sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Noiva - Cláudia Magalhães





Saltou da cama, temendo chegar atrasada. Era o dia do seu casamento! Ah, esse dia jamais será esquecido! A felicidade, assim como a tristeza, tem cheiro de fruta doce, pensou inspirando o suave odor do ar. Correu até o velho baú e retirou, com cuidado, seu velho vestido de noiva. Vestiu-se com dificuldade. O seu corpo agitava-se num vai e vem frenético. Estava, sempre, num balanço, tentando entrar em harmonia com o tempo. E nesse balanço, atingia vôos cada vez mais distantes. A porta do quarto foi aberta por um rapaz de rosto duro e frio, como todos naquele lugar. Não se importaria com ele, estava feliz demais para isso. Poderia, finalmente, reencontrar seu grande amor!

Em busca do seu coração, seguiu em direção ao pátio. Por que quanto mais queremos chegar a um determinado lugar, mais ele se torna longe?, pensou ao atravessar o longo e frio corredor. As pessoas, que por lá circulavam, não notaram sua chegada. Nenhuma alma. Nem grande, nem pequena. De nada adiantava expirar, com seu deslumbrante vestido branco, tanta felicidade. As pessoas não gostam do sucesso alheio. A felicidade, sempre, incomoda, pensou sentindo toda sua alegria pesar o ar.

Correu em direção ao que chamava de “pequeno jardim”. Nesse lugar, todos os dias, na mesma hora, o esperava sentada num banco, branco, de ferro, que ficava sob uma enorme mangueira. A vida é uma enorme repetição, pensou observando uma manga rosa, tão doce quanto seu coração, pendurada na frondosa árvore. Era a fruta mais bela que já vira. Precisava pegá-la, ela seria seu buquê e quando terminasse a cerimônia, a ofertaria ao homem amado. Ela representaria seu amor! Teria presente mais doce? Não, definitivamente, não! Ah, como o amava! Esse amor tomou conta do seu corpo e tornou-se seu universo. Não entendia o real motivo de ter sido abandonada por ele naquele lugar frio e autoritário, dependendo da bondade, indiferente, daquelas pessoas que entendiam, somente, de bulas de remédio. É certo que estivera completamente no escuro por algum tempo e que andara com as mãos no lugar dos pés, mas, agora, estava “recuperada”. Lutaria pelo homem amado. Subiria na árvore, mesmo que se machucasse. Seus arranhões seriam como uma carta de amor. Era necessário mutilar-se com algumas farpas para provar a grandeza do seu sentimento. Toda carta de amor deveria ser escrita na carne, com sangue, dessa forma, todas as promessas de amor virariam cicatrizes, acompanhariam todos nossos passos e jamais seriam esquecidas com o tempo, pensou ao subir na árvore. Alcançou a manga e colocou-a, com cuidado, no banco. Limpou o vestido. Arrumou os cabelos, jogando-os para o alto e, dando-lhes um nó, improvisou um rabo de cavalo. Estaria impecável quando ele chegasse. Depois de alguns segundos de silêncio, retomaria o fôlego e lhe daria um longo e caloroso beijo. Diria que o amava com loucura e sairiam, de mãos dadas, daquele inferno. Escreveriam uma linda história de amor no tempo e mostrariam as pessoas que o amor necessita de perdão. Pensou em como seria bom tê-lo de volta. Preparar com carinho suas comidinhas preferidas, fazer amor e adormecer em seus braços com a certeza da existência de coisas que nunca se acabam e que nos voltam mais fortes quando a esperamos com paciência e determinação. Limpou, novamente, o vestido. Desmanchou o rabo de cavalo e o refez com agilidade. Nunca estava bom o suficiente. O amor, também, é assim. Nunca é bom o suficiente. Por essa razão fora abandonada. Essa sua mania imbecil de querer tudo no seu devido lugar, de arrumar, incansavelmente, a louça, a casa, era uma prova do seu amor. Ao ter a certeza disso, ele a abandonou. Ele passou a odiá-la pelo simples fato dela o amar. Pegou a manga e observou-a com atenção. Nunca vira uma manga tão bela! Cheirou-a e, novamente, colocou-a sobre o banco. Tinha absoluta certeza de que, em algum momento, ela a faria sofrer. Todas as coisas boas nos fazem sofrer. Elas moram na esquina do amor com o ódio, concluiu com tristeza. Limpou o vestido, refez o rabo de cavalo, pegou a manga, cheirou-a e pensou com uma estranha surpresa: Nunca vi uma manga tão bela! Por duas horas, repetiu esse ritual, incansavelmente. Quando ele chegar, direi que o amo com loucura até a exaustão. Repetirei inúmeras vezes. A vida é uma grande repetição e usarei isso a meu favor, repetindo, somente, as coisas boas, concluiu com satisfação refazendo o penteado.

