quinta-feira, 15 de outubro de 2009

VII Bienal de Pernambuco



Fim de tarde na agitada bienal do livro em Recife. A simpática repórter de um jornal local dirigiu-se à única mesa existente no stand onde molhávamos a garganta, puxou uma cadeira, sentou-se, ligou o gravador e perguntou ao grande homenageado da feira literária que bebericava um vinho português:


- Carrero, no seu entendimento, por que as pessoas devem vir à bienal?


Transeuntes andavam entre as centenas de stands de editoras e livrarias indiferentes aos motivos que os levaram até ali. Alguns carregavam pesadas sacolas cheias de livros. Pensei cá com os meus botões enquanto o escritor fazia suas alegações: “Ela, ao que parece, veio encher linguiça para o leitor da sua coluna”. Ao contrário da maioria necessitada de um bom ou mal motivo, eu estava ali a preencher a ociosidade do tempo com uma tragada de cultura e uma boa dose de cachaça envelhecida em barris de carvalho, gentilmente servida aos clientes especiais no stand de uma livraria-camelô, dessas que são montadas com o fim específico da feira, sem endereço fixo, CGC nem inscrição estadual.


Dentre os motivos que se deve ir a uma bienal, existe um que mexe diretamente no bolso do cidadão ou bolsa da cidadã: as promoções de livros. Bons livros que se pode comprar a cinco ou dez reais, uma pechincha perto do que se cobra numa livraria. Outro motivo não menos importante é a enxurrada de títulos à nossa disposição, sem que precisemos abusar da paciência às vezes não tão paciente assim do vendedor atrás de um balcão. Montanhas de livros ficam à nossa mercê, com preços à mostra, basta escolher e se dirigir ao caixa, que geralmente são rápidos no atendimento nas bienais. Também há um número grande de escritores, novos ou macacos velhos, desconhecidos ou famosos, autografando suas obras.


Numa bienal de tudo há um pouco, do clássico ao popular: cordelistas, violeiros, sanfoneiros, zabumbeiros, eruditos, menestréis, trupe representando alguma coisa, palhaços animando a garotada, palestras, oficinas para todos os gostos e, para quem ainda está na ativa, o velho flerte, principalmente da nossa linda juventude em uniforme escolar. Para seduzir ainda mais os clientes-leitores, parece que as editoras selecionam as funcionárias em concurso de beleza. Quanta gente bonita existe nos stands!


Nessa bienal em Recife teve até feira de artesanato misturada com livros e vendedores de castanha de caju, de caranguejo e outros produtos da terra, como cachaça e mel de abelha italiana e de uruçu. Só faltou a farinha de Araripina. Em uma ampla sala de alimentação improvisada do lado de fora do Centro de Convenções, bem organizada e refrigerada, se encontrava de tudo, desde carne de bode assada na brasa ao acarajé da Bahia.


Dos amigos que estiveram autografando, só encontrei o Raimundo Carrero. Como em sua terra ele é um cidadão popular e esteve presente diuturnamente à bienal, a justa homenagem que lhe fizeram quebrou o ritual sisudo dos escritores que se sentem deuses quando são homenageados, e só aparecem no primeiro dia e mesmo assim só dão atenção aos seus patrocinadores.


Aleilton Fonseca, vice-presidente da Academia Baiana de Letras, que também lançou seu livro na bienal, retornou um dia antes da minha chegada; Carlito Lima, o grande escritor alagoano e secretário de Cultura da cidade histórica de Marechal Deodoro, chegou exatamente no dia que peguei estrada de volta. Acho que nos cruzamos no meio do caminho, haja vista não haver vôo comercial entre Maceió e Recife.


No fim deste mês e início do outro acontece a bienal de Maceió, também no centro de convenções daqui. Como nas anteriores, participarei todos os dias, pois sempre há coisas interessantes a se ver e a se ouvir. Tal qual a bienal de Recife, cuja minha presença se deu por causa, principalmente, das oficinas de Raimundo Carrero, na daqui haverá também palestras de amigos ou conhecidos como Maurício Melo, Audálio Dantas e Ignácio de Loyola.


