sábado, 14 de julho de 2012

As promessas não cumpridas dos políticos nossos de cada dia



Assim como a maioria dos municípios brasileiros, o arraial do Junco comemora sua emancipação política em data equivocada. Levei o problema ao prefeito, ele encaminhou ao nobres edis que reconheceram mérito nas minhas colocações, pediram para fundamentar, fundamentei,  encaminhei para todos os vereadores, para o prefeito, para o secretário de Educação exatamente em agosto do ano passado, mas, infelizmente, acho que eles tiveram coisas mais importantes a fazer que pouca importância deram ao assunto.

Abaixo, as minhas alegações a respeito, encaminhadas aos nobres edis.

O QUE É  “O MUNICÍPIO”

Entende-se como “município” a cada uma das subdivisões territoriais dos estados membros de uma federação, com personalidade jurídica e autonomia administrativa, constituído de Prefeitura, Câmara de Vereadores e órgãos gestores. Vem da palavra latina, “municipium”, antiga designação romana conferida às regiões conquistadas que tinham o privilégio de governar-se segundo suas próprias leis, em troca de obediência a Roma.

A divisão territorial brasileira teve início com as capitanias hereditárias, cujo objetivo maior era garantir a posse das terras para Portugal. Eram 15 unidades autônomas e desarticuladas entre si e seus donatários se constituíam na autoridade máxima dentro dos seus limites e tinham o compromisso de desenvolvê-las e povoá-las. Porém, devido a vários fatores, apenas duas capitanias prosperaram, o que obrigou a Coroa portuguesa a criar o Governo Geral, com o objetivo de centralizar a administração e a organização da colônia. A partir de 1720 os governadores gerais passaram a receber o título de vice-reis, cargo extinto em1808 com a chegada da família real ao Brasil.

As povoações mais importantes formadas dentro das capitanias receberam o foro de vila e passaram a ter uma câmara de vereadores como sede do seu governo, que acumulava as funções administrativas, legislativas e judiciárias, além de poder fiscalizar os alcaides do rei. Os vereadores tinham amplas prerrogativas e eram eleitos pela base do poder oligárquico local, chamados de “homens bons”. A ordenação jurídica que regulava o poder local era inspirada nas ordenações reais para a administração municipal portuguesa.

Em 1821 o sistema de capitanias foi extinto e as mesmas se transformaram em províncias. A constituição imperial de 1824 manteve seus limites e deu pouca autonomia aos seus governantes, sendo que os mesmos eram indicados pelo Imperador. Do mesmo modo, a autonomia municipal foi reduzida e as câmaras de vereadores passaram a ter funções meramente administrativas. Com o advento da República as províncias adquiriram natureza jurídica autárquica e se transformaram em estados autônomos em relação ao poder central. Já a Constituição republicana de 1891 foi omissa quanto à autonomia municipal, repassando às constituições estaduais o poder de decidir sobre o assunto. Isso gerou o centralismo político dos governadores que intervinham até nas eleições de prefeitos. A Constituição de 1934 conferiu ampla autonomia aos municípios, porém só durou até 1937, com a introdução do Estado Novo. Em 1939 os municípios passaram a ser tutelados pelo Estado.

Com a vitória dos aliados na 2ª Guerra Mundial, a ditadura Vargas caiu e em 1946 uma nova Constituição restabeleceu a autonomia dos municípios, porém a Ditadura Militar de 1964 impôs uma nova Constituição ao país, acabando com a autonomia política municipal e até extinguindo eleições livres em alguns, como as capitais e estâncias hidrominerais. Com o fim da Ditadura Militar em 1985 e com a nova Constituição de 1988, os municípios ganharam mais poderes e foram reconhecidos como o terceiro poder administrativo da federação. 

