sábado, 31 de março de 2012

Cineas Santos - A vida sem Chico Anysio

Tivesse de definir Chico Anysio numa única frase, eu recorreria a Mário de Andrade: “Uma tempestade de homem”. Chico não era um; era uma legião. Locutor, roteirista, compositor, poeta, contista, ator, pintor e, acima de tudo, humorista. Se o humor é, como afirmava Millôr Fernandes, a quinta-essência da arte, Chico Anysio era a quinta-essência do humor brasileiro. Quando falo humor, estou pensando naquele conceito magistralmente concebido por Ziraldo: O humor, numa concepção mais exigente, não é apenas a arte de fazer rir. Isso é comicidade, ou qualquer outro nome que se escolha. Na verdade, o humor é uma análise crítica do homem e da vida. Uma análise não necessariamente comprometida com o riso; uma análise desmistificadora, reveladora, cáustica. Humor é uma forma de tirar a roupa da mentira, e o seu êxito está na alegria que ele provoca pela descoberta inesperada da verdade. (Veja-1969).

Há quem afirme que Chico Anysio foi apenas um “criador de personagens engraçados”: ao todo, criou 209. Permitam-me discordar. A exemplo de Fernando Pessoa, Chico criou heterônimos, se é que se pode aplicar o termo ao caso. Como bem afirma Boni: “Seus personagens não eram uma peruca e uma maquilagem; eram uma maneira de sentir”. Poderia ter acrescentado: personagens com identidade, história de vida, virtudes e defeitos, como qualquer ser humano. Ao encarnar Azambuja ou Popó, para citar apenas dois exemplos, Chico comportava-se como o cavalo, naquela acepção usada na umbanda, a conduzir criaturas com existência própria.

Mestre do humor, Chico Anysio foi também um exemplo de generosidade: na famosa “Escolinha do Professor Raimundo” acolhia os humoristas mais velhos, alguns em dificuldades financeiras, e, ao mesmo tempo, abria caminho para os novos. O depoimento emocionado da atriz Cláudia Gimenez o confirma: “Ele me inventou. Eu era inexperiente e ele me colocava em frente à câmera e dizia: ‘eu sou mais você’. Nunca existiu um artista maior que o Chico. Era completo”. Chico que, às vezes, se comportava como um ressentido, merecia estar vivo para ver o quanto é amado do povo brasileiro. Não fosse lugar comum, diríamos: a vida perdeu muito de sua graça com o silêncio de Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho. Que fique o exemplo.


quinta-feira, 29 de março de 2012

Antonio Risério - Primavera baiana

Embora o meu sentimento seja de urgência, quero conversar com calma, que o assunto é sério: Salvador.

Numa de suas peças de teatro, Shakespeare faz a pergunta fundamental: “O que é a cidade, a não ser as pessoas?”.

E me lembro disso porque nesta semana um amigo me disse, em tom de quase desencanto: “Nosso maior problema, em Salvador, é que não sabemos nos ver como cidadãos”. Está certo. E, neste sentido, o maior problema atual de Salvador somos nós mesmos.

A cara de Salvador não pode ser a da “grand vendeuse”, a da balconista-mor Ivete Sangalo, em pose autoritária, dizendo a frase imbecil: “Quem tem força, tem preço”.

Em Salvador, hoje, devemos dizer coisa bem diferente: precisamos levantar a cabeça, recuperar a disposição, buscar o entusiasmo, nos mobilizar para dizer, alto e bom som, que não aceitamos o que estão fazendo com a nossa cidade. Chega de passividade. Se o que está acontecendo com Salvador (avacalhação e destruição da cidade) estivesse acontecendo em Porto Alegre, Curitiba ou São Paulo, não tenham dúvida: gaúchos, curitibanos e paulistanos teriam subido nas tamancas e saltado na goela da prefeitura.