E o imperdível show de Jessier Quirino.






quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Leituras inesquecíveis I – Almanaques



Por Edna Lopes



“A palavra almanaque ou Almanach, do árabe al-mana_kh). Segundo o historiador Stephanos Demetriou Stephanou Neto, al- manakh (literalmente “lugar em que o camelo se ajoelha”) era o ponto de reunião dos beduínos para conversar e trocar informações sobre o dia- a- dia. Essa palavra adquiriu, no Brasil, o significado de uma obra impressa de conteúdo científico, literário e humanístico. O primeiro e, provavelmente, mais duradouro dos almanaques brasileiros foi o Laemmert, publicado entre 1843 e 1937...”(da Wikipédia..)

“Desde menina sou traça”, é uma frase que começo um dos meus poemas, metáfora assumida da minha compulsão por ler, “traçar”, devorar tudo que parecia livro. Desde que descobri o mundo da leitura nenhum impresso passou incólume aos meus olhos. Todos foram devidamente lidos, fuçados, embora nem sempre devidamente compreendidos.


No raiar da infância a minha mãe pedia minha ajuda nas tarefas de casa: “Filha, passe a vassoura na casa!” Ou ainda: “Filha, arrume sua cama!” E eu fazia o que me pedia, mas se encontrasse algo para ler no meio do caminho, esquecia o mundo. Às vezes minha mãe estranhava o silêncio e me encontrava sentada em meio ao lixo, lendo um pedaço de jornal, ou sentada na cama desarrumada, com um livro no colo. Invariavelmente minha mãe se aborrecia, dizendo não ser hora para aquilo e a arenga seguia ao longo do dia.


D
estes tempos guardo a lembrança de ler o meu primeiro almanaque. Era o Almanaque do Jeca Tatu, personagem imortal de Monteiro Lobato, meu autor mais querido de todos os tempos. “Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos, pálidos e tristes...” E eu conhecia tantos Jecas! Além de achar, à época, que o BIOTÔNICO FONTOURA curava qualquer mal, aprendi, de cor, cada palavra daquele livreto, de tanto que o lia. Já adulta, li Urupês e chorei de saudades.


Tempos depois minha avó me mostrou a Folhinha do Coração de Jesus, uma espécie de mini almanaque, um bloquinho com calendário, com conteúdo muito variado: receitas, piadas, mensagens, noções de higiene, santos do dia, curiosidades que eu devorava a cada folhinha que ela destacava à medida que passavam os dias.


Os almanaques eram minhas revistas de variedades e, através deles, o mundo chegava até aquele lugar sem energia elétrica, sem estação de rádio ou correio, nos confins do nordeste. No meu mundo de menina da roça, foram fundamentais, pois através deles entrei em contato com um mundo que não fazia ideia que existisse e aprendi muito também com todas aquelas informações que lá estavam. Outras publicações do início do séc. XX, anuários, lunários, além dos almanaques, eram leituras obrigatórias das famílias, como fonte de atualização e entretenimento.


Gosto muito deles até hoje. Meu material de trabalho para a formação de professores inclui sempre os Almanaques Aluá 1 e 2, dos quais sou fã incondicional, publicados pela ONG SAPÉ (RJ) e vários números da revista Almanaque Brasil de Cultura Popular, que também acesso virtualmente no end. http://www.almanaquebrasil.com.br/


Nos meus momentos de muito cansaço recorro a leituras leves, que me dão prazer e alegria, além de saciar minha fome e vicio de ler. São minhas “leituras de almanaque”, momentos que o coração e a alma agradecem.







Longe de ti



Por Leila Barros




Longe de ti só pago mico
Derramo o leite no fogão
Saio de pijama no portão
Fico descabelada e triste


Longe de ti pareço louca
Uso um tênis de cada cor
Saio despenteada ou com touca
Não sou flor, sou passarinho

Longe de ti eu desafino
Bagunço a cozinha e a cabeça
Não sou inteira e nem meia
Apenas um quarto crescente


Se demorares, azar o teu

Longe de ti estarei bem

Dizem que a fila anda

Farei andar a minha também...




terça-feira, 13 de outubro de 2009

Anotações sobre o conto



Por Antonio Torres


Expressão de mitos humanos universais, suas origens remontam aos casos da cultura oral, envolvendo fatos verídicos ou lendários, reproduzidos com fantasia, pois, como todos nós sabemos, quem conta um conto acrescenta um ponto.

