sábado, 23 de outubro de 2010

NO SERTÃO ERA ASSIM

De zabumbeiro


Apesar de o cansaço deixar seus músculos relaxados e o corpo pedindo cama desde cedo, o coronel Limoeiro não conseguia pregar os olhos, por mais carneirinho que contasse. Não bastasse os grilos escolherem sua janela para fazer sinfonia e os rasga-mortalhas piarem em prenúncio de noite de agonia, o som da zabumba no pé-de-serra chegava até seu quarto como se o zabumbeiro tocasse seu instrumento dentro de sua própria sala. Só havia um jeito de se conciliar com Morfeu:

– Zé da Bixiga!
– Inhô, patrão?
– Vá lá na casa do meu compadre Zé da Burrega e diga a ele pra parar a zabumba!
– É pra já, meu coroné!

Zé da “Bixiga” vestiu-se apressado, calçou as alpercatas de couro cru, pegou o facão, a garruncha, se benzeu e saiu em direção do forró. Uma hora depois retornou descabriado, contrariado. A zabumba continuava a toda altura.

– E aí, sêo José, o que foi que houve?
– Sabe, meu coroné, a festa tava tão boa qui tive pena de mandá pará!
– Tu não é de nada, cabra! De manhã a gente conversa. Chico Bala!
– Sinhô, coroné?
– Vá lá e dê cumprimento do mandado que esse molenga teve medo!
– Sim sinhô, coroné!

Chico Bala vestiu sua indumentária de pistoleiro, calçou as botas, colocou duas cartucheiras atravessadas nos ombros, pegou uma pistola, um punhal e uma espingarda, fez o sinal da cruz, abriu a porta e desapareceu na escuridão. Voltou mais rápido do que Zé da “Bixiga”. A zabumba continuava a ecoar caatinga adentro.

– O que é que houve, homem?
– Coroné, a festa tava tão animada qui fiquei cum pena de acabá cum ela.

– Vocês são um bando de covardes! Vou eu mesmo lá e quero ver quem vai me impedir de parar a zoada!

O coronel se vestiu a caráter, sob os protestos da mulher que temia uma rixa com seus compadres ou um tiroteio de última hora, ocasionando um mata-mata de lado a lado. Fazia anos que as famílias da região viviam em paz e o seu marido estava prestes a acender o estopim da discórdia.

Acompanhado de três capangas, o coronel desapareceu na escuridão, decidido a acabar a festa do compadre. Hora e meia depois retornou, cabisbaixo, cara de derrotado. A zabumba continuava mais alta ainda, como em provocação.

– Ôxente, home, tu num disse que ia pará a zabumba? Óia ela aí tocano...
– Mulher, tu sabe quem é o zabumbeiro?
– Num faço a menó idéa!
– É o capitão Virgulino Lampião!

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Miudezas em geral - Cineas Santos

De Flor de monturo


“Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz” 
Manoel de Barros

Certa feita, um cidadão que carregava um rei, digo, um reino na barriga me fez um elogio desmedido: “Você nunca chegará a lugar nenhum porque pensa pequeno”. Errou por pouco. Tivesse dito: você só pensa sandices e só faz coisinhas, teria acertado em cheio. Essa minha vocação por nadinha é anterior ao que a vida me acrescentou em matéria de ignorância e presunção. Não por acaso, quando publiquei um punhado de poemas cometidos ao longo da vida, pus na coletânea o título de Miudezas em Geral. O título é bem melhor que o livro.

Deixemos, porém, de filosofices, que o objeto dessa arenga é outro. Faz um tempinho que venho cevando o sonho de publicar um livro sobre as flores de Teresina. Cheguei até a pensar o título Teresina em flor. O projeto não contemplaria as flores “domesticadas”, menos ainda as importadas de outras plagas, flores transgênicas, belas e frias como peixes congelados. Eu queria (quero) um livro com as flores da Chapada, quentes, vibrantes, adaptadas à rusticidade do meio. Convidei alguns fotógrafos para a empreitada, mas não os seduzi. Um deles, com veleidades poéticas, perguntou-me: “Por que perder tempo com vaga-lumes se temos a Via Látea ao alcance das lentes?”. Respondi de bate-pronto: Porque os vaga-lumes estão à mão e eu ainda não descobri o mecanismo que os acende. Percebi que não seria fácil encontrar um parceiro. Tarefa de tal monta requer equipamento adequado, tempo, paciência e, acima de tudo, competência. Só me faltam as quatro. Pensei seriamente em desistir da empreitada.

