sábado, 5 de junho de 2010

Das Coisas Impossíveis - Cineas Santos

De 8ª SALIPI


Sempre que faz referência ao Salão do Livro do Piauí, o escritor Edmílson Caminha, citando autor que desconheço, afirma: “Se os meninos soubessem que era impossível, não teriam feito”. Exagero à parte, a sentença contém muita verdade. Quando, em 2003, os professores Wellington Soares, Luiz Romero e Nilson Ferreira me propuseram participar do que, à época, me pareceu uma aventura errante, fui taxativo: Estou fora! Eu tinha as minhas razões. Durante cinco anos, a duras penas, realizei, praticamente sozinho, cinco edições do seminário Língua Viva, tarefa para Hércules nenhum botar defeito. Por minha conta e risco, eu convidava grandes autores (Celso Pedro Luft, Antônio Houaiss, Evanildo Bechara, Napoleão Mendes de Almeida, Celso Cunha, entre outros), alugava espaço, contratava som e, como um camelô, saía pelos colégios de Teresina tentando convencer os diretores das escolas a liberarem (na verdade, libertarem) os professores para que pudessem participar do evento. Colecionei toneladas de nãos. Eu estava farto daquilo.

Os três mosqueteiros voltaram à carga e, desta feita, já me trouxeram um projeto formatado, muito embora nenhum deles tivesse a menor ideia do custo de um salão e, menos ainda, de onde sairiam os recursos para bancá-lo. A bem da verdade, nenhum de nós tinha qualquer experiência na realização de grandes eventos. Não bastasse isso, éramos (somos ainda) apenas um punhado de duros. Mas o Wellington é movido a desafios e acabou me arrastando para a empreitada. Assim, na primeira semana de julho de 2003, realizamos a primeira edição do SALIPI no velho Centro de Convenções de Teresina. De todas as dificuldades, a maior foi convencer os livreiros a participar. Com a colaboração de alguns parceiros – Governo do Estado e Prefeitura de Teresina, desde a primeira hora – realizamos o que, aos olhos de muitos, parecia impossível: um grande e belo salão. Eu não teria a menor dúvida em afirmar que o SALIPI só se viabilizou porque os teresinenses adonaram-se dele. Aspiração antiga, o público compareceu em peso, obrigando os incrédulos a prestarem atenção nele. A mídia piauiense, por seu turno, acreditou no Salão e deu-lhe a necessária visibilidade.

Ao longo desses anos, tivemos muitas decepções e grandes alegrias. Para mim, a maior delas foi receber de uma cidadã do povo um cofrinho de barro com um punhado de moedas e o pedido de desculpas: “O senhor me desculpe, mas espero que dê para pagar o almoço de um dos convidados”. Não deu porque aquele cofrinho continua fechado: tornou-se uma espécie de amuleto. Como um objeto sagrado, é inviolável.

Impossível saber aonde essa aventura vai dar, mas parece que até a grande mídia já descobriu que a SALIPI existe. Para mim, que ultimamente tenho participado pouco, ver milhares de crianças da periferia da cidade adentrarem o espaço do Salão, como gralhas felizes, já me diz que valeu a pena. O Poeta tem razão: “Tudo vale a pena/ se a alma não é pequena”. A nossa é do tamanho do universo.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A bola sobrenatural - Toninhobira

De Jabulani



Nosso país realmente é uma pérola, quando se fala de futebol, a bola da vez, é a própria bola que será usada pelos astros dos países envolvidos nesta edição da Copa do Mundo a ser realizada na África do Sul. Como não podia deixar de ser os jogadores brasileiros foram os primeiros a criticar a pobre bola, concebida pela ADIDAS, empresa que há 11 anos circunda as copas pelo mundo com sua grife, inundando de milhares de dólares, euros, os milhares de jogadores. Logo na chegada e contato com a bola, o goleiro brasileiro já critica a pobre bola como produto de supermercado, numa clara insinuação de que estes estabelecimentos vendem os piores produtos de esporte quando se fala de bola, o que pode ser um extremismo, visto que marcas famosas e oficiais são comercializadas nestes.

