segunda-feira, 28 de setembro de 2009

OS DITAMES DA MODA


A efemeridade da moda é algo tão temeroso que, em alguns casos, se transforma em faca de dois gumes e o glamour sonhado pode se tornar um pesadelo.

Não me refiro ao visual básico, que vai do sapato ao vestuário, gerando modelos que vão além dos nossos suspiros. Estes apetrechos, quando se tornam demodês (até esta palavra caiu de moda), exercitam nosso espírito de solidariedade engrossando as doações nas campanhas de grandes catástrofes, pois, se existe algo que não sai da moda, é justamente nosso manifesto sentimento de piedade aos deserdados da sorte e carentes de justiça, principalmente a social.

Falo da moda irreversível ou onerosa para se retornar às origens ou até mesmo ficar na crista da onda, como remover a tatuagem ou trocar o piso da casa. A minha vizinha entrou na moda da ex-deputada Ester Grossi, aquela que tingia o cabelo de acordo com a cor da calcinha, e ficou tal qual uma metaleira desgarrada, servindo de risinhos jocosos por onde passava, e ainda lhe valeu o apelido de “Vovó Heave Metal Aloprada”.

Marta, a banhista, amava Misso, o surfista, que odiava a tatuagem que ela tinha na coxa. De tanto amar, e de tanto resmungar, ela capitulou: pegou um avião e foi a Salvador remover a tatuagem. Os dois se casaram e serão felizes para sempre até o dia em que ela se der conta da enorme cicatriz maculando suas belas coxas.

Nos anos 60 surgiu a moda do maracanã, aquele penteado que deixava a testa totalmente livre. Um dos meus irmãos embarcou na onda, gastou os tubos com brilhantina Glostora e, quando o cabelo fixou o penteado, a moda acabou e ele não conseguiu reverter a situação.

As telenovelas ditaram moda. Estilizaram o cotidiano e as grifes tornaram-se marcas poderosas e caras, fazendo surgir a pirataria moderna. As trilhas sonoras dominavam as “hits parades” e as músicas tornaram-se personalíssimas: os personagens se transformaram nos nomes da músicas, que passavam a ser “Tema de Chris”, “Tema de Simone”, “Tema de João Azulão” e assim por diante.

Tenho uma prima que nasceu no auge da novela Selva de Pedra e não é por um acaso que a mesma se chama Simone. Outros também tiveram seu antropônimo inspirados nos personagens fortes de Dias Gomes e Janete Clair, os então monstros sagrados das telenovelas. A indústria do jeans, dos calçados e fonográfica devem muito a esse casal que soube transformar o emocional das pessoas em febre de consumo.

Houve a moda dos carpetes. Finos, grossos, lanosos. Paraíso dos ácaros e a principal fonte de alergia. Com os carpetes, surgiu a moda dos nebulizadores e aspiradores de pó. Pisar em alguns com nossos pés impuros era um sacrilégio de tão limpos que eram. O remédio era tirar os sapatos à entrada da casa, à moda japonesa, o que podia causar sérios constrangimentos aos portadores de pé-de-atleta, o popular “chulé”. Ou mostrar u’a meia cheia de buracos.

Outra armadilha é dar nome fantasia a algum empreendimento comercial. Estilizar a marca baseado apenas em personagens ou nomes de novelas, é apostar na sorte, pois, na maioria das vezes, o sucesso só dura até o capítulo final. Depois disso, o prejuízo é iminente. O boteco “Cambalacho”, diariamente entregue às moscas, já teve seus dias de glória, assim como as discotecas “Dancing Days” que pululam em todo Brasil em ritmo frenético de decadência, já fez a juventude suar a camisa nas filas quilométricas de suas bilheterias.

Favela é coisa de carioca. Nos outros lugares há bairros pobres e bairros ricos. Há também os remediados. Mas, em qualquer situação, pobreza e riqueza se irmanam no mesmo modismo noveleiro. Norte e Sul unidos em torno da telinha. Para reforçar o que digo, o mais novo bairro da cidade de Maceió foi batizado no ano passado de Favela Portelinha. E Juvenal Antena é o que não falta por lá.

O povo é sábio, fala por Deus, e quando resolve batizar uma rua, um bairro ou uma cidade, com certeza a Natureza ou algum grande personagem da sua história será homenageado. Porém, quando um político interfere, a coisa complica e implica em abjeções toponímicas. A minha terra se chamava Junco, por abundar a planta “junco”, mas era moda se homenagear os políticos, e ela foi defenestrada de seu nome original para dar vez a um cidadão que nunca soube de sua existência. O povo, quando atinou para o prejuízo moral, nada mais pôde fazer, vez que outro município, usando da moda do ecologicamente correto, expurgou seu nome político, se apropriou da poética herbácea e mudou seu nome para JUNCO.

