Diante das
circunstâncias, eu confesso essa minha agonia que, antes de ser dilema, se
transformou em paradoxo: o meu irmão Dimas não gostava de missa, de padre ou de
qualquer religião. Não era ateu, porém ficava à toa na escolha do ser ou não um
cético ou um crente. Antes de se casar, cumpria suas obrigações de católico,
apostólico, romano todo santo dia; depois que se casou, sua cara-metade,
dizendo-se agnóstica, proibiu a palavra “religião” dentro de seus domínios.
Ao contrário
dele, eu vivia na sacristia, ajudando a celebrar missa e a entornar o vinho
canônico nos descuidos do padre. Era um temente a Deus e me confessava toda
semana para poder ter direito a degustar uma hóstia consagrada inteira e sentir
a leveza do corpo diáfano flutuando no espaço, conforme o que se garantia nas
aulas de catequese. Toda comunhão, uma decepção. Nunca conseguia sentir essa
sensação. Era dominado por um sentimento de culpa e me sentia o mais vil
pecador, ignorado ou castigado por Deus na hora de gozar do nirvana cristão.
Uma vez criei coragem e confessei ao padre esse meu desapontamento. Ele creditou
ao meu confessar sem estar devidamente arrependido. “Arrependei, cretino!”,
esbravejou, apontando a minha culpa para uma sacristia cheia de coroinhas e
beatas. Em vez de baixar a cabeça sentindo a culpa do pecado pelo não
arrependimento, joguei uma praga de urubu no padre e nunca mais ele pôde ouvir
confissão de alguém: na semana seguinte fugiu com uma beata que vivia, dia e
noite, enchendo o saco de Santo Antônio, pedindo casamento em troca de flores e
velas. Ambos foram proibidos de frequentar a sacristia e tiveram que mudar de
cidade.
O paradoxo se
deve ao fato dos papéis se inverterem trinta anos depois: eu perdi a fé em
padre e em missa e o meu irmão Dimas se tornou um carola de carteirinha,
daqueles que são convocados para ler as epístolas e está a ponto de virar
diácono, com direito a fazer sermão e de ler a Bíblia quando o padre estiver
com preguiça de cumprir sua obrigação canônica. Dimas reviu seus conceitos no
dia que sua mulher virou discípula do seu melhor amigo, um ateu legítimo, um radical do pancosmismo, materialista convicto, discípulo
de Holbach e seguidor do marxismo. Dimas tinha o maior apreço por esse seu
amigo e, ao ler o bilhete deixado pela mulher, dizendo que partia com Raimundão Poeta em busca de sua afirmação interior, odiou todas as
formas de ateísmo e tomou o fato como um castigo exemplar de Deus por sua
pretensa heresia.
O dilema era que, estando eu em Alagoinhas,
cidade no litoral norte da Bahia, às vésperas das festas juninas, Dimas me
chamou para ir à missa de Santo Antônio, que é celebrada toda terça-feira, na
igreja de São Francisco de Assis, para fazer uma avaliação de sua atuação como
pré-diácono.
Desde o dia
que um padre se negou a rezar missa de corpo presente no enterro do meu pai,
por pura preguiça, passei da indiferença para a rejeição aos padres, mesmo sabendo
que algum justo – se é que existe algum – pagaria pelos pecadores. Mas também
não podia fazer uma descortesia ao meu irmão. Eu era seu hóspede. Vesti a minha
domingueira – apesar de ser uma terça-feira – e o acompanhei até a igreja.
Entrar no Convento
dos Frades, ou Igreja dos Capuchinhos, ou ainda Convento de São Francisco de
Assis, foi como caminhar no túnel do tempo em viagem de retorno ao passado.
Nada havia mudado na pintura e na decoração interna. A maioria dos fiéis
presentes era de amigos ou colegas, ex-militantes do Clube São Domingos Sávio,
a escola de coroinhas mantida por Frei Fidélis. A novidade era o meu irmão que
nessa época só ia à missa se a mulher lhe desse a devida permissão. Como ela
não dava, ele nunca ia e ainda pousava de ateu, esconjurando os padres e seus
adeptos.
Os santos, os mesmos, continuavam em seus nichos
laterais sob a luz de vela. Velas estas que só são apagadas na Sexta-Feira da
Paixão, quando os santos são cobertos por mortalhas roxas. Apesar de ser um
convento franciscano, abriga outros santos cristãos: São José, Santo Antônio,
Nossa Senhora das Dores e São Domingos Sávio. São Francisco abençoa os seus
fiéis na nave-mãe, no altar-mor, onde fica a sua estátua de mais ou menos um
metro de altura, com o braço direito estendido em sermão aos pássaros. Acima
dele, dois anjos carregam Cristo ressuscitado para o Seu trono, ao lado de
Deus, o seu pai.
