sábado, 27 de fevereiro de 2010

Sobre Pessoas - 9

A bela Susana do vice-rei

Crônica do livro "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres


De Luís Vasconcelos de Sousa


Devo-a a outra bela, Vera Barroso, a apresentadora dos Cadernos de cinema, da TVE, com quem partilho o fascínio pelas estórias da história do Rio. Esta aqui, contada por ela nos bastidores do seu programa, encantou o maestro João Guilherme Ripper, a ponto de ele prometer transformá-la numa ópera. Trata-se de uma lenda romântica, que pode ser conferida à página 97 do livro Rio de Janeiro em seus quatrocentos anos, publicado pela Record em 1965, no capítulo Século XVIII, escrito por Cláudio Bardy.

Começa com a chegada aqui – vindo de Lisboa -, do vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza, no ano de 1779, para dar início ao governo mais celebrado pelos historiadores, antes de D. João VI elevar a capital da colônia à do reino unido do Brasil, Portugal e Algarves, tornando-a o centro do poder imperial lusitano. Logo de cara, ele se deslumbrou com o quadro maravilhoso da natureza, a lhe oferecer um painel de sonho.

Mas se horrorizou com “a mancha brutal na paisagem radiosa”, no dizer de outro Luís, o Edmundo. As casas eram feias. As ruas, sujas. As águas, fétidas. O conjunto exasperava. Para piorar, Luís de Vasconcelos constatou que os colonos portugueses não tinham vindo para fazer um país, mas para se enriquecerem rapidamente, nem que para isso tivessem de arrasar a terra.

A situação deplorável do Rio não o levou a tapar o nariz e dar-lhe as costas. Pôs-se a andar, já com planos de embelezamento do espaço urbano, abertura de avenidas e saneamento de suas condições insalubres. Jovem, galante, dinâmico e humanitário, condoeu-se com a sorte dos escravos, que eram castigados pelos seus senhores, com exagerado rigor. Ele proibiu a aplicação da justiça a domicílio, passando-a à alçada do Estado.

Suas andanças o levaram à pestilenta lagoa do Boqueirão da Ajuda, uma verdadeira chaga encravada na cidade, tendo nas cercanias apenas casebres miseráveis. Para espanto geral, o vice-rei era freqüentemente visto caminhando a pé pelas margens infectas da lagoa, acompanhado de Valentim da Fonseca e Silva, o Mestre Valentim.

No imaginário popular, a assiduidade de Luís de Vasconcelos e Souza àquelas bandas tinha razões que só o seu coração podia explicar. Ele estava perdido de amor por uma moça bonita chamada Susana, que vivia na mais pobre choupana à beira do Boqueirão, com um coqueiro solitário à porta.

Escondendo-se por trás de uma moita, o vice-rei a contemplava à distância, adorando-a platonicamente. Esse amor secreto o teria levado à decisão de aterrar a lagoa.

O aterro foi confiado ao Mestre Valentim, que arborizou toda a área. Também fez um jardim, no qual colocou pavilhões fechados, com murais e muitas obras de arte, entre elas a Fonte dos Amores. Para esta, ele fundiu dois jacarés de bronze entrelaçados. Por ordens do apaixonado vice-rei, Valentim pôs nessa fonte um coqueiro de ferro. Era uma reprodução daquele que havia à porta da bela Susana, a musa inspiradora da construção do Passeio Público, que em tempos menos perigosos deve ter sido um lugar tranqüilo para os namorados.

Resta-nos imaginar se a história da beldade plebéia teve ou não um final de um conto de fadas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O Camarote


Em terra de olho quem tem um cego é guia de cego. E o meu primo Marcelo, cujos olhos se acostumaram com a cegueira política da capital federal, pisou no arraial do Junco pensando que estava em terra de cego e entrou sumariamente pelo cano: era terra de olho.

Fez trato com o prefeito seis meses antes:

- Na festa da padroeira vou colocar um camarote pra modernizar a cidade. Um camarote apartidário, para celebrarmos a amizade de outrora.

Daí então passou a maturar a ideia. Chegou à conclusão que um espaço para cem pessoas seria o ideal. Pegou régua e compasso, pesquisou bufê, uniformizou garçom, contratou carpinteiro, pedreiro, eletricista, DJ e, depois de tudo milimetricamente calculado, colocou preço nos ingressos.

- É a festa das elites! – gritou a oposição ressabiada.

- É o apartheid! – protestou a situação ao ver o preço dos ingressos.

- É o meu fim político! – gritou mais alto o prefeito ao saber que a maioria dos ingressos havia sido comprada pela oposição.

- Meu show! Meu show! O show que contratei sendo visto pela oposição! E de camarote! – choramingou alguém no meio da multidão, pelo visto, personagem de grande importância porque o tal show era de uma dupla famosa cujo cachê subia às alturas. Nessa hora o arraial do Junco capitulou ao coronelismo e passou a ser uma terra de cego, pois havia gente com olho se dizendo dona do pedaço. Ou do show. E as contratações foram todas bancadas pelo erário. Era o dinheiro do povo, do contribuinte, servindo de cabedal político partidário.

- Abaixo o camarote! Morte à oposição! – gritaram os bajuladores cegos, solidários com o rei que só tinha um olho.

Longe dali, alheio ao facciosismo político, Marcelo preparava as malas para comparecer ao evento. Sua terra, seu torrão natal, seus sonhos de longas noites, suas orgias noturnas e os bacanais nos barrancos da vida, onde as jegas ficavam de quatro. Outrora, ele, Marcelo, era a voz da oposição, o cavaleiro da esperança, o espinho no pé dos políticos carreiristas. Bancou até um jornalzinho, mas foi fechado pela censura religiosa, sob a acusação de promover heresias.