Os elementos básicos do seu conteúdo são a imaginação, a fabulação, a lenda e o anedótico. Pela brevidade da narração, o conto requer densidade, contenção de linguagem e sagacidade. Credita-se ao Egito a produção dos contos mais antigos do mundo, que foram reunidos numa antologia por Maspéro, no ano de 1889. Autores árabes produziram as histórias de As mil e uma noites, que atravessaram os tempos. Na Idade Média, e adentrando a Renascença, surgiu a linha da sátira e do realismo, de que são exemplos o Decameron de Boccaccio, os Contos de Canterbury, de Chaucer, seguidos pelos de La Fontaine. Os contos fantásticos apareceram na época do Romantismo francês, com Nodier, e alemão (irmãos Grimm e Hoffman). Em meados do século 19, o conto voltou ao realismo, com Daudet, Guy de Maupassant, Dickens, Mark Twain. Entre os mais memoráveis contistas do mundo ocidental estão Edgar Allan Poe, Alexandre Puchkin, Anton Tchecov, e o nosso Machado de Assis, unanimemente aclamado como o maior contista da língua portuguesa. É outro consenso também que o conto encontrou o seu modelo clássico em Poe, Maupassant, Machado de Assis e Tchekhov.

Um conto pode ter meia página ou quantas forem necessárias para o autor contar sua história.

As regras clássicas do conto pressupõem começo, meio e fim. No começo, o contista cria um quadro no qual o personagem está inserido. Seus primeiros movimentos vão revelar o seu conflito-básico.

No meio, será apresentada a sua reação a esse conflito e o que ele fará para solucioná-lo.

O fim é a resolução do conflito. Ou, como diria Júlio Cortazar, no fim o conto tem que vencer o leitor por nocaute. É dele também esta outra lição: “O conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma sinfonia de Mozart. Se não detiver na hora certa, vai tudo para os diabos”.

Em seu livro Itinerários do conto – interfaces críticas e teóricas da moderna short story o contista baiano Hélio Pólvora nos ensina que “o conto clássico, tal como estruturado pelos seus fundadores Gogol e Poe, e desenvolvido por Maupassant, tinha como principais elementos de composição: a) o plot, que é, de acordo com a poética de Aristóteles, o acontecimento central ou os fatos que conduzem a tal acontecimento, ou, melhor ainda, a consequência dos seus desdobramentos no destino da personagem maior e, quando existem, das personagens de apoio; b) o ponto de vista, que, com seus traços negativos e/ou positivos, é a soma das reações da personagem ao seu problema, vistas e julgadas também pelo leitor; c) o cenário, os diálogos, ou o monólogo, os prolongamentos da ação, os conflitos, a abertura e o final”.

Nesse seu livro, indispensável a quem se interessa pelos segredos do gênero, Hélio Pólvora esclarece: “O conto maupassantiano [...] caracteriza-se por um desfecho em geral inusitado, de efeito perdurável na sensibilidade do leitor”. O que não deixa de ser o clássico final epifânico, ou simplesmente surpreendente, a ponto de nos nocautear inapelavelmente, tal como queria Júlio Cortazar.

A partir do primeiro pós-guerra, ou seja, da década de 1920, o conto se tornaria uma forte expressão norte-americana, graças a autores como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, William Faulkner, William Sorayan, Carson McCullers, Truman Capote e etc. Na América hispânica teria um trato singular nas boas mãos dos argentinos Jorge Luis Borges e Júlio Cortazar, do mexicano Juan Rulfo, do colombiano Gabriel Garcia Márquez e por aí vai. No Brasil, surgem tantos e tão poderosos contistas que quase que dá para encher uma lista telefônica. Citemos apenas alguns nomes básicos: Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Murilo Rubião, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Nélida Piñon, Wander Piroli, Roberto Drummond, Ivan Ângelo, Moacyr Scliar, Domingos Pellegrini Júnior, Sérgio Sant’Anna, Luiz Vilela, João Gilberto Noll, Caio Fernando Abreu... E há ainda os novos e novíssimos que dariam outra lista imensa. Os que ainda não estão nas vitrines, podem ser vistos nos blogs, que hoje se multiplicam mais do que no milagre dos peixes.


Indicação de leituras:

1. Itinerários do conto – interfaces críticas e teóricas da moderna short story, de Hélio Pólvora: Editus – Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus/Itabuna, Ba (www.uesc.br/ e-mail: editus@uesc.br), 2000.