Atrás do altar
existe uma ala em que os outros frades assistem à missa e ficam rezando o
terço. É um ambiente sombrio, iluminado apenas por um refletor de um Cristo
crucificado em tamanho natural, de um realismo fantástico, incomum, assustador,
e Ele parece nos cobrar a culpa pelas chagas no Seu corpo, pelo Seu martírio
mortal.
Se não
houvesse um hiato de 30 anos e as pessoas ao meu redor não tivessem pintados os
cabelos de branco – inclusive eu –, diria que o tempo transcorrido seria apenas
de um sermão a outro, ou então que o convento e eu envelhecemos juntos,
tricotando nosso cotidiano com a linha invisível do Tempo.
O envelhecer
junto é parar a ação do Tempo sobre o nosso corpo, é banhar-se diariamente na
fonte da juventude, à luz de nossa compreensão da decadência corporal. É ficar
imune à corrosão ácida da sucessão das eras ante nossos olhos. Por isso que os
filhos são vistos como eternas crianças pelos pais, que se assustam quando eles
dizem que já são donos do próprio nariz e jogam a realidade tal qual como ela
é, sem meneio nem pinceladas floridas de aquarela. Nessa hora, teme-se olhar
para o espelho e ver desnudar sua imagem real, descobrindo-se andando de mãos
dadas com o implacável Senhor dos Séculos: o Tempo.
Iniciada a
missa, todos de pé, o padre (ou frei, como são chamados os capuchinhos) disse o
introito “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” e, no “amém”,
desapareceu atrás do altar. O coral abafou o ruído da queda. Em vez de
antífonas, uma súplica desesperada do meu irmão, dublê de diácono: “Há algum
médico aqui que possa socorrer o padre?” Não havia. Mas surgiu uma multidão de
curiosos querendo sacudir o badalo do padre, que se levantou pálido, zonzo,
aéreo. Fora só um desmaio provocado pelo intenso abafamento.
Enquanto se
providenciava um substituto para continuar a missa, lembrei-me de uma outra
cena, trinta e cinco anos antes. O padre, na hora da consagração do vinho,
suspendeu o cálice e falou: “Do mesmo modo, ao fim da ceia, tomou o cálice em
suas mãos, abençoou, e deu aos seus discípulo dizendo...” nesse exato instante
ele ergueu os olhos para a janela aberta na parede lateral do altar, com vista
para o imenso pomar do convento, e viu uns moleques roubando laranjas, as suas
laranjas. Não se conteve e emendou a fala de Jesus com a sua indignação:
“Ladrões! Canalhas! Moleques sem vergonha!”. A plateia, também chamada de
assembléia, tomou um susto. Quando Jesus Cristo dissera isso? Pensou-se que o
padre havia enlouquecido. Generalizou-se o tumulto. O padre quis se explicar,
mas não deixaram e ele saiu do altar direto para uma casa de repouso. Depois foi transferido para outra paróquia e
dele não se soube mais notícias.
Lembranças
indeléveis que teimam em aflorar nostálgicas. Lembrei-me da última missa,
trinta anos atrás, e da cara de espanto de Luciene quando lhe comuniquei a
minha decisão de ir embora da cidade, partir no primeiro trem no dia seguinte,
com destino a Salvador. Ela chorou no meu ombro. Um choro sincero, honesto,
inconformado pela perda iminente. Ela sabia que seria uma viagem só de ida, sem
retorno, um adeus definitivo, sem a esperança do “até a volta”. Seria inútil
qualquer apelo para ficar. A cidade já tinha chegado ao meu limite.
Por onde
andará Luciene? São trinta anos sem saber notícias e, pela primeira vez nesse
ínterim, pensei em seus olhos azuis marejados e escurecidos pela tristeza. E me
dei conta de que nunca me preocupei com o seu destino ou de ao menos saber de
seu estado físico-emocional. Ela representava o meu último elo de ligação ao
passado e eu queria esquecer completamente e quase teria conseguido se não
estivesse ali, no templo das últimas lembranças. Por onde andará Luciene?
O padre foi
substituído e a missa reiniciada. O meu irmão leu as epístolas de São Paulo aos
Coríntios e ainda teceu outros comentários. Como ele é político, sabe dominar a
platéia, envolver o povo. Em outras palavras, sabe enganar a torcida.
Antes do rito
da comunhão, o celebrante pediu para que saudássemos uns aos outros em nome de
Cristo. Primeiro, saudei os que estavam sentados no mesmo banco que eu; depois
parti para os do banco da frente; ato contínuo, me virei para saudar o povo do
banco de trás e não consegui abafar um grito de surpresa:
–
Luciene!
Nenhum comentário:
Postar um comentário