E nós, não vamos fazer nada? Felizmente, parece que sim, que é possível. As pessoas começam a protestar aqui e ali. Exemplo disso, entre outros, foi o artigo que Fredie Didier Jr. publicou neste jornal, no domingo passado. “Salvador não passa por um bom momento histórico”, escreveu Didier. “Não falo da crise em sua monumentalidade: Pelourinho abandonado, metrô inacabado, ruas sujas. Embora grave, este tipo de problema é de solução mais fácil. Não me refiro, igualmente, à violência que nos assola. A violência impressiona, mas não destoa do que acontece em outras metrópoles. Falo de outra espécie de crise, mais profunda e de efeitos mais deletérios. Salvador está em crise existencial”.

A cidade apequenou-se, conclui Didier. Para, então, incitar: “Temos de retomar a nossa caminhada e refundar a cidade. Dar início a uma espécie de Renascença baiana”.

Mais: “Salvador merece que façamos tudo isso por ela e a gente merece voltar a sentir orgulho da nossa cidade”. Perfeito. Já um outro amigo meu, apropriando-se da expressão hoje em voga para falar das grandes transformações que rolam no mundo árabe, me apareceu com uma frase ótima: “Precisamos promover alguma espécie de primavera baiana”. Sim, acho que está mais do que na hora de começar isso. É claro que não se trata de nenhuma comparação com o Oriente Médio.

O que queremos é dar um jeito na cidade. Salvador sofre, hoje, com uma coincidência infeliz: uma desprefeitura que mescla estupidez e incompetência e um governo estadual omisso diante dos problemas da cidade (e, como me diz ainda um outro amigo: “Menos com menos só dá mais na abstração matemática; na vida real, menos com menos dá menos ainda”). Mas não estamos condenados a assistir a isso sem dizer ou fazer nada. Em nome de nossas melhores tradições contestadoras, estamos na obrigação de nos mobilizar. Podemos, sim, promover uma primavera baiana.

Basta querer. Somar as nossas vozes nessa direção. Na mídia tradicional e na internet. Em blogs, no facebook, no twitter. Vamos bater na mesa e dizer que cidade nós queremos. Salvador, hoje, não é somente uma cidade abandonada, que está sendo progressivamente destruída. Mais que isso: é uma cidade humilhada. E não temos razão alguma – existencial, cultural, política ou histórica – para engolir esta humilhação. A hora é de aglutinar protestos isolados, manifestações soltas, vozes pontuais.

Ou nos aproximamos e batemos na mesa, para reverter a situação atual e escorraçar a estupidez e a inércia, ou a cidade vai naufragar de vez. É hora de Salvador voltar a ser ativa, altiva e criativa – como já foi em outros momentos.

Em nossa história, temos diversos exemplos de enfrentamento e superação de reveses e crises. Não é agora que vamos nos comportar frouxamente, como se esta cidade fosse uma cadela trêmula, com o rabo entre as pernas – e não o lugar onde teve início a aventura civilizacional brasileira.

E-mail do autor: ariserio@terra.com.br

quarta-feira, 28 de março de 2012

Luís Pimentel - O Millôr entre os melhores

"Levar o Chico e o Millôr?
Não tenho dúvida:
Deus está de mau humor!"
Cineas Santos


Pedi a dez amigos que relacionassem dez brasileiros geniais. Pois bem: em todas as listas aparecia, entre os nomes, esse com meia dúzia de letras: Millôr. O maior ídolo dos humoristas brasileiros, para quem escrever e desenhar parecia muito fácil, teve infância das mais difíceis. Ficou órfão de pai com menos de um ano de vida, e com menos de 10 perdeu a mãe. Ambos – pai e mãe – morreram com apenas 36 anos de idade. Estudou a vida inteira em escolas públicas e é formado, como ele mesmo já escreveu, “pela universidade do Méier”). Tinha três irmãos – um deles, o também jornalista Hélio Fernandes.

     Millôr Fernandes estreou na profissão com 14 anos, na revista O Cruzeiro, onde fez de tudo o que se pode imaginar dentro de uma redação. Começou como contínuo e, ao abandonar a publicação, homem feito e jornalista dos mais respeitados, deixara criações marcantes como a coluna do Vão Gôgo (pseudônimo inventado por ele e que veio a ser, provavelmente, o espaço autoral mais lido da revista, quiçá da imprensa brasileira, entre 1948-1950) e a coluna Pif-Paf  – embrião da revista quinzenal com o mesmo nome –, lançada no dia 15 de maio de 1964, um mês e meio depois da revolução, e fechada quatro meses (ou oito edições) depois.

