sábado, 28 de maio de 2011

Luís Pimentel - Nogueira, o nó na madeira

Por esses dias, no dia 5 de junho, faz 11 anos que a música brasileira perdeu um de seus mestres sagrados e consagrados: o cantor e compositor João Nogueira, autor de sambas marcantes como Nó na madeira, Espelho, Um ser de luz, Clube do samba e Baile no Elite, entre tantos, quase sempre em parceria com feras Paulo César Pinheiro, Nei Lopes ou Edil Pacheco. Carioquíssimo como poucos, João – uma das mais belas vozes do nosso cancioneiro – nasceu no Méier, no dia 12 de novembro de 1941 (faria setentinha este ano). Era também um grande contador de causos, e foi personagem de alguns, como este que me contaram e eu conto aqui:

Contam que, se apresentando em Belém do Pará, o nosso artista resolveu dar uma volta no tradicional mercado Ver o peso, onde se compra de pirarucu seco e tucupi molhado a roupas, eletrodomésticos e folhas medicinais para curar de um tudo. Queixando-se de uns “probleminhas” de saúde, Nogueira procurou uma daquelas barracas especializadas em ervas, acompanhado do sobrinho, empresário, cantor, pau-pra-toda-obra, companheiro de fé e medianeiro Didu Nogueira.´

Amado e conhecido no Brasil inteiro, João foi reconhecido pelo caboclo do balcão e começou logo a fazer os pedidos:

– Meu camarada, qual é a folha boa para tratar diabetes?
– Essa aqui – respondeu o paraense, de primeira.
– E pra circulação?
– Essa! Desentope tudo o que é veia!
– E para essas coisas de estômago, esôfago, azia pós-esbórnia, o amigo tem alguma coisa?
– Eita! É comigo mesmo. Pode cozinhar essa casquinha de pau. É tiro e queda – e foi juntando a mercadoria escolhida. – Mais alguma coisa?
– Essa folhinha aqui serve pra quê? – perguntou João.
– Espinhela caída, joanete, inflamações generalizadas, cansaço, enxaqueca. Também serve para limpar a voz. Pro senhor, então, é um santo remédio.

João Nogueira pediu também umas misturas boas pros rins, um preparado pro fígado e mais meia dúzia de cipós, mandando embrulhar tudo.

Satisfeito com a venda, mas preocupado com a saúde do freguês famoso, o caboclo comentou baixinho com Didu:

– Arre, égua, véio! O nó-na-madeira aí tá bem ruinzinho, num tá?



quinta-feira, 26 de maio de 2011

Antonio Torres - Carta aos jovens escritores de Palmeira dos Índios

Meninos, eu conto:


Foi na cidade de Alagoinhas, no interior da Bahia, que um professor chamado Carloman Carlos Borges emprestou um romance intitulado Angústia a um aluno que ele flagrou lendo um livro de poemas com este título: Amo! Assim mesmo, com ponto de exclamação! Passar de Amo! para Angústia não deixou de ser um tratamento de choque, radical mesmo, para aquele rapazinho que, ao trocar um autor dito J. G. de Araújo Jorge por um certo Graciliano Ramos, iria avançar rapidamente na sua escada ascendente de leitor, numa escalada sem volta. E de degrau em degrau, acabou se tornando um escritor. Este que agora lhes escreve, valendo-se de uma memória do seu tempo de colégio para saudar, com a mais viva emoção, todos os participantes do Concurso Jovem Escritor/ Prêmio Graciliano Ramos, em boa hora promovido pelo Instituto Federal, campus de Palmeira dos Índios.


É um momento raro para este velho escriba, pelo qual muito agradeço à professora Vanúsia Amorim: o de poder me dirigir aos jovens escritores da terra do velho Graça, aquele cuja leitura, desde meus anos mais juvenis, sempre me provocou um grande impacto, tanto pelos rigores de seus temas e de sua escrita, quanto pelo seu estilo admirável.


