Foi num belo domingo de verão, na estação de trem “São Francisco” em Alagoinhas-Bahia, que um grupo de amigos e eu embarcamos num trem a vapor carinhosamente apelidado de Maria-Fumaça. Destino: Praia de Periperi, no subúrbio de Salvador.
Agarrado a um violão, eu fazia muito barulho, e me sentia o tal e qual. Não parava de tocar, cantar e de infernizar a vida dos passageiros do trem.
A viagem de ida foi tudo alegria, bagunça, sorrisos, música, enfim. Seria o meu primeiro contato com o mar. Tudo me parecia novo e divertido. Não via a hora de pisar na areia da praia, de catar conchinhas, de admirar o horizonte oceânico pela primeira vez e de me salgar nas águas do Atlântico.
A minha expectativa dentro do trem era intensa e, pela janela, os meus olhos varriam a paisagem à procura do tal mar, o qual eu imaginava estar escondido entre as verdejantes montanhas daqueles campos baianos.
A viagem parecia nunca acabar e a minha ansiedade aumentava a cada instante. Jamais havia me afastado da saia da minha mãe e me preocupava em ser tragado pelas ondas do mar, que na minha imaginação tinham vida e engoliam gente.
Chegamos a Periperi embaixo de chuva. Tempo fechado. Como praia e chuva não se combinam, não houve banho. Ficamos abrigados em casa de amigos, bebendo cerveja e cantarolando canções da época. Tudo transcorria num clima de festiva felicidade digna de nossas adolescências.
Em dado momento uma das cordas do violão se quebrou, interrompendo a cantoria.
– Acabou-se a festa! – falou alguém.
– Não! Não acabou. Vai continuar!
Encostei o violão numa cadeira e saí à procura de cordas. Entrei numa quitanda, se é que se podia chamar assim aquele barraco de tábuas velhas com algumas prateleiras apinhadas de garrafas de cachaça. O odor da aguardente se irradiava. Mal perguntei se havia cordas de violão ao balconista, alguém me segurou pelo braço e anunciou:
– Polícia! Mãos na cabeça e não se mexa.
Virei bruscamente a cabeça e dei de cara com um monte de policiais me apontando armas de fogo de todos os tipos e calibres. Exigiram meus documentos. Estava sem. Havia deixado juntos ao violão.
Depois de longo interrogatório, um dos policiais aproxima-se do meu cangote e, apontado sua arma para meus pés, sussurrou:
– Calma seu vagabundo! Não tente correr senão eu dou um tiro no seu pé, tá legal?
Outro, olhando dentro dos meus olhos, deduziu:
– Ele não é aquele sujeito que roubou a padaria do espanhol?
– É… Ele parece mesmo! – concordou seu parceiro.
– Diga pra mim, seu cafajeste: você não é fulano? – gritou, me chamando pelo nome do suposto ladrão da tal padaria do espanhol, e continuou me massacrando:
– Fala, cara, fala: como é o seu nome? Cadê seus documentos? E eu, no meio da roda daquele batalhão armado até os dentes, me borrava de medo. Respondi, gaguejando:
– Nam-nam, não, não, seu polícia! Eu não sou esse tal fulano, não! Eu me chamo Zé... - falei o meu nome e sobrenome, e acrescentei: nasci no Junco. Sou estudante. Moro em Alagoinhas. Vim pra cá de maria-fumaça; trabalho na funerária do seu Nenzinho. – e ainda apelei – o moço ai, do balcão, viu a hora que passei por aqui, bem cedo, tocando violão e cantando com um monte de garotas, não foi? Não foi? Pergunte a ele, pergunte, pergunte.
Recebi um tapa no pé-do-ouvido, em meio aos berros.
– Calaaado, seu filho-da-puta!
Rodopiei, quase caí, e nem pude sequer explicar quem eu era e onde estavam meus documentos. Mas de nada adiantava a minha palavra. Ela nada valia frente à ditadura. Não haveria acordo e eu provavelmente dormiria no xilindró. Já havia tomado um murro no pé-do-ouvido e a coisa estava feia.
E a minha mãe? Eu quero é a minha mãe - era somente o que eu pensava.
Ah! velhos tempos ditatoriais, onde qualquer farda tinha mais poder que a palavra!
Tentando me tirar daquela encrenca, o quitandeiro interveio a meu favor:
– Não, “seu” tenente! Acho que ele não é o tal ladrão que o senhor procura. – e concluiu – Eu vi a hora que ele passou por aqui, bem cedo, tocando violão e cantando com um monte de garotas. O que ele diz é verdade!
– É mesmo? Qual música você estava cantando? – um dos tiras me dirigiu a palavra, exigindo maior explicação. Creio que foi por mera gozação, mas, mesmo assim, cantarolei um trechinho:
– “… só quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá pro inferno, ou,ou,ou.”
– Caalaado! - Gritou o chefe do grupo, o tal tenente, pondo ordem no recinto.
Por pouco, muito pouco, eu não me transformei em mais um turista de camburão. E isto graças a alguns colegas que percebendo a minha demora foram me salvar levando meus documentos e o violão.
Sentindo-me aliviado, parei de tremer. Um dos tiras ainda foi gentil ao me dizer:
– Cai fora seu fedelho!
Os camburões partiram festivamente cantando: ui-ui-ui-ui-ui-ui-ui.
Finalzinho da tarde. A noite descia uma escuridão pesada. Com uma tristeza danada, embarquei no Maria-Fumaça sem motivos para cantorias; sem me molhar no mar, sem paisagens a vislumbrar no negrume da noite e tendo tão-somente o barulho intermitente do trem a me distrair.
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