E as nossas leis funcionam tal qual a moda do jogo do bicho: “Vale o que está escrito”. Nesse caso, serviu como pule o Diário Oficial da Bahia.



domingo, 27 de setembro de 2009

LEMBRANÇAS INDELÉVEIS




Há certos aromas que são como a primeira namorada: a gente nunca esquece. Estava cumprindo o meu carma em um ponto de ônibus e de repente um forte cheiro de fumaça impregnou o ambiente. Não uma fumaça qualquer, mas a de um cigarro. Não de um cigarro qualquer, mas de cigarro de palha, aquele feito de fumo de corda, ou de rolo, como também é conhecido, picado em canivete e enrolado carinhosamente em papel-seda. A saliva serve como adesivo. Procurei a origem da fumaça e descobri um senhor, com cara de matuto, pitando seu cigarrinho ao léu, indiferente aos protestos de algumas mulheres irritadas e às minhas lembranças que afloraram incontidas.

Irineu de Lolô de Febrônio, meu pai, era cliente assíduo da Souza Cruz, mas gostava de enrolar seu próprio cigarro de palha, sentado no avarandado, admirando o arrebol do pôr-do-sol por detrás do Cruzeiro dos Montes, jogando conversa fora com os amigos e trabalhadores em final de lida, tomando um cafezinho passado na hora e torrado em tacho de cobre. Como todos fumavam quase ao mesmo tempo, a casa ficava impregnada com o forte cheiro dos alcalóides do fumo. Com a popularização do cigarro industrial, o cigarro de palha passou a se chamar, pejorativamente, de “escora-carroça”, “arromba-peito” e “mata-rato”.

Ninguém nunca atentou para um detalhe importante: o cigarro industrializado não só trouxe maior incidência de câncer do pulmão como aumentou o estresse e o esgotamento físico do trabalhador rural. Os cigarros vêm prontos para serem acesos, com filtro apropriado para receber pressão dos lábios sem se desmanchar, e o fumante não perde tempo entre o fumar e o exercício de suas atividades manuais.

Já o cigarro de palha demandava um tempo para a confecção do mesmo e não se permitia maiores pressões labiais, sob o risco de se desmanchar o papel. Nesse meio tempo, o trabalhador aproveitava para descansar de sua batalha campal, normalmente uma jornada superior a oito horas diárias, sob a inclemência de um sol causticante e de remuneração aviltante.

Geralmente havia mais de um trabalhador na lida, que paravam simultaneamente para pitar à sombra de uma árvore, jogando conversa fora, amenizando o sofrimento de uma existência desigual apenas por um papear momentâneo. Na simplicidade de suas vidas campesinas, mal desconfiavam que praticavam a terapia em grupo.

São lembranças de um cheiro transportado para os tempos da inocência em que não havia propaganda institucional alertando para o mal que o cigarro faz à saúde e que até causa impotência sexual. Ao ver tal advertência estampada no maço de cigarros, um amigo fumante pediu para que trocasse pelo maço que causa câncer no pulmão. E a modernidade levou o uso do papel-seda a ser associado exclusivamente aos seguidores de Sua Excelência, a Maconha.

O sol estava de rachar o cano e eu com a cabeça no tempo, cozinhando o juízo na longa espera da salvação proletária: o transporte coletivo. Os ônibus em Maceió são como castigos divinos: tardam, mas um dia chegam. Sai prefeito, entra prefeito, e tudo continua na mesmice de sempre. A fome apertando, o estômago roncando e a boca ressecada pela sede. Não havia uma sombra decente para amenizar a agonia da espera.

Uma vez acomodado no ônibus de volta ao lar doce lar cochilei nos solavancos e o mundo real se misturou ao virtual e tive um relampejo visionário de que o caos urbano começa nos pontos de ônibus, principalmente na volta pra casa.





quinta-feira, 24 de setembro de 2009

CONSCIÊNCIA ATIVA E PASSIVA

Falar-se de consciência intelectual e da solidão que ela denota, é como se falar de corda em casa de enforcado com o defunto ainda na sala, principalmente em um país em que o voto a vereador vale trinta reais e um bom livro que possa elevar o nível intelectual do eleitor vale o dobro disso. 

É bem verdade que o livro, se corretamente guardado, dura a vida toda, enquanto que o vereador tem vida útil de quatro anos, onde se revitalizará com mais trinta dinheiros. Assim, de trinta em trinta, o vereador se perpetuará no poder enquanto o eleitor ficará a dever trinta reais na livraria se quiser treinar seus neurônios.

