas mais uma história, e o personagem, vindo lá debaixo, daquela faixa de sombra onde pobreza e miséria se confundem, destaca-se em razão de uma trajetória sindical e política em cujo contexto histórico conquistou a Presidência da República. Outros se tornaram operários, escritores, poetas, jornalistas, empresários, vendedores, políticos, pastores protestantes, vagamundos ou desapareceram no campo ou na cidade, esmagados na engrenagem de uma sociedade que trata os iguais seletivamente.


O livro O menino Lula, escrito por Audálio Dantas e editado com ilustrações do poeta da xilogravura Jerônimo Soares, numa publicação da Ediouro, lançado recentemente na Livraria da Vila, em São Paulo, é fabulado com o toque, o sentimento e a visão de um mestre da escrita. O autor trata os fatos reais ali narrados com o mesmo cuidado com que trataria o melhor conteúdo ficcional.


Estão ali todos os elementos que mostram uma família desprotegida, entregue ao abandono secular do Nordeste desvalido; o pai, a mãe, os garotos, o cachorro Lobo, farejando os despojos na despedida dos meninos que se preparam para a longa jornada de 13 dias rumo ao Sul.


Ganham relevo os problemas vividos pelo menino Lula, que vai crescendo em um mundo onde não se tinha sequer o mínimo para a subsistência. Registra-se o espanto dele diante de uma novidade surgida no sertão pernambucano: uma bicicleta. Como seria possível alguém se equilibrar e se movimentar em cima de duas rodas? O horizonte palpável, dele e dos irmãos, estava limitado pelo terreiro da casa, o pé de mulungu, o caminho da roça, a venda de seu Tozinho e o açude.


Mas esse mundo, estreito e sem expectativas, ficou abalado com a decisão da matriarca de sair de Pernambuco, com os filhos, para São Paulo. Foi em dezembro de 1952, quando o sol, incendiando o chão, prenunciava a seca. A família deixou tudo, para viajar equilibrada em tábuas sem encosto, colocadas transversalmente na carroçaria de um caminhão, carregando as miudezas essenciais e os mantimentos da sobrevivência: farinha de mandioca, carne seca, galinha cozida, rapadura e bolacha. No caminho, o alumbramento diante do rio São Francisco. - O mesmo espanto que marcou a retina de tantos outros retirantes que por ali passaram. No fundo, a travessia sobre o velho Chico preserva um significado simbólico: um divisor de água entre passado e futuro.


Estão bem caracterizados, na trama, o pai Aristides, que recebeu a família em Santos depois de abandoná-la em Caetés, no sertão, e que nunca deixava de comprar o jornal Tribuna de Santos, embora não soubesse ler; a mãe, dona Lindu, que nos momentos traumáticos era quem decidia e definia o destino da família, e os irmãos de Lula. A narração, enxuta, trabalhada com a inspiração de um texto de Graciliano, mas sem a causticidade do mestre de Vidas Secas, nos dá um quadro da infância e da adolescência do personagem que chegou à Presidência da República.


O livro, mesmo quando trata da miséria do mundo adulto, mantém a graça do menino, numa biografia leve, compassada, concebida sem a pretensão de criar um mito ou um herói; apenas a vida de um retirante que deu certo.




terça-feira, 5 de janeiro de 2010

POR QUE AINDA ESTOU AQUI

Por Cineas Santos


De O secretário Cineas Santos

Ao longo dos últimos 60 anos, ou seja, durante toda a minha existência, sempre tive o cuidado de manter prudente distância do poder. E nem vou invocar o Lord Acton, que afirmava: “O poder tende a corromper”. O poder simplesmente não me atrai nem me fascina, a não ser o poder de divino, pleno, ilimitado. Parafraseando Paul Valéry, só o poder absoluto tem encanto. Mas deixemos de erudição barata, que o chão é minha praia. Convidado pelo Dr. Sílvio Mendes a integrar sua equipe de governo à frente da Fundação Municipal de Cultura Mons. Chaves, tive o cuidado de adverti-lo: Senhor Alcaide, acredito que sirvo melhor ao município de Teresina longe de qualquer instituição pública. O prefeito não me ouviu e aqui ( ainda) estou.

Dirigir a FMC é uma experiência complicada, para dizer o mínimo. Antes mesmo de sentar-me na cadeira da presidência, já um coro de ensandecidos pedia a minha cabeça. Em um ano de serviço público, já peguei mais cipoadas que durante toda a minha vida. Basta contrariar algum interesse, legítimo ou não, para que chovam bordoadas. Como me falta jogo de cintura, não consigo esquivar-me.

Assumi a presidência da FMC num ano difícil: a crise rondava as prefeituras do país, exigindo prudência, cortes, prudência e muita responsabilidade. A despeito disso, cumprimos rigorosamente o Calendário Cultural da Fundação e, sem estourar o orçamento, iniciamos alguns projetos bem-sucedidos. Ressuscitamos o Projeto Picoler, de grande alcance social; incorporamos o Festival Nacional de Violão do Piauí à programação da FCM; instituímos o Festival de Música de Teresina, cuja primeira edição se realizou no aniversário da cidade; criamos os projetos Música na Praça, Arte Itinerante e Teresina Visita, todos funcionando regularmente. É escusado afirmar que pretendíamos fazer mais, muito mais. Fizemos apenas o possível.

Em meio a muitos aborrecimentos, tivemos algumas alegrias: ampliamos o número de alunos inscritos nos projetos Musicalizando e Violão na Escola: hoje são mais de 700 crianças inscritas nos projetos; 50 delas, as mais adiantadas, já integram a Orquestra de Violões de Teresina. Impossível não esquecer a experiência do garoto Leonardo de Cáprio (9 anos de idade), que trocou um cabo de vassoura por um violão e, em menos de uma ano de estudo, já toca por partitura.É comovente e animador ver duas garotas, de 11 e 9 de anos idade, tocando sax e trompete, respectivamente, numa das bandas juvenis mantidas pela FMC. Estamos contribuindo para elevar a autoestima da molecada mais necessitada.

Mas as provocações persistem. Na semana passada um repórter me fez a seguinte pergunta:

- O que você vai fazer quando deixar a presidência da Fundação?

Resolvi dar o nó nos neurônios do impertinente. Respondi:

- Como faço há 40 anos: vou continuar briquitando em defesa da face luminosa do Piauí sem ter de aturar as aleivosias de néscios e apedeutas do seu jaez.

Consta que, desarvorado, o infeliz regressou à redação do jornal onde trabalha, gritando:

- Meu reino por um Aurélio!