Antônio Torres
24 de agosto de 1954.
Estávamos muito longe do Palácio do Catete , onde um tiro fizera o país tremer . Mas não foi pela distância que não o ouvimos. Foi por vivermos numa casa de roça , sem rádio e sem notícias das terras civilizadas.
Nesse dia , como sempre , o pai acordou com o canto dos galos e dos passarinhos . E fez o que o seu dever mandava: chamou os filhos , um a um , em ordem decrescente, do mais velho ao caçula . Puxou a ladainha , atento às vozes que o acompanhariam, no ritual de todo o amanhecer :
- Kyrie eleison.
- Christie eleison.
E lá fomos nós ao reencontro da turma , com o coração em festa . A escola significava também isto : convívio . E bate bola na hora do recreio . Oba !
Naquele dia , porém , iríamos bater era com a cara na porta . O prédio escolar encontrava-se fechado. Coisa boa não podia ser . Felizmente a professora não demorou a aparecer , desfazendo nossos temores em relação a ela , que avisou: as aulas estavam suspensas durante oito dias , em respeito ao falecimento do presidente da República .
- Todo o Brasil está de luto – ela explicou.
E mais não disse, mantendo a informação em seus devidos limites . Como boa cristã, senhora ajuizada , e tudo o mais que se exige de uma educadora, ela não iria alardear para crianças a causa mortis do primeiro mandatário da nação . Nem mesmo de forma eufemística:
- Cometeu o tresloucado gesto ...
A venda ia se enchendo. Era como se, de uma hora para a outra , todo aquele lugar fosse incondicionalmente getulista. Mas não . Difícil era encontrar uma só casa de roça que não tivesse o cartazete com a foto de Cristiano Machado ao lado de um boi . Naquele mundo de pequenos proprietários rurais houve uma identificação maior com o candidato à presidência pelo PSD (o Partido Social Democrático ) nas eleições de 1950, do que com o gaúcho que cativava as massas de trabalhadores urbanos . Agora os sentimentos eram outros . A trágica morte de Getúlio Vargas os fazia oscilar entre a perplexidade e as interrogações. Estaria a mão da grande perdedora em tal pleito , a UDN (União Democrática Nacional ), por trás do dedo que apertou o gatilho ? Atento à desolação reinante , concentro-me na voz do rádio :
- “... esse povo , de quem fui escravo , não mais será escravo de ninguém ”.
- É agora que o comunismo vai tomar conta do Brasil.
*Conto publicado pela Editora Íbis Libris, para a "Primavera dos Livros" , realizada no Museu da República / Palácio do Catete , de 29 de novembro a 2 de dezembro de 2007, e da qual Antônio Torres foi o patrono .
Um comentário:
ótimo artigo.
Gostei muito.
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