Bertolt Brecht, em boa hora, escreveu que o pior analfabeto é o analfabeto político. E cita as razões que o analfabeto – político ou não – jamais irá saber. Para mim, que perto de Brecht sou analfabeto, o pior analfabeto é aquele de Mário Quintana: sabe ler e não lê. E sem ler, jamais sofrerá da solidão da consciência intelectual, ocasionada justamente pela falta de leitura do interlocutor à altura dos anseios daquele que lê. 

Brecht foi um dramaturgo e poeta alemão que não teve tempo de sentir solidão. Expatriado pelos nazistas devido à sua condição de amigo de Stalin, viveu na Escandinávia e nos Estados Unidos até adquirir cidadania suíça. Acreditava que o proletariado europeu sabia ler, só não sabia votar, e por isso eram trabalhadores solitários, vagando no velho mundo, esperando a hora acontecer. Morreu do coração, o camarada Bertolt. Talvez decepcionado pela visão real da massa ignara.

Nietzsche era um amante da música, da arte e das letras, principalmente das tragédias gregas, e por isso não conseguia penetrar na alma da burguesia decadente alemã e se sentia um filósofo solitário. Orgulhava-se de ser o único filósofo de corpo e alma dentro da Psicologia.

A unidade, por si só, é solitária. Daí, da solidão à loucura é um passo. Nietzsche não aguentou o peso da sua e enlouqueceu.

Embora esses dois alemães vivessem em épocas diferentes, em situação política diferente, e de ter influenciado o pensamento europeu muitas décadas atrás, suas obras são mais do que atuais na nossa realidade, embora poucos tenham atingidos um coeficiente intelectual a ponto de a solidão abrir suas portas em convite cativante para um longo bate-papo madrugada adentro.

Nessa terra de prolíferos intelectuais, onde se encontra escritores aos montes em cada esquina, poucos se dignam a exercitar o intelectual lendo autores além daqueles que levam suas assinaturas, em uma clara demonstração do “eu só me basto”. Segundo comentário de um importante editor paulista, no Brasil há tantos poetas que se um comprasse o livro do outro o país seria um sucesso editorial no gênero. Seria o efeito corrente de antigamente, aquele que, se não fosse quebrado, o dinheiro investido retornaria quadruplicado. No presente caso, haveria múltiplos ganhos: o financeiro, através do arrecadado com os direitos autorais; o intelectual, pelo exercício dos neurônios, e o espiritual, devido à satisfação em saber que está sendo lido.

O brasileiro, em sua essência, é adepto do “não li e não gostei”. Citam Castro Alves, Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa por serem autores obrigatórios no Ensino Básico ou então por serem os mais conhecidos. No governo collorido, o livro de cabeceira da primeira-dama era “O Perfume”, de Patrick Suskind, acho que um tanto assim para sair da mesmice de se falar de Jorge Amado. É mais chique se falar de autores do velho mundo do que do Amado baianês, embora houvesse uma ligeira desconfiança de que ela falava de “perfume”, a colônia aromática, contrabandeada de Miami. Ambas, leitora e primeira-dama, não passavam de muambas de quinta categoria.

Fala-se mal de Paulo Coelho sem se ler Paulo Coelho; fala-se bem de Jorge Amado sem se ler Jorge Amado. José Sarney, nosso senador vitalício, patrono dos homens de bigode, é membro da Academia Brasileira de Letras. Quem já participou ou conheceu alguém que tenha participado de algum sarau com o autor de Marimbondos de Fogo? Ou oficina literária? Ou de alguma palestra nos cafundós do judas?

Diga-me com quem andas que te direi se te acompanho, dizia o Barão de Itararé. Na tentativa de preencher a minha solidão de consciência intelectual, depois de alguns chopes, o assunto descambou para João Ubaldo Ribeiro:

– Adoro as crônicas do João Ubaldo! – disse-me o meu companheiro desse mal crônico que se chama “solidão das segundas-feiras”.
– Que bom! – respondi – Você leu a de ontem? Estava hilária...
– Ontem? Não.
– E a do outro domingo?
– Também não.
– E qual foi a que você leu?
– Pra falar a verdade, há mais de dois anos que não leio as crônicas do João Ubaldo. Mas li o seu último livro.
– Gostou do “O Diário do Farol”?
– Diário do Farol?! Nunca ouvi falar. É de João Ubaldo?
– ?!

Nietzsche, como psicólogo, devia saber que o agente ativo causador da solidão da consciência intelectual é a falta de consciência literária, o princípio da consciência proletária de Brecht que leva ao saber político, daí ao pensamento crítico e, conseqüentemente, ao fim do voto de cabresto, o que levará inevitavelmente a uma redução do preço do livro e ao nivelamento intelectual dos interlocutores, o que espantará a solidão.