Vai que este ano, ganhei uma máquina Sony, compacta, automática, operável por qualquer criança. É tão pequena, prática e eficiente, que poderia se fazer acompanhar do famoso reclamo das Pílulas de Vida do Dr. Rossi: “Pequeninas, mas resolvem”. Decidi testá-la nos monturos de Teresina. Ao longo de seis meses, sem me afastar mais de 10 km do centro da cidade, fotografei uma centena de flores de monturo, algumas de estonteante beleza. Com ardente paciência, saí garimpando aquelas inúteis preciosidades, com a alegria de quem descobre ouro, ainda que ouro de tolo. O Resultado aí está: a exposição Flores de Monturo – a educação do olhar. É escusado dizer que qualquer aprendiz de fotógrafo encontrará uma trezena de “defeitos” nas fotos expostas: enquadramento, foco, luz e o escambau. Isso não me tira o sono: como diria o poeta, “sou apenas um pobre amador”. O objetivo da exposição é tão somente propor uma reflexão sobre olhar e ver, realidades que, não raro, andam divorciadas. Quando nos limitamos apenas a olhar, estamos nos privando da fruição da insólita e instigante beleza dos monturos. E eu vos asseguro: o monturo é fértil.



quarta-feira, 20 de outubro de 2010

DE VOLTA AO BATENTE




Era muita falta de sacanagem, desinsorte infeliz, muita falta de azar! Primeiro, passou a manhã com as mãos dentro da água gelada tentando enrijecer os nervos. Êta dor atroz! À tarde haveria revisão da junta médica do INSS e ganharia mais uns seis meses de lambança. Na primeira vez o truque da água de gelo deu certo, por que agora não haveria de dar? De seis em seis meses no benefício acabaria se aposentando de vez, com salário integral. Aí era só correr pro abraço!

Segundo, no horário marcado ela estava lá, de prontidão, mãos disfarçadas numa luva térmica para manter a frieza. Nem banho tomara, para não desfazer seu intento. Os exames eram nas mãos e não ginecológico. Podia feder à vontade que os médicos não iriam sentir. Mas, e se de repente pintasse um clima com algum deles? E se houvesse algum tarado entre eles e a mandasse tirar a roupa? Deus do céu, quanta tentação! Estava numa secura de anos, será que resistiria? Sim. Primeiro a obrigação, a aposentadoria; depois a devoção, os prazeres da carne e do espírito! Lembrou-se de um casal de portugueses que queria levar um gambá para Portugal. Mas como embarcar bicho tão fedorento sem que fosse pego pela alfândega? Maria deu a ideia:

– Resolvido o problema, Joaquim! Escondo o gambá na minha calcinha!
– E o fedor?
– Ora pois! O gambá que se cuide!

Não era o seu caso, claro, mas teve a sensação de estar pior que gambá. O calor era terrível, agravado pela quebra do ar condicionado. A suadeira era geral. Colocaram um ventilador dos tempos do arco da velha e parecia querer sair do lugar. Mas ventilava forte. Vento? Não, por favor, não! Vai derreter o gelo!

Duas horas depois foi atendida e o chefe da equipe médica achou que ela não tinha mais nada. Sua tendinite havia sarado. Os outros médicos sequer olharam para ela. A decisão já estava tomada: teria que retornar ao trabalho, dois dias depois. Maldito calor!

De retorno a casa, decidiu passar no banco. Era melhor avisar ao chefe que estava de volta. Seus colegas, quando a viram adentrar pela porta principal, esconderam a carteira pensando que ela fora ao banco atrás de mais dinheiro emprestado. Era useira e vezeiro em aplicar a facada nos colegas e, pior, não pagava a ninguém. Era muita cara-de-pau retornar para pedir mais dinheiro emprestado.

Dois dias depois se sentia radiante voltar para o batente. Parecia até o primeiro emprego, de tanta felicidade que irradiava. Sentiria falta de alguns amigos virtuais, mas isso depois ela se acostumava. Sua função no banco era caixa da gerência, só atendia os mangangões da cidade, e tomara que voltasse no mesmo posto. Era gostoso lidar com gente endinheirada. Que imenso prazer sentiria ao pegar em uma nota de cem reais! Êta tartaruguinha difícil! Quanto tempo fazia que não pegava em uma nota de cem? Isso mesmo, dois anos!

Chegou ao banco exatamente às nove horas da manhã. Bateu o ponto, beijou os colegas e procurou a gerência para saber qual caixa estava reservado a ela.

– Caixa?! Dona Vera, depois de passar o calote em todos os seus colegas, a senhora acha que somos doidos de deixar a senhora tomando conta do dinheiro dos clientes?! A senhora já viu lobo tomar conta de galinha? A sua nova função aqui dentro é servir cafezinho à gerência, bem longe dos caixas. E trate de ir logo à cozinha fazer café que estou com vontade de tomar um!