Faltavam poucos minutos para o pôr-do-sol, quando escutou o som de passos firmes. Eram eles. Malditos! Sanguessugas do inferno!, pensou sentindo um medo quase insuportável. Nesse instante, o céu fechou as pernas arrastando nuvens pesadas e cinzentas, e escondeu o seu azul mais profundo. Tudo ficou plano, reto, uniforme. Não havia estrelas, nem firmamento. Sumiram as cores e do arco-íris, somente o nada. Estava tudo acabado. Fechou os olhos e deixou-se molhar pela água que derramava em seu peito. Sem o seu amor, tudo seria somente chuva. Uma chuva que traria seu passado em relâmpagos, queimaria suas lembranças, reduziria tudo a cinzas, fazendo seu futuro fugir pela boca feito fumaça. Cantou em silêncio, vendo-o morrer arrastado pelo tempo. Olhou a manga e constatou que, em breve, ela seria apenas uma fruta podre ou, então, seria devorada por algum estranho. Soltou um terrível grito de dor. Não! Não deixaria ninguém meter as mãos no que tinha de mais doce. Aquela fruta era seu amor. Se alguém tinha que provar sua doçura, esse alguém seria ela! Devorou a manga e sentiu sua felicidade escorrer pelos dedos. Os dois homens observaram com uma estúpida frieza, por alguns segundos, aquela mulher de rosto inquieto, dando as costas à razão em nome do amor. Não entendiam que não existe nenhuma arma contra ele, somente uma defesa: a loucura. Essa fuga dos perigos da vida. É nesse repouso dentro de nós, que ela nos desmonta e nos torna vítima e algoz.

Deixou-se agarrar por eles. Não se moveu, nem falou nada. Tudo poderia ser usado contra ela. Atravessaram o longo e frio corredor. Deitaram-na na cama, deram-lhe alguns comprimidos e saíram. Nenhum sorriso, nenhum carinho. Não chorou, já estava acostumada com a frieza dos homens sem coração. Enfrentaria a insignificância dos momentos em que teria que viver como se nunca tivesse experimentado um grande amor. Não tinha escolha. Tomaria todos os remédios, faria todas as refeições, como um animal domesticado. No início, quando chegou naquele maldito lugar, tentou se rebelar, mas, tal qual um amor contrariado, todas as suas tentativas de se fazer ouvir foram usadas contra ela. Esperaria a próxima oportunidade e fugiria dali. As pessoas enlouqueceram. Elas não sabem mais amar, constatou com a loucura dos que amam demais.
Ele não apareceu. Teria mais uma chance? Não sabia. Restava-lhe sonhar. Talvez, a forma mais humana, mais justa, de viver. Nos sonhos, encontraria o poder da loucura, do seu lirismo, indispensável para alcançar o amor. Somente os loucos amam. Em algum deles, o reencontraria num lugar chamado poesia. E, com uma flor na boca, ele lhe diria, somente, palavras de amor. Ela escutou o barulho de risadas debochadas, dos enfermeiros, vindas do corredor. O mundo ignorava sua tristeza. Adormeceu chorando baixinho, sentindo o gosto, agora, amargo, do que já lhe fora doce, extremamente doce.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Nocaute Técnico - Antonio Tibau

A publicação de hoje são dez mini contos do novo colaborador do blog Antonio Tibau, do Rio de Janeiro. Como estou em Salvador, sob o domínio de Momo, não há ilustração nem fotografia do autor.
Feliz carnaval aos leitores do blog

twitter.com/nocaute_tecnico

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1. Quando a queda se mostrou inevitável, a angústia dominou Tavito. Quis economizar as milhas e agora nunca saberá como é voar de executiva.