Levando-se em consideração o congelamento do preço do livro tal qual o preço do voto, que aqui em Maceió está congelado em trinta reais nos últimos dez anos, são necessárias duas eleições de vereador para poder se comprar um bom livro que leve o leitor a adquirir consciência intelectual de Nietzsche, embora se precise de mais quatro anos para se ler e de mais quatro anos para se entender e atingir o Nirvana.

Findo esse prazo, o leitor sentirá a solidão da consciência do eleitor, pois o vereador estará aposentado, montado em um gordo patrimônio, enquanto ele, o leitor-eleitor, terá apenas um livro velho empenhado no sebo como único bem material agregado ao patrimônio de família e mais o título de eleitor que lhe renderá mais trinta reais no dia da eleição.

Como ele leu um livro, sua consciência intelectual se manifestará em prejuízo moral o que o levará a devolver o dinheiro do político, acarretando em prejuízo material de enormes proporções, gerando acusações transtornadas e hostis da mulher e dos filhos que não leram o livro e não compreendem como ele pôde abdicar dessa ajuda divina e oportuna. 

Depois de ela pegar quatro conduções e enfrentar uma longa fila para votar, gratuitamente, fará uma trouxa dos panos de bunda e irá embora, levando os filhos a tiracolo. Ele entrará em um boteco para desfazer o nó da garganta, procurará um amigo para jogar conversa fora e falar de suas mágoas e notará que as pessoas o evitam por ser ele um ser superior que leu um livro e elas não encontram assunto além das fofocas cotidianas.

Nesse dia então, ele terá noção da sua consciência intelectual e sentir-se-á o mais solitário e infeliz de todos os homens.


quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A MÃO


Um braço sem outro braço, é meio-abraço.
U’a mão sem a outra mão, é meia-mão.
Meia-mão para comer, meia-mão para acenar;
Meia-mão para vestir e calçar.

Quem tem uma só mão não calça apertado...
Quem tem u’a mão só, só veste folgado.

Se Pilatos maneta fosse, não diria:
“Lavo as minhas mãos” e a história
Sem o histórico expressar ficaria.
“Lavo a minha meia-mão” é uma mentira
Que a história não registraria.

Assumindo seus atos, com tato
No trato real do irreal sonho cristão
A John Lennon plagiava:
“O sonho acabou!”, sentenciava.
E Jesus Cristo a cabeça baixava.

Se murmúrios murmurantes de protestos
Houvesse dos protestantes, militantes,
Blasfêmicos, blasfemando contra a
Blasfêmia injuriosa dos injustos,
Seria justo justiçar os injustiçados
Pela Justiça, no tocante à legalidade
Da ilegal prisão:
“U’a mão lava a outra!”
Aludia Barrabás, o assassino,
Vigarista, ladrão, deletério,
No deleite feral de Talião:
“Olho por olho, dente por dente”, justiçava.
“Cristo condena o roubo, o ladrão condena Cristo”,
O sacripanta finalizava.

E se Cristo tivesse só u’a mão?
Destarte não poderia ser crucificado.
Surgido o impasse, no calabouço,
Se enforcado Ele fosse, sagrada seria
A corda ou o caibro do enforcado?

Como carregar uma corda na procissão
Sem ter um enforcado à mão?

E a dúvida do que fazer:
Pelo Sinal da Santa o Quê?

U’a mão que corta um mamão
Não tocaria jamais um violão.
Mas a meia-mão que não toca violão,
Toca no tocante de coisas não chocantes:

Onanismo? Toca.
Zabumba? Toca.
Piolhos? Coça.
Carinhos? Roça.

O ambidestro se serve das duas mãos:
Os dois braços fazem a mesma evolução.

E o infausto maneta como saber
Se é canhoto se só tem a mão direita?

O maneta esquerdo se ajeita
Com o canhoto que só tem a direita.

E ficam dois corpos em união
Com quatro pernas e duas mãos.

E se um deles mulher for
Consumado fica o amor.

E se no civil contrai matrimônio,
Nas alianças gera um pandemônio:
Ela, contrita, com tudo se ajeita,
Usa a aliança na mão direita.
E vivem uma vida mirífica,
Pois do marido, noiva ela fica.

E se um dia resolve parir,
A dúvida do feto vai surgir:
Se “sai” aos pais, nasce maneta;
Se ‘sai” aos avós nasce perneta.

E após nove meses expurga do ventre
Um aleijado em forma de gente.

E, na infelicidade,
São felizes para sempre.