Conto isso para dizer que nascer em Palmeira dos Índios, como em qualquer outro lugar do estado de Alagoas, é trazer nas veias as marcas da melhor literatura que este nosso imenso país já foi capaz de produzir, e das quais o baiano aqui se sente impregnado. Porque esta é a terra também de Jorge de Lima - o poeta do qual hoje se diz haver nos legado uma obra “que permanece robusta e poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”; de Lêdo Ivo, que será homenageado em setembro, na próxima Flimar, a Festa Literária de Marechal Deodoro - e cuja produção poética, monumental, está reunida num volume de mais de mil páginas, em edição da editora TopBooks, do Rio de Janeiro. De cepa tão vigorosa saiu ainda o jornalista e escritor Audálio Dantas – que será o patrono da próxima Bienal do Livro de Maceió, numa justa homenagem ao alagoano de Tanque D’Arca que tanto já brilhou, e continua brilhando, na imprensa e na vida artística de São Paulo, onde idealizou uma exposição de grande sucesso, chamada O chão de Graciliano, e de quem se aguarda a publicação de seu novo livro, que terá como protagonista o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que teve sua vida tragicamente interrompida nos porões da ditadura militar, um tempo negro da nossa História, do qual certamente vocês já ouviram falar.


Portanto, jovens escritores: como o lastro literário de vocês é um legado do próprio chão em que nasceram, reforço-o com duas flores do jardim do poeta português Alexandre O’Neill, os dois versos a seguir que lhes ofereço como um prêmio de incentivo às suas futuras criações:


Folha de terra, ou papel,
tudo é viver, escrever.


Mãos à obra.


Antônio Torres


Itaipava (Petrópolis, RJ), junho de 2011.





terça-feira, 24 de maio de 2011

Cineas Santos - Os meninos sanfoneiros

Já escrevi (não sei onde) que os meninos de minha aldeia, no sertão do Caracol, tínhamos um sonho recorrente: ir para São Paulo. Melhor seria: ir a São Paulo, já que não pretendíamos ficar por lá. Na verdade, “a terra da garoa” infundia-nos um misto de fascínio e medo. Mas, como os muçulmanos que não devem morrer antes de visitar a Meca, sertanejo que se preze precisa conhecer “a cidade que não pode parar”, mesmo que seja para morrer atropelado. Mais que uma cidade, São Paulo era o passaporte para muitos sonhos de consumo, o mais caro deles: uma sanfona vermelha, de preferência Scandalli. Por amor à verdade, devo confessar que não era exatamente a música que nos fascinava; a sanfona, acreditávamos, era apenas o caminho mais curto para chegar ao coração das mulheres... Por falta de qualquer instrumento que emitisse som, construíamos nossas sanfoninhas com palha de carnaúba e tocávamos música inaudível para ninguém, ou melhor, tocávamos para nossas musas invisíveis...

O sonho de me tornar sanfoneiro evaporou-se quando vi o Sivuca executando um frevo. Aquilo me pareceu coisa de mágico. Pensei comigo: por mais que eu me empenhe, não chegarei a tanto, e menos que isso não me satisfaz. Sem perder o gosto pela sanfona, desisti até mesmo de tentar. Quanto às mulheres, deixa quieto...

Essas lembranças tão caras me ocorreram ao ver, na semana passada, no meio da Praça Pedro II, dois meninos tocando sanfona como gente grande. Acompanhados por uma banda esperta, Zaqueu da Boa Hora e Sandrinho do acordeom fizeram um show de arrepiar. Tocaram tudo: de Escadaria a Feira de Mangai, com aquele atrevimento que só os moleques abusados têm. Zaqueu começou a tocar antes de perder os dentes de leite; Sandrinho ainda não os perdeu. O primeiro é natural do interior de Boa Hora; o segundo é sertanejo de Dom Inocêncio. Unidos pela paixão da sanfona, fizeram-se amigos, parceiros e tocam como se estivessem dialogando, com alegria, inventividade e, acima de tudo, competência. São os meninos sanfoneiros do Piauí.

Curiosamente, os dois cresceram vendo e ouvindo o chamado “forró de plástico”, com toda aquela parafernália de luz, cor e bundas em profusão. A despeito disso, preferem seguir as pegadas de Luiz Gonzaga, Sivuca, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos, Osvaldinho, Camarão e outras feras batizadas. O cantor Chico César pode ficar sossegado: o “forró de plástico” é um modismo com prazo de validade vencido; o forró autêntico, puxado a sanfona chiadeira continuará sendo o sonho dos meninos sertanejos. Zaqueu e Sandrinho que o digam!