O ARRAIAL DO JUNCO, O DISTRITO E A CIDADE DE SÁTIRO DIAS

O arraial do Junco se originou em terras da Fazenda Junco de Fora, que fazia parte de uma das sesmarias dos Garcia d’Ávila e doadas ao inhambupense Conselheiro Dantas pelo Visconde da Torre. Em meados da década 1850 o Conselheiro Dantas convidou o vaqueiro João da Cruz para administrar esta Fazenda e o mesmo aceitou. Anos depois o Conselheiro colocou suas terras à venda e grande parte dela foi adquirida por João da Cruz, seus descendentes e mais outros parentes e amigos que migraram de Bom Conselho até a Fazenda Junco de Fora.

De 1877 a 1879 uma grande seca assolou o Nordeste, o que obrigou os filhos de João da Cruz a construir moradia num lajedo denominado “Malhada das Pedras”, que ficava perto da Lagoa das Pombas, propriedade de Manoel José da Cruz. Em 1884, Manoel José da Cruz fincou uma cruz no alto do morro de onde podia se ver as suas posses. Em 1887 a igreja de Inhambupe desmoronou e o padre passou a realizar missa nos locais onde havia casas de orações. Então Manoel José da Cruz, também conhecido como Manezinho dos Pilões, construiu uma casa de orações ao lado do cruzeiro, onde o padre de Inhambupe passou a celebrar missa. O local ficou conhecido como Alto da Cruz da Boa Vista. 

Como havia uma grande afluência de fazendeiros e agregados para a casa de orações nos dias de missa, os mesmos foram adquirindo lotes no lajedo de Manezinho dos Pilões e construindo casas para repouso depois de cumpridas as obrigações religiosas, e assim nasceu um arraial, denominado arraial do Junco, devido ao antigo nome da fazenda Junco de Fora. Em 1927 o arraial foi elevado à categoria de 4º distrito de Inhambupe com o nome de Sátiro Dias em homenagem a um médico inhambupense. Em 1958 foi aprovado pela Assembleia Legislativa da Bahia o desmembramento de Inhambupe e assim ficou constituído o município de Sátiro Dias.

A EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E ADMINISTRATIVA DE SÁTIRO DIAS

Na década de 1950 os ideais separatistas ganharam forma na população do distrito de Sátiro Dias chegando ao auge em 1958, ano de eleições gerais. Liderados por Ioiô Cardoso e Piroca Reis, como eram conhecidos José Belarmino Cardoso e Pedro da Rocha Reis, respectivamente, este último, vereador em Inhambupe, o movimento pela emancipação retumbou na Assembleia Legislativa da Bahia o que levou o deputado João Carlos Tourinho Dantas, bisneto do Barão de Jeremoabo, a apresentar o Projeto de Lei nº 1.032, criando o município de Sátiro Dias. Votado, aprovado e sancionado pelo Governador Antonio Balbino em 14 de agosto de 1958, foi publicado no Diário Oficial no dia seguinte.

O fato histórico foi comemoração pela população nos dias que se seguiram e até hoje é festejado o dia 14 de agosto de 1958 como a data magna municipal. Porém ocorreu uma interpretação equivocada da data da emancipação política que persiste até os dias atuais e que requer sua correção, tanto pelo poder executivo quanto pela egrégia câmara legislativa municipal, haja vista Sátiro Dias ter continuado sob o domínio de Inhambupe até o dia 06 de abril de 1959, se tornando município de fato e de direito no dia 07 posterior, conforme o enunciado categórico do Artigo 3º da Lei 1.032:. 

Art. 3º: “A eleição do Prefeito e Vereadores do Município de Sátiro Dias será realizada simultaneamente com as eleições gerais de 3 de outubro do corrente ano, e a instalação do município e posse dos eleitos efetivar-se-ão a 7 de abril de 1959, ficando o seu território, até lá, sob a administração de Município de Inhambupe.”  Decreto-Lei de nº 1.032 / 1958. 