No Junco é assim: manda quem pode e obedece quem tem juízo. Ainda se pratica a política arcaica, a perseguição inquisitória, e o lado que elege o prefeito torna-se dono da cidade. O Ministério Público é inoperante, a Justiça é literalmente cega e a coisa pública se confunde com o privado. É uma terra de donos. Donos do poder.

Tardiamente Marcelo compreendeu que não se pode confiar em político, principalmente quando a terra é de olho. Antes tivesse sido cego, para não enxergar seu camarote destruído no meio da Praça e seus detratores cinicamente urrando no meio dos escombros:

- Reconstrói! Reconstrói, Marcelo! Agora nós deixamos!



N.B. - Meu primo Marcelo não pode colocar seu camarote na festa da Padroeira do arraial do Junco pelo simples fato de ele não partidarizar os ingressos e algumas pessoas que votaram contra o atual prefeito democraticamente participariam da festa que, a princípio, deveria ser pluripartidária, vez que estava sendo bancada com o dinheiro público. Mas não faltou camarote. Havia um, bancado pela Prefeitura, onde rolou comes e bebes à vontade (festa paga com dinheiro público é assim mesmo) e alguns vexames, como mandar esconder os salgados para os convidados irem embora. E o frisson tresloucado de alguém querendo aparecer nas câmaras da TVE.



O dia em que Machado salvou uma borboleta

Por Cineas Santos

De Borboleta negra




Mesmo na penumbra, percebi que o banheiro estava limpo: o cheiro de eucalipto o confirmava. De repente, levanto a vista e descubro, na parede frontal, uma mancha escura, feia, disforme. Dir-se-ia um pequeno trapo sujo grudado no azulejo. Acesa a lâmpada, a mancha ganhou vida: era uma borboleta preta, uma autêntica escalapha odorata, se não me trai o São Google. Além de pouco decorativas, as borboletas pretas sofrem de uma enfermidade rara e mortal: desorientação congênita. Explico: são capazes de adentrar qualquer espaço por frinchas minúsculas, mas incapazes de sair, mesmo que portas e janelas estejam escancaradas. Uma vez dentro do espaço, tonteiam pelo ar como anjos bêbados, debatem-se às cegas e se esfacelam, liberando as minúsculas escamas que lhes recobrem as asas: sujam tudo. Não bastasse isso, são vulgarmente conhecidas como “bruxas”. Reza a crendice popular que anunciam maus presságios. Decididamente, não são bem-vindas, razão por que, mal se mostram, transformam-se em repasto de formigas.

Instintivamente, peguei uma toalha molhada e decidi eliminá-la com um golpe certeiro antes que ela sujasse o banheiro recém-lavado. A bem da verdade, cheguei a levantar o braço. Mas me contive: de repente, ocorreu-me a lembrança de um dos capítulos mais belos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra-prima de Machado de Assis. O título é justamente “A borboleta preta”. Não resisto à tentação de transcrever um fragmento: “...Dei de ombros, saí do quarto; mas retornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

- Também por que diabos não era ela azul? disse comigo.

Brás Cubas, personagem que dá título ao romance, era um pequeno-burguês cínico, inútil e dado a filosofices. Depois de matar a borboleta preta, tenta justificar o gesto engendrando uma teoria que efetivamente não se sustenta. Quanto ao texto em si, apenas demonstra o já sabido: Machado, como um verdadeiro alquimista, transformava episódios banais em excelente literatura.

Enquanto “desbebia” sossegadamente, contemplei a borboleta e fiz uma reflexão pueril, digna do Brás Cubas. Os latinos tinham razão: “a arte serve à vida”, mesmo que seja a vidinha errante e efêmera de um inseto repulsivo. Assim, graças à excelência da prosa do Bruxo do Cosme Velho, uma borboleta preta ganhou o direito de continuar em sua vadiice pelos céus de Teresina.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Quaresma - Sara Rafael

Aproveitando meu penúltimo dia na esbórnia (o último só no suspiro final) para publicar a gentil colaboração da minha amiga d'além-mar.


Sara Rafael


Enterra-se o Carnaval. Hoje é quarta-feira de cinzas. Começa a Quaresma.


Quarta-feira de cinzas é qualquer dia para mim. São as cinzas da minha vida. Todos os dias, quando acordo, se apaga a minha alegria de viver. Não há “Carne vale”. Queimo o valor da carne, porque há carência de dinheiro para comer.


É vida sem fulgor. É cinza sem calor; é fogo apagado sem arder. È sempre Quaresma.


Os 40 dias bíblicos até a Páscoa representam 40 anos, a esperança média de vida na época.


Com a média de vida actual, reescrevendo hoje, seriam 80 dias. Vida que se arrasta em jejum, isolamento, negação de desejos, recusa de ambições, em penitencia no deserto.


A minha vida é um deserto de 60 dias. Solidão sem esperança de ressurreição. Todos os dias faço jejum. Só tenho uma refeição depois do pôr-do-sol. Não posso pagar duas refeições, jantando não vou dormir de barriga vazia.


Vou vivendo resistindo às tentações, da facilidade de morrer... meditando no vazio... na realidade sócio-económico-política deste país, marcada pela injustiça, pela exclusão, por índices sempre mais altos de miséria, por medidas sempre mais elevadas de prepotência.


Não tenho mais temas para escrever. Há carência de essência por aqui. Sem causas nem conquistas. Gente que vai sendo anestesiada com cérebro que vai sendo lavado. Povo que vai perdendo a visão no marasmo. A vida neste país vai sendo Quaresma sem Páscoa.


Vou escrevendo no gerúndio, prolongando o que é breve: Nem D. Sebastião volta, nem Jesus ressuscita.