quinta-feira, 25 de junho de 2009
Do palácio do Catete à venda de Josias Cardoso*
terça-feira, 16 de junho de 2009
O mendigo e eu - Eu e o mendigo
José Pedreira da Cruz


É muito difícil alguém ter a coragem de narrar embaraços de si próprio, principalmente quando são de situações quase que corriqueiras na vida de muitos que ainda são adeptos da bebedeira tal como fui, mas é necessário, pois, quem sabe, sirva como exemplo.
Alguns dizem que o alcoolismo é um vício hereditário, outros, que é uma doença incurável. Nada disso, digo eu: ele é o fim da picada.
Há uma infinidade de definições para o alcoólatra, tais como: safado, ordinário, cachaceiro, irresponsável, imprudente, mas, a melhor de todas é o famigerado “sem-vergonha”.
1978. Uma sexta-feira, véspera de aniversário de minha filha que completaria um aninho de vida. Eu estava feliz. Algumas crianças já haviam sido convidadas para animar o evento com suas divertidas alegrias, para comer do bolo e se empanturrar de guloseimas e assim cantarem o “parabéns pra você”.
Naquele dia eu havia recebido o salário do mês que, como sempre, guardei-o no bolso do paletó verde. Parece esquisito, mas o paletó era mesmo verde: verde-cana, que se diga, presente de um amigo.
O dia acabou, fui dormir. Mal o sábado clareou e já estava eu lá na fábrica fazendo hora extra e cuidando dos afazeres. De vez em quando me lembrava da festinha da filha que seria à noite e me alegrava com um sorriso meigo a se irradiar no coração. É maravilhoso lembrar das pessoas amadas quando se está ausente.
Ao meio-dia voltei para casa cumprindo a irresistível via-sacra dos finais de semana: de boteco em boteco. Parecia estar pagando uma promessa inacabável ao satisfazer-me enchendo a cara, e hoje me clareio que havia um prazer mórbido ao me autodestruir.
Lá para as tantas da tarde, ao cumprir meu penúltimo compromisso com o copo, me deparei com um indivíduo, um mendigo que catava restos de pipoca espalhados na calçada e prazerosamente devorava-as como se fosse o mais requintado dos alimentos. Condoí-me do miserável e o convidei a se aproximar. Ofereci-lhe qualquer coisa a comer, mas ele exigiu vodka. Achei esquisito um mendigo querer uma bebida tão nobre, mas dei, e ele ingeriu goela abaixo num movimento brusco. Ficamos a prosear. Ele tinha os olhos azuis e um olhar triste. A pele era suja e escamada pelos maus-tratos; roupa esfarrapada e fétida; cabelos sebosos e encaracolados e falava o português com um sotaque quase que incompreensível. Disse-me ser europeu e que fugira da Rússia por motivos vários. A princípio nada queria falar. Dei-lhe outra dose da vodka para desenrolar a língua e se comunicar com mais perceptividade e foi então que ele passou a falar dos czares, de Yuri Gagarin, de Moscou, de San Pitsburgo, da Praça Vermelha, de Stalin, de Lênin, do poderoso Leonid Brezhnev (naquele tempo não se podia falar de comunistas por aqui) e de tantos outros nomes que não mais me lembro. Disse-me, com um sorriso meio tristonho e transitório que outrora havia sido um técnico da aviação e que aqui, no Brasil, era ele um técnico do cata-cata. Rimos juntos e ficamos assim... uma espécie de amigos.
E no lugar da vodka, tome-lhe pinga. O botequeiro mostrava-se insatisfeito e inquieto com a presença do tal freguês. Paguei a conta e o convidei a almoçar comigo, em minha casa. E saímos nós, ombro-a-ombro, cambaleantes e desaprumados pela rua.
A patroa nos recebeu de cara feia e protestou com aspereza por aquele indivíduo estar na sua casa, sentado à sua mesa, porém eu só queria ajudar àquele mísero que tinha uns farrapos no corpo como único cabedal. Para minimizar sua situação eu o autorizei a se banhar com direito a chuveiro quente, toalha, cueca, calça lavada e passada, meia, sapato (usado) xampu, espelho, sabonete, creme de barbear, barbeador, desodorante, chinelo, loção pós-barba, tesoura e pente.
O sujeito demorou meio século para se banhar cantarolando em russo. Haja paciência. Assustei-me com sua aparição quando saiu do banheiro. Nem parecia o mesmo que a pouco entrara no banheiro. Estava ele limpidamente vestido, barbeado e penteado.
Fiquei contente com a minha boa ação: a famosa ação de graças da qual não vejo nenhuma graça. Sentou-se e comeu fartamente do meu frango.
- Agora o senhor pode ir embora – disse a patroa.
- Espere um pouco – eu falei. Fui ao quarto e voltei com o dito paletó verde e o mandei vestir. O homem ficou radiante com o presente, agradeceu por tudo e foi embora a passos apressados.
Sentei-me no batente da porta e fiquei a pensar o quanto que eu fui útil àquele miserável. Achava que uma boa ação é paga com outra.
Passados uns vinte minutos eu falei para a patroa:
- Poderia me trazer um cigarro, o meu acabou?
Com uma voz indócil ela respondeu:
- Não estava no bar, por que não comprou?
- Por que gastei tudo com a bebedeira! – bradei insistente: - Então me traga um dinheiro. Irei comprá-lo!
- Onde ele está? – falou com muita prudência.
- No paletó verde, oras! – respondi esbravejando
- Mas... o paletó verde você não deu ao mendigo?
- Meu Deus! – gritei desesperado.
Saí correndo pelas ruas, enlouquecido, à procura do distinto mendigo. E a todo vizinho que encontrava, eu perguntava:
- Você viu passar por aqui um mendigo vestido num paletó verde?
- Mendigo de paletó verde? Nããão!
Outros zombavam:
- Você é louco? Mendigo só se veste com trapos! Vi nenhum não.
E agora? Como pagarei o aluguel da casa, a luz, a água e a comida do mês? Só me restava xingar o russo, e isso eu fazia a todo instante:
- Tomara que aquele desgraçado morra!
Anoiteceu. Não houve festa. “Só no ano que vem”, dizia aos convidados que iam chegando. E por um bom tempo fui chacoteado como “o homem do paletó verde”.
E você, leitor, quer passar por um vexame desse? Então beba!”
segunda-feira, 15 de junho de 2009
São João no Arraial do Junco