     Millôr participou de duas experiências marcantes na imprensa brasileira: a criação do Pasquim – que ela ajudou a fundar –, em 1969, e um ano antes a revista Veja, onde começou a ocupar uma página, a convite do editor-geral Mino Carta. Começou a publicar em O Pasquim logo nos primeiros números, e durante um período dirigiu a redação do semanário. As duas experiências lhe trouxeram aborrecimentos políticos, como a quase prisão junto com os demais editores do Pasca e o processo sob a Lei de Segurança Nacional, por conta de um desenho publicado em Veja – em página inteira, um cara com um martelo, pregando um caixão com a palavra democracia. O cara era o general Newton Cruz, à época o todo-poderoso chefe do SNI, que o processou.

     Velho homem de imprensa (muito antes do Agamenon Mendes Pedreira), Millôr Fernandes ocupou espaços nobres também na Isto É, O Dia e no Jornal do Brasil, sempre escrevendo e desenhando. Autor teatral e tradutor dos mais respeitados, deixa mais de 50 livros publicados e lançou, em 1994, uma obra definitiva, A Bíblia do caos, reunindo mais de 5 mil registros em texto do genial e “irritante guru do Méier”, que, com certeza, vai fazer uma falta irritante.

terça-feira, 27 de março de 2012

Maria Helena Bandeira - Amores sem cheiro


Por que os amores virtuais são tão intensos? Esta é uma pergunta que me impressiona quase tanto como a que indaga sobre a razão de nos apaixonarmos por determinada pessoa em especial e não por outra, mais adequada.

Nossa alma divaga por caminhos suburbanos, entra em estadas vicinais e desemboca em atoleiros atrás de um sorriso, uma voz, um detalhe que nos impressiona. Feromônios? É possível, talvez sejamos compatíveis com determinados odores especiais, em escala não percebida pelo olfato habitual. Isto explicaria parte da questão. 

Mas... e a paixão virtual? A capacidade de se envolver amorosamente, através de relações micro a micro ou telefônicas, sem que haja a menor probabilidade de viagens feromônicas? O que leva as pessoas (e tenho conhecido muitas, homens e mulheres) a se envolver, não apenas afetivamente, não apenas platonicamente, mas eroticamente, passionalmente, com outras que nunca viu?

Uma explicação possível e lógica seria uma volta à adolescência. Na Net somos todos atemporais, sem idade, a virtualidade nos permite escolher o rosto e as características que desejamos. Nada mais natural do que o desejo de retomar um período de descompromisso, em que o amor, ele mesmo, era assim, uma viagem narcísica, um perambular pelas emoções easy rider, um caminho Gideano do prazer pelo prazer. Neste sentido a explosão passional virtual seria a redescoberta de um erotismo juvenil ainda centrado no próprio umbigo.

Outra explicação mais óbvia seria a da solidão. Neste mundo em que as pessoas convivem, mas não compartilham, em que solidões a dois, três e quatro, são freqüentes e repetidas, a Net é um paraíso de iguais que se encontram, trocam os sonhos reprimidos do travesseiro pelo mais excitantes da tela, onde existe uma respiração e uma carne do outro lado, não apenas espuma e macela, mas bocas imaginadas e sexos sugeridos.

Masturbação a dois, é verdade, volta ao Eros primitivo em que o objeto de amor era proibido e distante ou próximo e semelhante. Mas existe outra explicação mais romântica e menos científica, uma explicação que ultrapassa a mera condição do humano biológico ou psicológico – a fantasia imbatível.