A tal bola recebeu o nome de JABULANI, que no dialeto africano ZULU significa CELEBRAR, que cabalisticamente fora confeccionada com o numero 11 em seu conceito, sendo ainda pintadas em 11 cores, que é o numero de jogadores de um time de futebol e fechando com as 11 comunidades nas quais se divide a África do Sul e 11 idiomas presentes no país.

Segundo a ADIDAS esta bola fora exaustivamente testada ao longo de cinco meses por vários e países e competições, inclusive em uma competição oficial a Copa das Confederações, numa alusão de descrédito as criticas do famoso goleiro brasileiro. Com esta situação os críticos de plantão, já insinuaram que desculpas já estariam sendo dadas, para justificar um possível fracasso deste goleiro ou da própria seleção da era Dunga. Mas pondera-se, que a bola possa sofre influencia de trajetória por problemas de altitude em algumas cidades da África.

Cá com meus botões fiquei a pensar naquelas bolas do passado, feitas de couro costuradas com aquelas agulhas imensas que nosso cronista Claudionor Pinheiro já relatara em suas belas crônicas do futebol daquele tempo. Quando molhadas pesavam o dobro, fico a imaginar, como os nossos melhores jogadores se destacaram usando estas bolas, rudemente confeccionadas sem nenhum teste de laboratórios como as atuais. Seriam eles sobrenaturais ou super-jogadores? Ou nosso rebanho bovino se apaixonara pelo futebol de campo, e assim forneciam um couro amigo, que aplicado nas bolas as deixavam adaptadas ao malabarismo e pontarias de nossos jogadores?

Quando o assunto parecia contornado, outro jogador brasileiro agora um atacante, sai com mais uma pérola, dizendo que a bola parecia sobrenatural, pois sentia que ela tomava rumo estranho quando saia de seus chutes, volta a polemica sobre a inofensiva JABULANI cantada por todas as mídias especializada.

Cá com meus outros botões restantes vaguei por aquele país, comecei a ver coisas, nos campos desnivelados, esburacados, minados por todos os lados, onde jamais jogadores ousariam mostrar suas artes, pois nem se envolvem em conhecer, saber o que se passa ou passou com aqueles tantos de sacis, com suas muletas rudes a perambularem e jogarem bolas em tais campos. Nesta viagem encontrei vários seres esqueléticos mutilados, que driblavam a vida, a sorte, mas não se livraram da morte. Eram oriundos de Soweto, que jogados em valas rasas, ouviram o toc- toc das JABULANI e assim ressuscitaram invadindo os luxuosos e suntuosos campos construídos para o mundial. Numa algazarra subterrânea estes seres estariam interferindo nos rumos das bolas dando a elas esta qualidade sobrenatural, que tanto pavor vem causando aos nossos jogadores, com suas pérolas de definições para a JABULANI que ora rola em treinos da nossa Mama África do Sul.

Atenção jogadores de todas as seleções, principalmente a nossa canarinho. Aconselho a conhecerem a África por *Nelson Mandela, que poderá explicar e orientar como conviver e comportar na sua África, sem que sejam afetados e estejam assustados por tantos mistérios que encerram naquela terra. Assim quando a bola rolar oficialmente, saberemos quem aprendeu a lição.

Brasileiro eu torço, mas não sofro.

* “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." [Nelson Mandela].

Dadá Maravilha (rei das pérolas) deu a dica aos boleiros para conseguir o sucesso esperado com a bola do Mundial sul-africano. "A bola, você tem que falar com ela, -"oh querida, minha queridinha, minha delícia", chama ela de meu amor, dá carinho pra ela que ela te atende. Conversa com ela. Chama ela de mocinha, de maravilhosa, de linda, elogia, trata ela bem, dá carinho e amor. Afinal, quem é que não gosta de ser bem tratado?".

Mais do autor: http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=68012

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Que Fim Levou Ana Maria?

De Cavaleiros Medievais

Compreendi a dor da solidão depois que os bárbaros tomaram de assalto a nossa casa e levaram a minha prima Ana Maria para um mundo além de nossa imaginação. Nessa hora o sol se escondia atrás do Cruzeiro dos Montes, formando um clarão avermelhado e triste. O Cruzeiro era uma tosca cruz de madeira, fincada no topo do morro mais alto e podia ser vista de mais de légua de distância. Ou, como diziam os primitivos, “até onde o olhar do homem pode enxergar as criações divinas”.