2. Entrou no banheiro com doze anos, decidido a só sair de lá adulto. Entregou os pontos depois do quarto Hollywood vermelho.

3. Estava tão boa em fingir orgasmos que começou a ficar molhadinha só de pensar na sua próxima atuação.

4. Precisava inventar um problema para a sessão de amanhã. Tinha medo que lhe dessem alta.

5. Acordou na Bahia. Decidiu parar de beber.

6. O silicone não salvou seu casamento. Mas, se serve de consolo, atrapalhou bastante o da vizinha.

7. Surtou baixinho, para não incomodar a mãe.

8. Passou a faca na galinha, mas acabou desistindo da oferenda. Jogou o bicho na panela que assim teria mais chance de arrumar marido.

9. Poderia ter a coelhinha do mês, de qualquer mês, se quisesse. Mas ainda não conhecera o amor de verdade. Diabos! Tragam a de agosto.

10. O clube de suíngue não resolveu nada. Foram expulsos para não contaminar os outros casamentos presentes.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

AS REINAÇÕES DE PEDRO MACAQUINHO

Por Cineas Santos



De Pedro Macaquinho


Constatei, com uma pontinha de alívio, que a figura mais “notável” de Campo Formoso, que nem existe mais, não sou eu. Trata-se de um certo Pedro José de Sousa que, por suas reinações, ganhou a adequada alcunha de Pedro Macaquinho. Menino ainda, Pedro se deu conta de que não tinha a menor vocação para puxar cobra para os pés, preso ao rabo de uma enxada. Num descuido da família, azulou no mundo e foi cumprir sua sina. Analfabeto, sem maior qualificação, descobriu que o próprio corpo poderia ser um excelente instrumento. Simples: punha a mão esquerda na cova da axila direita e, movimentando o braço, marcava o ritmo do xote “O Cheiro de Carolina”, sucesso de Luiz Gonzaga. Foi nessa época que o agraciaram com o rótulo Macaquinho.

Excelente ritmista, tornou-se zabumbeiro do Mané Vicente, que ganhava a vida judiando de uma pé-de-bode ranheta. Sempre que o sanfoneiro parava para entornar uma talagada de cana, Macaquinho abarcava a sanfoninha e mandava ver. Acabou aprendendo o mínimo; o mais correu por conta de sua intuição. Tornou-se presença obrigatória em feiras, quermesses, leilões, desobrigas, circos e funções. Sentou praça no Canto do Buriti e se fez showman: canta, dança, improvisa e conta piadas. O público o adora. Mas sua carreira artística tem sido marcada por um problema crônico: só querem pagar ao Macaquinho com cachaça. Dinheiro, que é bom, nada. Como qualquer macaco que se preze, entre uma reinação e outra, o Macaquinho fazia um filho. Família crescendo, dinheiro curto, as coisas se complicaram. Pequeno ainda, os macaquinhos do Macaquinho passaram a ajudá-lo: tornaram-se todos sanfoneiros e ritmistas. Nascia o conjunto “Pedro e seus Macaquinhos”. Um dos garotos, o Walmir, é um sanfoneiro de grandes recursos técnicos.

A parceria com os meninos rendeu alguns frutos, mas a grana continua curta, e o tempo começa a maltratar o nosso bravo macaco. De repente, aquele novelo de encrencas, que atende pelo nome de próstata, começou a incomodá-lo. Pedro teve de diminuir o ritmo de trabalho, fazer tratamento, gastar o que não tinha. A magra aposentadoria que recebe não lhe garante a sobrevivência com um mínimo de dignidade. Foi aí que pintou a ideia de lançar um CD artesanal, mas realizado com cuidado e capricho. O CD traz o instigante título de The best of Pedro Macaquinho, com um punhado de canções, entre elas as clássicas “Delita” e “De madrugada no calor do frio”, uma versão light, já que a original , down, é imprópria para menores de 78 anos de idade. Sucesso absoluto: o CD vende mais que farinha nas feiras do Ceará. Sucesso e encrenca: segundo fui informado pelo sanfoneiro, pelo menos duas lojas de discos de Canto do Buriti clonaram o CD e passaram a vendê-lo sem autorização do Macaquinho, ou seja, furtam-lhe a única coisa que tem para sobreviver. Sem ter a quem recorrer, Pedro veio me pedir ajuda.

