quarta-feira, 5 de junho de 2013

Charô Nunes - Deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata!



Elogio racista é toda demonstração de admiração, afetividade ou carinho que se concretiza por meio de ideias ou expressões próprias ao racismo. Com ou sem a intenção de, que fique bem claro. Um dos mais conhecidos é o famoso "negro de alma branca” que nossos antepassados tanto ouviram. Mas não são apenas nossos homens que conhecem muito bem os elogios racistas. Nós mulheres negras também somos agraciadas com esses pequenos monstrinhos, usados inadvertidamente por amigos, familiares. Muitas vezes até por nossos parceiros.

Decidi fazer uma lista com cinco elogios racistas (e sexistas, diga-se de passagem) que muitas de nós escutamos quase que diariamente. Alguns são consenso, acredito. Outros nem tanto. Fico aguardando ansiosa para que você, mulher negra, deixe seu comentário dizendo se também acontece com você. Se concorda, se discorda. E, sobretudo, o que você faz para deixar bem claro que esse tipo de comentário pode ser tudo, menos bem-vindo e apreciado.

01. "Você é uma morena muito bonita”

Esse é o elogio racista que mais escutei em toda minha vida. Minhas primeiras lembranças são do tempo da escolinha. Mesmo mulheres como Adriana Alves ainda são chamadas de morenas, pois se acredita que chamar alguém de negra é uma ofensa racial. Se você precisa se expressar, tente um simples "você é bonita ou atraente”. Ou ainda "você é uma negra linda”, o que, dependendo do contexto pode ser tão ruim quanto.

Mas em hipótese alguma diga que uma negra é morena, moreninha, morena escura. Que não é negra. Isto sim é racismo dos graúdos, pura e simplesmente. Quando acontece comigo, digo que não sou morena e nem moreninha, sou n.e.g.r.a. O bom é que, dependendo de como essa resposta é dada, a pessoa já se toca que ela não deveria ter começado o conversê, que simplesmente não estou disponível para esse tipo de diálogo. Nem com conhecidos, muito menos com estranhos.

02. "Seu cabelo é muito bonito, posso pegar?”

Há alguns anos atrás, uma senhora ultrapassou todos os limites de uma convivência pacífica ao se aproximar de mim, cheia de dedos, me tocando sem permissão e dizendo que eu tinha uma "peruca muito bonita”. Não retruquei de caso pensado, antecipando seu constrangimento por jamais ter cogitado que uma mulher negra pudesse ter um cabelo comprido, ao natural. Minha vingancinha, e sou dessas, foi olhar aquela expressão de arrependimento por ter percebido o que fez.

Entendo que simples visão de uma negra com cabelo natural pode ser inebriante. Que persiste a completa desinformação sobre o nosso cabelo. Porém, isso não justifica o toque sem permissão. Não importa se é cabelo natural ou não. A menos que você conheça muito bem a pessoa, não toque em seu cabelo sem consentimento. Eu iria mais longe. Para mim a boa etiqueta simplesmente reza que não se deve nem mesmo pedir para tocar o cabelo de uma pessoa desconhecida.

03. "Você tem os traços delicados”

Dizer que uma negra tem traços "delicados” muitas vezes tem a ver com a ideia de que será bonita se tiver uma expressão "fina”, leia-se semelhante a de uma pessoa branca. Como se determinado tipo de nariz (ou bochechas) fosse exclusivamente dessa ou daquela etnia. Uma de suas variantes é outra expressão igualmente racista – "você é uma mulher negra bonita” – algo que ao meu ver é a mesma coisa de dizer que "você é bonita para uma negra”.

Afinal, qual a dificuldade de dizer que uma mulher negra simplesmente é… Uma mulher bonita? Porque Alek Wek tem de ser descrita como uma "mulher negra bonita” enquanto as mulheres brancas são apenas "mulheres bonitas”? Mais uma vez, toda a sutileza do elogio racista. Ele reconhece que você é uma pessoa admirável, mas sempre fazendo questão de te colocar "no seu lugar”, como se algumas fronteiras jamais pudessem ser cruzadas.

04. "Você tem a bunda linda”

Essa é uma opinião que certamente não é unânime. Faço questão de expressá-la como uma provocação que representa o pensamento de uma parcela significativa de mulheres negras. Para muitas de nós, esse comentário expressa a hipersexualização a que somos historicamente submetidas como exemplifica a triste biografia de Saartjie, denominada a Vênus Hotentote, exposta como atração circense em função da admiração que suas nádegas causaram na Europa do século XIX.

Apesar de todo respeito que tenho por tudo aquilo que acontece entre duas pessoas, preciso considerar a tradição racista secular desse tipo de discurso. Trata-se de reduzir a mulher negra a um pedacinho do seu corpo, desconsiderar sua humanidade, transformá-la num pedaço de carne exposto no açougue como aconteceu e acontece diariamente. Meu conselho é pergunte antes se a mulher a quem você pretende cumprimentar tem a mesma leitura desse tipo de elogio.