Não obstante o Artigo supracitado deixar evidente que “a instalação do município” efetivar-se-ia a 7 de abril de 1959, a redação seguinte deixa claro que até o dia 06 de abril de 1959 Sátiro Dias seria administrado por Inhambupe, portanto, até esta data, ainda não havia um município legalmente constituído, com autonomia administrativa, econômica e política, consequentemente, não há como dizer-se “emancipado”. 

Observar-se-á no Art. 4º da referida Lei, abaixo por mim grifado, que Sátiro Dias é tratado, ainda, como distrito, ficando a arrecadação dos tributos municipais a cargo de Inhambupe, até a data de 06 de abril de 1959. 

Art. 4º - O município de Inhambupe, fica obrigado a aplicar no atual distrito de Sátiro Dias, até lá a sua instalação como município, 70% (setenta por cento), pelo menos, da renda nele arrecadada.
Decreto-Lei de nº 1.032 / 1958.

Para corroborar o exposto, a Constituição Federal de 18 de setembro de 1946, também conhecida como a Constituição que mais obsequiou os anseios municipalistas, assim se manifestou quanto à autonomia dos municípios: 

“Art. 28 - A autonomia dos Municípios será assegurada:
        I - pela eleição do Prefeito e dos Vereadores;
        II - pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse e, especialmente,
        a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplicação das suas rendas;
        b) à organização dos serviços públicos locais.”
Constituição Federal de 18 de Setembro de 1946.

Estando o país à época da referida emancipação sob a égide da Constituição de 1946, é lícito reconhecer que antes do dia 07 de abril de 1959 não havia condicionante que levasse Sátiro Dias a se inserir no contexto constitucional da Carta Magna em vigor, por conseguinte, há de se inferir que ainda mantinha seu status quo de dependência de Inhambupe.

Destarte, baseado na arguição ora apresentada, faz-se necessário o resgate da autenticidade histórica por parte de vossas excelências: que se decrete o dia 07 de abril de 1959 como o dia da emancipação política do município de Sátiro Dias e revoguem-se as disposições contrárias.

Em anexo, transcrição da Lei 1.032 de 14 de agosto de 1958, cujo original do Diário Oficial encontra-se arquivado nos anais da Câmara de Vereadores de Sátiro Dias.

Certo de contar com vossas excelências, agradeço,

Atenciosamente,

Ronaldo Antonio Torres Cruz

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Luís Pimentel - Um dia difícil


      A menina estendeu a mão para o ônibus em Brás de Pina e entrou pela porta traseira. Gratificou a cobradora e o motorista com uma goiabada para cada um, desfalcando o estoque. Saltou na Central do Brasil e embarcou no Metrô, direção Botafogo, mergulhando por baixo da roleta e fazendo um agrado para o moço da segurança.

     Desceu na estação que fica ao lado do cinema e reabriu a caixa de goiabada no sinal. Vendia a vinte centavos, cada; três por cinquenta, sete por um real. A primeira freguesa comprou três unidades, disse “meus filhos adoram” e perguntou “que idade você tem, menina bonita?”. Ela respondeu “tenho doze”, mas a mulher nem ouviu porque já seguia em frente. Ainda bem, porque ela estava mentindo: tinha apenas dez. Logo depois um homem comprou também o seu produto e repetiu a pergunta da mulher, “que idade você tem?”, só que olhando fixamente para os pequeninos seios dela e comentando “você é bem gostosinha, sabia?”.

     A menina colocou a caixa de goiabadas em baixo do braço e se afastou. Aprendera que nessa hora é sempre melhor se afastar. A partir daí as coisas começaram a dar errado, porque o guarda que cuidava do ponto exigiu cinco goiabadas para deixar ela vender no sinal, uma mulher mal encarada disse que o preço cobrado “era um roubo” e o moleque que vendia amendoim no mesmo ponto começou a implicar com ela, procurando intimidade e dando petelecos em sua cabeça.