Denunciei o fato no programa Feito em Casa e o faço agora nas páginas de O Dia e no blog Onde Canta a Acauã. Se a pirataria continuar, irei ao Canto do Buriti, denunciar os criminosos ao promotor da cidade. Não tenho poderes para ir além. De qualquer forma, tenho o dever de tentar ajudar aquele humilde cidadão que, com sua arte feita de pura intuição, destronou-me do incômodo posto de única “celebridade” de Campo Formoso.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Sobre Pessoas - 8

Quando o Rio teve um governador chamado Vaca

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De René Duguay-Trouin


Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1711. A cidade amanheceu encoberta. Ajudada pelo nevoeiro e fortes ventos, uma esquadra de 18 navios, 700 canhões e cerca de 6 mil homens, comandada pelo general René Duguay-Trouin, corsário do rei Luís XIV, iria forçar a barra e escapar do poder de fogo das fortalezas de Santa Cruz e de São João. Em poucas horas, fundeava cara a cara com o seu alvo, mandando-lhe bala, para desespero da população. Não suportando a superioridade bélica dos franceses, e a destreza de suas manobras, o Rio se rendeu. O governador Francisco de Castro Morais fugiu. A sua fuga foi seguida pelas milícias e a população.

Duguay-Trouin tomou e assaltou uma cidade vazia, então a mais rica do império colonial português, graças à sua condição de entreposto do ouro das Minas Gerias, que aqui era embarcado para Lisboa. Ele a fez de refém durante os 50 dias em que aguardou o pagamento do resgate, para devolvê-la a seus habitantes, ameaçando reduzi-la a cinzas, caso não fosse atendido. Houve de tudo nesse dramático episódio: tergiversações, pusilanimidade, heroísmo e covardia. Não faltou quem tirasse proveito da situação, em negociações particulares com os invasores. Do seu esconderijo, o governador mimava-os com presentes. E deles recebia, em agradecimento, preciosas garrafas de vinho. Um padre os regalava com carruagens de mulheres.

Quando foram embora, com os seus navios abarrotados de ouro e prata, deixaram a cidade bombardeada, destruída, dilapidada. E de moral no chinelo. Logo instaurou-se uma revolta popular sem precedentes. Apelidado de Vaca, Francisco de Castro Morais por pouco não foi trucidado. Acusado de traição, e de entregar covardemente os bens públicos e privados aos invasores, sem lhes oferecer resistência, não escapou da condenação ao degredo na Índia, nem do confisco de seus bens. E ele era mesmo muito rico, pois era pago a peso de ouro pelo seu cargo, fora as malversações imagináveis.

A invasão francesa teve como conseqüência uma outra: a dos juizes togados de Lisboa, enviados por D. João V. Em meio à agitação dos militares, do Senado da Câmara, da nobreza e dos súditos em geral do reino, instalou-se o Tribunal da Devassa, com uma alçada de 7 ministros. Os trabalhos se arrastaram infinitamente. Mas não acabaram em pizza ou seus equivalentes à época. As sentenças daqueles 7 homens não pouparam nenhum dos acusados. De nada adiantaram os argumentos do governador. Em sua própria defesa, alegou ter sido abandonado por todos. E que havia entregado o ouro aos bandidos para evitar a destruição de tudo que estava sob a mira dos canhões deles.

Todas as punições foram severas. Do desterro à pena de morte. E assim conseguiu-se aplacar a indignação de um povo em estado de descrença total em relação às autoridades.

Enquanto o mundo girou e a Lusitana rodou, Devassa virou marca de cerveja e as vacas voltaram a pastar numa boa.