Era o dia 18 de fevereiro de 1973 e eu me lembro como se o pêndulo do tempo houvesse parado suas engrenagens nessa data. O meu irmão mais novo completaria 15 anos nesse dia e havia um reboliço em nossa casa nos preparativos da festa. Ele estudava no Rio de Janeiro e o seu aniversário coincidiu com suas férias escolares em Alagoinhas. Viajaria na semana seguinte e aquela festa teria, também, um tom melancólico de despedida.
Vivíamos a efervescência do movimento hippie e o Hi-Fi (usando-se a linguagem da época) seguiria o rito sagrado do rock'n roll, regado a cuba libre, o drinque sensação dos embalos nos anos setenta. Agulha nova na vitrola, uma Taterka Linear transistorizada, última geração, discos de rock variados, dos Beatles a Rolling Stones, passando pelo compacto simples de B. J. Thomas e a música-tema de Simone e Cris, personagens românticos vividos por Regina Duarte e Francisco Cuoco numa novela da Globo e que muito emocionou o país.
À tarde, durante as arrumações, apareceu uma garota de nome Cecília, vinda de não sei de onde, mandada por alguém que não sei quem, disposta a nos ajudar. Simpática, conversadeira, meu coração pulsou acelerado no nosso primeiro contato. Meus instintos de macho adolescente me diziam que rolaria algo mais além daquele aperto de mão.
- Como vai, Cecília? Toda ajuda será bem-vinda - ela sorriu brejeiro, escancarando uma sensualidade ímpar, me atraindo como formiga no açúcar. Ofereceu o rosto e a beijei roçando a língua no seu pescoço, arrancando arrepios em sua pele delicada.
- Oi, Marcelo! É Marcelo, não é? Diga no que posso ajudar pra que seu irmão tenha uma big-festa de aniversário!
“Que tal um beijo na boca?”, pensei. Ela mexia com a minha libido e me causava perturbação emocional. Acho que descobriu isso, pois passou a me provocar sem dó nem piedade.
- Pra começar, coloque a coca-cola no gelo. Depois corte os limões em rodelas que hoje libertaremos Cuba da chancela ditatorial dos porcos chauvinistas - falei convicto, embora sem entender o que minha boca pronunciara. "Porcos chauvinistas" era o chavão da época, muito usado pela resistência de esquerda em suas pichações. Queria impressionar.
Depois de encher um tonel com coca-cola e gelo, ela pegou o saco de limão e sentou-se perto de mim, faca na mão e uma tábua de carne. Cortava o limão de jeito graciosamente delicado, fazendo-me desejar ser um limão para ser cortado por aquelas mãos suaves e macias. Seus seios, rígidos e empinados, pareciam querer saltar da camiseta. Não usava sutiã e o contorno do tecido sobre seus mamilos aumentava meu desejo de navegar sobre aquele relevo voluptuoso. Disfarcei minha ereção e coloquei um disco na vitrola. Simon e Garfunkel. Cecília. Ela sorriu embevecida pela homenagem.
- Essa Cecília é uma vagabunda! - disse o meu irmão aniversariante.
- Hein?!!!!
- Cecília, a da música.
- Ahhhh! Bão!
Noite fechada. A festa seguia animada. Dez mulheres para cada homem e, à medida que alguns iam se arranjando, a estatística aumentava a favor dos homens. Eu só tinha olhos para Cecília. Ela ajudava a servir os convivas, ora carregando bandeja de salgados, ora dosando o rum do cuba libre. Andava livre e solta entre o povo. Enlacei-a pela cintura.
- Vamos dançar?
- Pensei que não fosse me convidar.
Tocava uma balada dos Beatles. Alguém pediu:
- Bota a música da Simone!
Botaram. B. J. Thomas inundou a sala em acordes dançantes de "Rock and roll lullaby". Rostos colados, passos parados, língua na orelha, boca na língua, boca na boca. Perna encaixada uma na outra, coxa ralando coxa, língua enroscando na língua, corpo balançando ao ritmo da respiração ofegante.