05. "Você é uma mulata tipo exportação!”

Esse elogio ainda o tratamento dispensado à mulher negra no seio da senzala, da casa grande. O pensamento que nos reduz em brinquedos sexuais. Dizer que uma mulher negra é uma "mulata tipo exportação” é esquecer uma tradição escravocrata secular, que transforma a mulher negra em "peça” que alcançará boa cotação no mercado, onde a carne mais barata é a nossa. O nome desse mercado é exotificação. Em alguns casos, hipersexualização.

Infelizmente também estamos falando sobre o modo racista com que as mulatas de escola de samba, mulheres que respeito e admiro, são mostradas e consumidas. Mulheres que levam o samba no pé, no sorriso, na raça. Que, ao invés de ser uma referência de beleza, são vendidas como frutas exóticas na temporada do carnaval. Mulheres que recentemente têm sido preteridas por "personalidades da mídia” em nome de uma pretensa "democracia racial” e muitas vezes com as anuências de algumas agremiações.


Qual é a sua opinião?

Porém, preciso dizer que os elogios racistas podem (e devem) ser subvertidos. Quando o assunto são as mulatas de quem já falei aqui, isso é bastante evidente. Ser uma mulata exportação também atesta um padrão de excelência e traduz qualidades como perseverança, força. Minha professora de dança adora dizer que a graça de uma bailarina é diretamente proporcional à sua força. Mulatas são as expressões mais concreta desse enunciado.

Por isso fiz questão de usar como título desse post, um trecho do poema de Elisa Lucinda, Mulata Exportação, que resume tudo o que tentei dizer até aqui: "deixar de ser racista, meu amor, não é comer uma mulata” como muita gente gosta de pensar. E acrescento, "opressão, barbaridade, genocídio, nada disso se cura trepando com uma escura!”. Muito menos tecendo elogios racistas, diga-se de passagem. Quem o diz é a mulata exportação do poema. Sou eu, somos todas nós que já ouvimos essas porcarias.

Nota do blog: Siga Charô Nunes no twitter e no facebook. Também pode ser encontrada no Indigestivos Oneirophanta, onde escreve sobre arte, cultura e sociedade . Ela é a responsável pelo Um Brasil de Cor, blog de colagens e notícias sobre a não-representação da mulher negra.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Cineas Santos - O olhar de cada um



         Há coisa de três anos, venho fotografando flores nos monturos de Teresina, passatempo de velho. Já tenho material suficiente para publicar um livrinho com essa beleza sazonal e efêmera que não se mostra aos olhos apressados. A experiência já me rendeu uma exposição itinerante e algumas histórias engraçadas. Há poucos dias, numa manhã de domingo, eu fotografava as pequenas flores nas proximidades do Riverside, quando passou um conhecido, parou o carro e, com ar de galhofa, perguntou: “Está procurando ouro no lixo, professor?” A exemplo do velho coronel da Chapada, “dei o calado por resposta”.

         No início da semana passada, resolvi levar o projeto a um número maior de pessoas: fiz uma reportagem sobre flores dos monturos de Teresina para ser exibida no programa Feito em Casa. As imagens falam por si sós. O resultado me deixou bastante satisfeito. De quebra, ainda ganhei este arremedo de crônica. Segunda-feira, às 9 horas, na Rua Visconde da Parnaíba, filmávamos um terreno baldio recoberto de salsas de todas as cores, inclusive azuis, raras e belas. De repente, para um automóvel de luxo e uma madame, com ar assustado, baixa o vidro da porta é pergunta: “Tem  algum cadáver aí?”. O motorista que conduzia o carro da TV Cidade Verde respondeu: “Tem, mas ainda não localizamos”. A cidadã arrancou  de vez, queimando pneus no asfalto.

         O pessoal da equipe de reportagem começou a rir. Pensando bem, como na letra daquela velha canção, “o que dá pra rir dá pra chorar”. A atitude da senhora assustada, em seu carro de luxo, permite-nos fazer duas leituras. A primeira: hoje, todos nós, independentemente do estrato social, estamos apavorados, vazando adrenalina por todos os poros, prontos para fugir ante o menor sinal de ameaça. A segunda: a TV brasileira, com raras exceções, optou por mostrar o chamado “mundo cão” com toda a crueza que o caracteriza. Os telejornais exibem, em sequência, furtos, sequestros, estupros e mortes, com requinte de sadismo. Quanto mais sórdida a notícia, melhor. Depois de assistir a um dos telejornais da noite, qualquer um, temos a impressão de que o mundo está prestes a se acabar. Melhor esperar rezando.

         Alguém que, como eu, atreve-se a mostrar a beleza singela das flores de monturo, quando poderia estar exibindo cadáveres insepultos, não passa de um “desocupado ou alienado”. Estou ciente de que corro o sério risco de ser processado por flagrante atentado ao despudor reinante. Fazer o quê? Como diria meu irmão “menos louco”, Edison do Ministério de Nossa Senhora, “cada um, para o que nasce”. Nada além.