De nenhuma outra maneira o amor pode ser mais perfeito, sem falhas, completo e absoluto do que na vida virtual. Porque é não existente no real. O real é sempre partido, incompleto, falho. O sexo virtual, como a bailarina do Chico, não tem espinhas, chulé ou estrias. Não tem imperfeições nem desenganos. É sempre iluminado no seu palco principal - a imaginação que tudo pode. Nele somos o que desejamos e amamos a quem criamos. Não uma pessoa real, mas um personagem, uma divindade do nosso olimpo particular.

Por isto a força absurda das relações que através deste não-limite se criam, por isto a carga poderosa de energia descarregada através dos bytes eróticos. E pela mesma característica, os amores virtuais não são duradouros – ou se transformam em amores reais, numa outra instância de relacionamento (o que raramente acontece, justamente porque competir com a fantasia é difícil) ou se desfazem como a espuma dos sonhos, transformados em texto já lido e que perdeu o sabor da novidade. Ficará a lembrança de algo inexplicavelmente forte, um raio sobre a planície, deixando apenas o eco cada vez mais longínquo dos trovões.

Amores virtuais são uma das faces da infinita capacidade do homem de criar e acreditar no que cria.


domingo, 25 de março de 2012

A PRIMEIRA NOITE DE UM HOMEM


Era o dia 18 de fevereiro de 1973 e eu me lembro como se o pêndulo do tempo houvesse parado suas engrenagens nessa data. O meu irmão mais novo completaria 15 anos nesse dia e havia um reboliço em nossa casa nos preparativos da festa. Ele estudava no Rio de Janeiro e o seu aniversário coincidiu com suas férias escolares em Alagoinhas. Viajaria na semana seguinte e aquela festa teria, também, um tom melancólico de despedida.

Vivíamos a efervescência do movimento hippie e o Hi-Fi (usando-se a linguagem da época) seguiria o rito sagrado do rock'n roll, regado a cuba libre, o drinque sensação dos embalos nos anos setenta. Agulha nova na vitrola, uma Taterka Linear transistorizada, última geração, discos de rock variados, dos Beatles a Rolling Stones, passando pelo compacto simples de B. J. Thomas e a música-tema de Simone e Cris, personagens românticos vividos por Regina Duarte e Francisco Cuoco numa novela da Globo e que muito emocionou o país.

À tarde, durante as arrumações, apareceu uma garota de nome Cecília, vinda de não sei de onde, mandada por alguém que não sei quem, disposta a nos ajudar. Simpática, conversadeira, meu coração pulsou acelerado no nosso primeiro contato. Meus instintos de macho adolescente me diziam que rolaria algo mais além daquele aperto de mão.

- Como vai, Cecília? Toda ajuda será bem-vinda - ela sorriu brejeiro, escancarando uma sensualidade ímpar, me atraindo como formiga no açúcar. Ofereceu o rosto e a beijei roçando a língua no seu pescoço, arrancando arrepios em sua pele delicada.

- Oi, Marcelo! É Marcelo, não é? Diga no que posso ajudar pra que seu irmão tenha uma big-festa de aniversário!

“Que tal um beijo na boca?”, pensei. Ela mexia com a minha libido e me causava perturbação emocional. Acho que descobriu isso, pois passou a me provocar sem dó nem piedade.

- Pra começar, coloque a coca-cola no gelo. Depois corte os limões em rodelas que hoje libertaremos Cuba da chancela ditatorial dos porcos chauvinistas - falei convicto, embora sem entender o que minha boca pronunciara. "Porcos chauvinistas" era o chavão da época, muito usado pela resistência de esquerda em suas pichações. Queria impressionar.

Depois de encher um tonel com coca-cola e gelo, ela pegou o saco de limão e sentou-se perto de mim, faca na mão e uma tábua de carne. Cortava o limão de jeito graciosamente delicado, fazendo-me desejar ser um limão para ser cortado por aquelas mãos suaves e macias. Seus seios, rígidos e empinados, pareciam querer saltar da camiseta. Não usava sutiã e o contorno do tecido sobre seus mamilos aumentava meu desejo de navegar sobre aquele relevo voluptuoso. Disfarcei minha ereção e coloquei um disco na vitrola. Simon e Garfunkel. Cecília. Ela sorriu embevecida pela homenagem.