Certa vez li no caderno de confidências de uma prima que "o beijo era como o ferro de passar roupa: liga em cima e esquenta embaixo". Estava escrito, embora essa minha prima fosse apenas uma pré-adolescente. Se a minha tia lesse aquilo... Mas era uma sentença sábia. Ligado ou não, saía fumaça entre nossas pernas, e a dureza do meu membro parecia querer furar o resistente tecido da calça Lee. Cecília notou o meu extremo estado de excitação e se enroscou mais no meu corpo, alisando o meu cabelo e sussurrando palavras obscenas no meu ouvido, esquecida de que estávamos em plena sala da casa dos meus pais, monitorados pelas câmeras indiscretas dos olhares reprovadores dos adultos. Mas quem se importava com o mundo ao redor?
- Parem a música! - soou uma voz na sala. Voltamo-nos para ver quem era o atrapalha-gozo.
Era Sena, irmão de Aída, nossa vizinha. Com que direito ele mandava parar uma festa que não era dele? Quem convidou esse intrometido?
- Doralice, essa mulher que está dançando com o seu filho é a amante de Joel da Fercam!
O toca-discos levantou o braço automático em final de disco. Silêncio geral. Podia se ouvir o barulho dos olhares inquisidores fulminando Cecília, como se fosse a mais vil pecadora. Santa Maria Madalena! Naquela sala não havia um Cristo disposto a defendê-la! Atire a primeira pedra quem nunca pecou! Cecília, tão disposta, tão sorridente, de repente amargurada e triste.
- Deus do céu, tenha piedade de mim! Uma rapariga em minha casa, ainda por cima amante de um pistoleiro! Piedade, Senhor, piedade!
Joel da Fercam era um assassino cruel. Havia várias mortes creditadas a ele e a polícia não fazia nada. Dizia-se que a Segurança Pública morria de medo do facínora. Joel era o homem mais influente do lugar e tinha livre acesso ao gabinete do Governador. Era ele quem indicava ou demitia o delegado na cidade. Quem haveria de abrir investigação contra tão poderosa eminência parda?
Cecília saiu chorando e eu a segui como um condenado segue o seu algoz. Caça e caçador seriam caçados sem piedade caso a brevidade do nosso romance chegasse aos ouvidos do irascível assassino. Ao menos morreríamos por um motivo justo e de desejos saciados. A morte era o destino do zangão depois de cumprida a sua gratificante missão de copular a abelha-rainha. Do seu sacrifício dependia a perpetuação da espécie. Não seria justo aquela noite prometedora acabar em tragédia grega, ocasionada por uma simples denúncia de adultério ainda não concebido.
Abracei-a e seguimos andando pelo vazio da rua, contando as estrelas cintilantes no breu do céu, iluminado apenas pelas retinas faiscantes dos olhos de Cecília, em promessas sublimes de uma longa e inesquecível noite de amor.
Um galo cantou fora de horário e o silêncio da madrugada nos trouxe as vozes de Simon e Garfunkel cantando "The Sounds of Silence". Como a própria vida, a festa continuava.
6 comentários:
Sensacional Tom, que historia bem descrita e que nos coloca na cena,vivendo cada emoção,senti o frio triste da sala quando a terrivel voz ecoou e a vitrola calou.
Bons tempos, hem?
Bela criação.
Abraços.
E bota frio nisso. Até hoje quando ouço essa música a espinha congela.
Olá!!! Que texto bem contado e gostoso de ler...imaginei a cena na minha cabeça, passo a passo...não lembro do filme, nem sei se vi...vou pesquisar pra ver se lembro-me dele. Interessante de teus textos e de minha leitura é que quase sempre encontro o amor, e presto mais atenção nele do que em qualquer coisa. Será que to doente? rss ótimo Domingo!!!
Junya Paula
Obrigado pela generosidade dos comentários, amigos.
Êta Véio desenrolado!!!! Parabéns, coroa! Gostei muito da escrita.
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