     Quando a tardinha começou a avermelhar a enseada de Botafogo a menina entendeu que estava na hora de voltar para casa, pegando novamente o Metrô e o ônibus na Central, tomando o devido cuidado de guardar um restinho de estoque para gratificar segurança, trocador e motorista. Chegou a casa antes do pai, que era biscateiro, e da mãe, empregada doméstica. Pegou no colo a boneca de pano, já um tanto esgarçada e encardida, deitou com ela entre os braços no colchonete e disse:

     -- Lilica, minha filhinha, hoje foi um dia difícil. Nem queira saber.





quarta-feira, 11 de julho de 2012

Ibys Maceioh e o homem que falava javanês

Clip da música "O homem que falava javanês", de Geraldo do Norte e Ibys Maceioh, baseada no conto de Lima Barreto "O homem que sabia javanês". Abaixo do vídeo, o divertidíssimo conto, para quem nunca o leu.


O Homem que Sabia Javanês
de Lima Barreto

Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades para poder viver.

Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.

O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:

— Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!
— Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado !
— Cansa-se; mas não é disso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
— Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!
— Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
— Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
— Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
— Bebo.

Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:

— Eu tinha chegado havia pouco ao Rio estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anuncio seguinte:

"Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc." Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Encyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e a língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo maleo-polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.

A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los.

À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e, com tanto afinco levei o propósito que, de manhã, o sabia perfeitamente.

Convenci-me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:

— Senhor Castelo, quando salda a sua conta?

Respondi-lhe então eu, com a mais encantadora esperança:

— Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...

Por aí o homem interrompeu-me:

— Que diabo vem a ser isso, Senhor Castelo?

Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:

— É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?

Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:

— Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo?

Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.

Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que numero. E preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder "como está o senhor?" - e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.

Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, Com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...

Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava mal tratada, mas não sei porque me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.

Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.

Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...

Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.

— Eu sou, avancei, o professor de javanês, que o senhor disse precisar.
— Sente-se, respondeu-me o velho. O senhor é daqui, do Rio?
— Não, sou de Canavieiras.
— Como? - fez ele. Fale um pouco alto, que sou surdo, — Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu. — Onde fez os seus estudos?
— Em São Salvador.
— Em onde aprendeu o javanês? - indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.

Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.

— E ele acreditou? E o físico? - perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.
— Não sou, objetei, lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio...Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.
— Bem, fez o meu amigo, continua.
— O velho, emendei eu, ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:
— Então está disposto a ensinar-me javanês?
— A resposta saiu-me sem querer: — Pois não.
— O senhor há de ficar admirado, aduziu o Barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...
— Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos... ?
— O que eu quero, meu caro senhor....
— Castelo, adiantei eu.
— O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai, continuou o velho barão, não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro, que preciso entender o javanês. Eis aí.

Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.

Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.

Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.

Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.

A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.

Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa Única! Ele não se cansava de repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!”

O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.

Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens !...

Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos !

Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.

Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a cousa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.

Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Cayru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. — "Qual!” retrucava ele. “Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.

O diretor chamou os chefes de seção: "Vejam só, um homem que sabe javanês — que portento!"

Os chefes de seção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!"

O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.

A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e perguntou: "Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem, disse-me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bale, onde vai representar o Brasil no Congresso de Linguística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e outros!"

Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.

O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.

Pus-me com afã no estudo das línguas maleo-polinésicas; mas não havia meio! Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês." Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Comércio um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

— Como, se tu nada sabias? - interrompeu-me o atento Castro.
— Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.
— E nunca duvidaram? - perguntou-me ainda o meu amigo.
— Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês — uf!

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bale o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela seção; não conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano brasileiro, me estava naturalmente indicada a seção do tupi- guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bale, em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.
Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da república, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia.

Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.
— É fantástico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja.

— Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?
— Que?
— Bacteriologista eminente. Vamos?
— Vamos.

Gazeta da Tarde, Rio.28-4-l9ll.