- Essa Cecília é uma vagabunda! - disse o meu irmão aniversariante.
- Hein?!!!!
- Cecília, a da música.
- Ahhhh! Bão!


Noite fechada. A festa seguia animada. Dez mulheres para cada homem e, à medida que alguns iam se arranjando, a estatística aumentava a favor dos homens. Eu só tinha olhos para Cecília. Ela ajudava a servir os convivas, ora carregando bandeja de salgados, ora dosando o rum do cuba libre. Andava livre e solta entre o povo. Enlacei-a pela cintura.

- Vamos dançar?
- Pensei que não fosse me convidar.

Tocava uma balada dos Beatles. Alguém pediu:

- Bota a música da Simone!

Botaram. B. J. Thomas inundou a sala em acordes dançantes de "Rock and roll lullaby". Rostos colados, passos parados, língua na orelha, boca na língua, boca na boca. Perna encaixada uma na outra, coxa ralando coxa, língua enroscando na língua, corpo balançando ao ritmo da respiração ofegante.

Certa vez li no caderno de confidências de uma prima que "o beijo era como o ferro de passar roupa: liga em cima e esquenta embaixo". Estava escrito, embora essa minha prima fosse apenas uma pré-adolescente. Se a minha tia lesse aquilo... Mas era uma sentença sábia. Ligado ou não, saía fumaça entre nossas pernas, e a dureza do meu membro parecia querer furar o resistente tecido da calça Lee. Cecília notou o meu extremo estado de excitação e se enroscou mais no meu corpo, alisando o meu cabelo e sussurrando palavras obscenas no meu ouvido, esquecida de que estávamos em plena sala da casa dos meus pais, monitorados pelas câmeras indiscretas dos olhares reprovadores dos adultos. Mas quem se importava com o mundo ao redor?

- Parem a música! - soou uma voz na sala. Voltamo-nos para ver quem era o atrapalha-gozo.

Era Sena, irmão de Aída, nossa vizinha. Com que direito ele mandava parar uma festa que não era dele? Quem convidou esse intrometido?

- Doralice, essa mulher que está dançando com o seu filho é a amante de Joel da Fercam!

O toca-discos levantou o braço automático em final de disco. Silêncio geral. Podia se ouvir o barulho dos olhares inquisidores fulminando Cecília, como se fosse a mais vil pecadora. Santa Maria Madalena! Naquela sala não havia um Cristo disposto a defendê-la! Atire a primeira pedra quem nunca pecou! Cecília, tão disposta, tão sorridente, de repente amargurada e triste.

- Deus do céu, tenha piedade de mim! Uma rapariga em minha casa, ainda por cima amante de um pistoleiro! Piedade, Senhor, piedade!

Joel da Fercam era um assassino cruel. Havia várias mortes creditadas a ele e a polícia não fazia nada. Dizia-se que a Segurança Pública morria de medo do facínora. Joel era o homem mais influente do lugar e tinha livre acesso ao gabinete do Governador. Era ele quem indicava ou demitia o delegado na cidade. Quem haveria de abrir investigação contra tão poderosa eminência parda?

Cecília saiu chorando e eu a segui como um condenado segue o seu algoz. Caça e caçador seriam caçados sem piedade caso a brevidade do nosso romance chegasse aos ouvidos do irascível assassino. Ao menos morreríamos por um motivo justo e de desejos saciados. A morte era o destino do zangão depois de cumprida a sua gratificante missão de copular a abelha-rainha. Do seu sacrifício dependia a perpetuação da espécie. Não seria justo aquela noite prometedora acabar em tragédia grega, ocasionada por uma simples denúncia de adultério ainda não concebido.

Abracei-a e seguimos andando pelo vazio da rua, contando as estrelas cintilantes no breu do céu, iluminado apenas pelas retinas faiscantes dos olhos de Cecília, em promessas sublimes de uma longa e inesquecível noite de amor.

Um galo cantou fora de horário e o silêncio da madrugada nos trouxe as vozes de Simon e Garfunkel cantando "The Sounds of Silence". Como a própria vida, a festa continuava.