Naquela tarde as galinhas se aninharam mais cedo no poleiro. Os pássaros procuraram abrigo seguro entre as folhagens das árvores que resistiam ao verão inclemente. As cigarras cantaram réquiens metálicos como carpideiras em noite de luto. Pareciam adivinhar a minha tragédia particular, embora não fossem elas insetos de mau agouro.

Ana Maria era a filha mais nova do meu tio Oduvaldo. Sua casa ficava perto da nossa, menos de meia légua, por isso suas visitas eram constantes, com ou sem companhia. Eram os tempos da inocência, não havia roubo nem violência física. Fomos criados unidos na mesma traquinagem e gozando da liberdade que o campo nos oferecia. Porém, naquela tarde, Ana Maria andava reticente e triste, sem seu riso brejeiro e a espontaneidade inocente da pré-adolescência.

– Você está esquisita, Ana. Que bicho lhe mordeu?
– Não sei, Tomás. Estou sentindo uma coisa no peito.
– Como assim?
– Minha mãe disse que virei mulher e terei que casar.
– Casar? Você não tem nem namorado. Quer se casar comigo?
– Ora! Deixe disso! Somos primos, se esqueceu? Minha mãe disse que primo que casa com prima os filhos nascem aleijados.
– E como é que os filhos nascem?
– Não sei. Ouvi minha irmã Maristela comentar que é por entre as pernas, onde a gente faz xixi.
– E por que tia Florinda disse que você agora era mulher?
– Também não sei. Mas ela disse isso no dia que acordei de manhã e a cama estava empapada de sangue. Me assustei e gritei por socorro. Minha mãe apareceu sorrindo e disse que era o “chico” que tinha chegado e que todos os meses isso ia acontecer, que era coisa de mulher. Depois ficou cochichando com minhas irmãs e, quando meu pai chegou da roça, ela disse assim: “Oduvaldo, Ana Maria virou mulher e já pode se casar”. E ele fez uma cara de satisfação e disse: “Bom, nesse caso vou falar com Malaquias pra marcar a data do casamento”.
– Malaquias? Quem é ele?
– Não sei. Nunca ouvi falar.
– Vamos brincar de pega-pega?
– Vamos. Você me pega primeiro. – disse e saiu correndo pelo terreiro, esquecida que virara mulher e podia se casar. A gente não entendia nada disso. E não queria entender. Tudo ao seu tempo, dizia meu pai. Crianças não precisam entender os problemas dos adultos. Como em Eclesiastes: “Há tempo para plantar e tempo para colher”. Nosso tempo, embora não estivesse escrito nas Sagradas Escrituras, era só para brincar.

Havia três dias que Ana Maria estava lá em casa sem que eu atinasse o motivo dessa longa hospedagem. Isso só acontecia quando os meus tios viajavam e os meus primos ficavam sob os cuidados dos meus pais. Mas iam todos eles, do menor ao maior, no total de oito. A mais velha era Maristela, com dezessete anos. O mais novo dos homens era Edilson, e tinha uma enorme hérnia no umbigo, lembrando uma laranja de caroço. Havia também: Totonho, Jackson, Regina, Berivaldo e Raimundo, mais conhecido por Mundinho.

Ana Maria era da minha idade: doze anos. Nascemos no mesmo dia e mês. Comemorávamos nosso aniversário na mesma casa, para não ter que dividir os convidados. Um ano era na minha, no outro, na sua. Diziam sermos primos-gêmeos.
– Será que esse ano vem todo mundo pro nosso aniversário? – perguntei
– Hein?! Ah! sim! Mas ainda está longe.
– Eu sei. É que não estou agüentando esperar esse tempo todo.
– A gente devia ter nascido com seis meses de diferença.
– Por quê?
– Assim não precisava esperar um ano pra reunir todos os primos.
– É mesmo.