Ah! Que saudade do Velho Junco! É assim que meu amigo Tom a chama: Velho Junco. Lembro-me de quando a minha mãe e eu voltávamos da “rua”, passávamos pelo Cruzeiro dos Montes e eu morria de medo de olhar para ele. A minha mãe dizia que ali era o reduto das almas penadas e por isso eu teria que voltar cedo quando ia à rua. Antes do pôr do sol eu estava em casa recuperando o fôlego depois da corrida ao passar pelo Cruzeiro.
Acreditei nas almas penadas até o dia que criei coragem e o encarei: vi apenas velas acesas em pedidos ou pagamentos de promessas. Então entendi: a minha mãe usava de tal artimanha para me fazer voltar cedo para casa.
Ah! Que saudade! Flagro-me nas lembranças. Fecho os olhos e sinto o cheiro de terra molhada pelo orvalho da manhã, escuto o canto do bem-te-vi, o carro de boi passando na estrada, o vaqueiro aboiando:
“minha mãe quando eu morrer, me enterre no tabuleiro
No sinal da minha cova um lindo e belo cruzeiro,
“Pra que possam se lembrar que eu era um bom vaqueiro”
“Ê boi ê ê”
Às três horas da tarde corria até a janela para ver se o ônibus de Serrinha pararia na cancela e algum parente de São Paulo descia dele. Mas o ônibus passava direto, deixando poeira e frustração.
Minha avó Lorita percebia meu desapontamento e começava a dançar e cantar suas cantigas com a intenção de me alegrar. Puxava-me pelo braço me fazendo seguir seus passos cantando uma canção que eu adorava:
“Mandei pegar meu cavalo é hora de viajar
Peguei na mão da morena ela se pôs a chorar
Não chore não moreninha, eu vou tornar voltar
“Me de um aperto de mão para de mim se lembrar”
No final, com seus olhos lacrimejando, ela olhava nos meus como se soubesse que mais cedo ou mais tarde eu ia embora. Com a voz tremulam finalizava:
– Mislene, quando tu fores, me leva que eu vou.
Eu a amava! Ela me enchia de mimos, principalmente quando eu escrevia suas cartas. Ela dizia que eu escrevia com a alma e o coração. Sofri muito com sua morte, não tivemos tempo para despedidas. Eu piquei esporas no meu cavalo e não a levei como ela pedia em suas cantigas.
Cantigas que marcaram épocas no meu convívio na pequena cidade do Junco. Lembro-me que nos finais de semana eu ia dormir na casa de minha tia Cleide, na Barroca Dantas, onde meu avô tinha algumas tarefas de terra. À tardezinha minha tia ia varrer o terreiro, com uma vassoura de palhas de coqueiro. Ela varria, a poeira subia e juntas cantávamos:
“Eu tinha meu machadinho foi pro mato se perdeu
Eu tinha meu machadinho foi pro mato se perdeu
O meu amor é melhor do que o teu
Melhor do que o teu,
Melhor do que o teu”
Que saudade danada!
Nas noites de lua cheia meus avós, minha mãe, meu irmão e eu sentávamos em um banco no avarandado, a luz do luar clareando o terreiro, e meu avô Adelino Lopes, contagiado pela beleza da noite, contava historias de sua mocidade e brincava de adivinhação. De vez em quando um sapo pulava, um grilo cantava, fazia-se um silencio e logo meu avô o quebrava:
– Mirlene – era assim que ele me chamava, trocando o “s” pelo “r” – O que é o que é: uma caixinha de bom parecer nem todo mestre sabe fazer?
Meu avô com seus poucos cabelos, brancos como neve, sem saber, muito me ensinou e eu, sem querer, com ele muito aprendi. Faz 12 anos que ele faleceu e tudo que herdei foram as lembranças de minha infância.

São ou não são motivos para se definhar de tristeza e se morrer de vontade de comer um milho assado na fogueira ao sabor do digestivo e gostoso licor de jenipapo, ao som da zabumba, da sanfona e do triângulo?
No próximo ano eu vou, nem que tenha que sair daqui no lombo de um jegue.