Nossa conversa fora interrompida por um chamado de minha mãe:

– Ana Maria, venha aqui experimentar o vestido!
– Que vestido?! – perguntei.
– O de noiva. Você não sabe que sua prima vai se casar amanhã? Ela está aqui porque estou costurando seu vestido.
– Eu?! Estou sabendo agora. Não sabia nem que ela tinha namorado.
Ana Maria caiu em soluço. Daqueles três dias, somente naquele momento se dera conta de sua sorte.
– Não quero me casar não, tia! Fale com minha mãe. Ainda sou muito nova e nem conheço meu noivo. Minhas irmãs são mais velhas que eu, por que não elas? Por favor, me ajude, tia!
Senti minha mãe hesitar. Amarelou penalizada. Abraçou Ana Maria e falou rouca de emoção:
– Não posso, minha filha! Essa é a nossa sina de mulher. Conforme-se com seu destino e vamos entrar que Oduvaldo vem já lhe buscar.

Ana Maria caminhou trôpega, como se carregasse o mundo nas costas. Sentei-me no avarandado e fiquei matutando, tentando entender o que se passava. Não podia ser verdade. As duas estavam brincando, tentavam me assustar. Só podia ser isso. Diziam que Ana Maria ainda fazia xixi na cama, como era que podia se casar?

Não queria imaginar a vastidão daquela campina sem as suas alegres peraltices. Desde quando nos entendíamos por gente que brincávamos ali, de pega-pega, peteca, pula-corda. No fim do dia, sentávamos no oitão da casa para nos extasiar com o entardecer no horizonte. Como naquele momento, antes de sermos interrompidos pela minha mãe. Éramos crianças felizes e imaginávamos que assim seria para todo o sempre.

O fim veio a galope. Dois cavaleiros apearam à porta. À sombra da quase noite, lembravam dois bárbaros em missão de rapto da princesa na torre do castelo.

– Ô de casa! Doralice!

Minha mãe saiu segurando a mão de Ana Maria. Ambas choravam.

– Não me deixe ir, tia! – implorou minha prima.
– Nada há a se fazer, Ana. Você vai se acostumar. É só uma questão de tempo. Oduvaldo, converse com o noivo e peça pra ter paciência. Ana ainda é uma criança.
– Já conversei, Doralice. Fique sossegada. Vamos, Ana! Antes, se despeça do seu primo Tomás. Esta será a última vez que vocês poderão conversar. Depois do casamento você vai pra longe.

Ana Maria correu ao meu encontro e me abraçou soluçando. Pediu-me para rezar por ela. Disse para eu não me esquecer dos nossos momentos, porque eu estaria sempre em suas lembranças, principalmente no nosso aniversário. Montou na garupa do irmão enquanto o meu tio levava com extremo zelo o vestido de noiva. Antes de desaparecer no horizonte, virou-se e jogou um beijo. O primeiro e único de nossas vidas.

No dia seguinte acordei entre soluços. Sentia uma dor no peito, um nó na garganta, uma vontade de sair correndo gritando por ela. Levantei-me e a casa estava em alvoroço. Todo mundo se preparava para o casamento, cada um envolvido em cuidar de sua própria vaidade. Esqueceram-se de mim. Minha mãe levou um susto quando me viu.

– Tomás, você ainda está assim! Corra, vá se aprontar que o casamento é daqui a duas horas e ainda temos que ir pra rua!


A igreja estava enfeitada para o evento. Havia um tapete vermelho estendido até o altar. Chegamos a tempo de nos acomodarmos no banco da frente. Era o primeiro casamento que eu participava e tinha que ser justamente o dela. O mundo não era justo.

A organista dedilhou a marcha nupcial e o povo se levantou em obediência ao comando musical. Todos olhavam numa só direção: a porta da frente e a entrada compassada de Ana Maria. Parecia assustada dentro do vestido de noiva, que me lembrou uma mortalha. Caminhava trêmula, vacilante. Em suas mãos, em vez de um buquê de flores, a boneca de matéria plástica por mim arrematada no último leilão beneficente da igreja. Sua boca, ressecada pela desdita, sufocava um grito de agonia. Ao passar por mim, seu olhar refletia a angústia aguda de quem está prestes a selar aliança com o próprio carrasco.