2. Decálogo do perfeito contista, de Horácio Quiroga: LPM, Porto Alegre, 2009.

3. Os cem melhores contos brasileiros do século XX, antologia organizada por Italo Moriconi: Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2000.


segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O RECOMEÇO

De comboio


Estacionou na margem da linha férrea, desligou o motor do carro, retirou a chave da ignição e desceu. Andou displicente até os trilhos, olhou para ambos os lados, colou o ouvido na barra de ferro e ouviu barulho de passos vindos por uma vereda entre o mato crescido ao longo dos dormentes. Levantou-se sem jeito, como se apanhado em flagrante traquinagem. Eram marisqueiros dirigindo-se à lagoa, duzentos metros adiante. Caminhavam apressados, cestos na cabeça.

– Bom dia, amigos! A que horas o trem passa por aqui?

– Bom dia! O próximo passa às dez horas, vindo de Maceió.

– Obrigado.

Dez horas. Conferiu o Rolex: os ponteiros acusavam nove e vinte. “Há tempo de sobra”, pensou. Retornou ao carro. Apanhou a agenda no porta-luvas e conferiu as anotações. Havia um lembrete em cada página e, grampeada a ela, certa quantia em dinheiro. Não podia se esquecer de nenhum detalhe. Suspirou fundo e devolveu a agenda ao seu lugar. Junto, colocou também o relógio e a carteira. Em seguida descalçou os sapatos e as meias, colocando-os no piso do carona. Desceu, pegou um graveto e esvaziou os pneus traseiros do carro. Travou as portas, sentou-se na capota do motor e aguardou.

Era uma manhã quente de Primavera e havia um estranho silêncio no ar, quebrado apenas por vozes ao longe, dos pescadores na lagoa. Maldisse-se por não ter estacionado à sombra de uma árvore. Calculava faltar ainda uns quinze minutos e, sob aquele sol abrasador, cada segundo parecia uma eternidade. A camisa estava encharcada de suor e a cabeça fervia ao léu. Será que o Tempo havia parado?

Lembrou-se do dia anterior e da discussão que tivera em casa. Era a primeira após dez anos de casado. Temia ser apenas o início de uma lengalenga irritante e despropositada. Tudo vai bem quando se está bem. Um passo errado na vida é o suficiente para fazer desmoronar os castelos dos sonhos. Fogem os amigos, os parentes somem e dissolve-se a família como bolha de sabão. De herói, passa-se a vilão.

A vida é um jogo e ele foi imprudente ao arriscar todas as fichas num único lance. Deu preto, 17. Perdera tudo, até mesmo a chance de reconstruir um novo império. Um recomeço, nas atuais circunstâncias, descortinava-se totalmente inviável em face do descrédito que ficara. E o principal entrave chamava-se “família”. Pelo visto, para ele não cabia a máxima “infeliz no jogo, sorte no amor”.

Recordou-se dos tempos em que era tratado com deferência pelos amigos e paparicado pela família, principalmente pelos parentes da mulher. Tardiamente constatou que o gostar é volátil e o afeto é efêmero. O vil metal é que é a mola propulsora dos chamados sentimentos nobres, a essência sedutora do amor, o agente aglutinante da instituição família. Tudo por dinheiro. Velhacos!


Sentiu uma doce e estranha saudade dos seus tempos de menino, livre do peso das responsabilidades e das constatações doridas. Parava naquele mesmo lugar, à espera do trem para pegar um bigú até o centro da cidade. Era perto, podia pagar a passagem, mas o gostoso era a aventura de enganar o picotador, um homem bruto e cruel. Ameaçava atirar fora do trem em velocidade aquele que se recusasse a pagar pelo transporte. Uma vez deu um vacilo, entrou num vagão cujos bilhetes ainda não tinham sidos picotados. Nesse dia ficara sem o sorvete extra.

Depois de tantos anos, será que ainda conseguiria pegar um bigú? Acertaria o vagão já conferido pelo picotador? E até onde iriam os trens de hoje? Não importava. Nas atuais circunstâncias, o que menos queria saber era em qual lugar iria parar. Quanto mais longe fosse o fim de linha, melhor seria. Planejara o seu recomeço de forma inédita e radical, sem lenço, sem documento, sem dinheiro no bolso ou parentes importantes.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo apito longo e rouco do trem. Parecia um angustioso lamento. Aproximava-se em velocidade acima da praticada em seus tempos de garoto, estremecendo o entorno da linha. Temeu não conseguir seu intento. Lembrou-se que, no antigamente, pegava bigú indo para o Centro, e os comboios passavam diminuindo a velocidade. Aquele fazia o sentido inverso, acelerando. Se não errara nos cálculos, a locomotiva puxava sete vagões.

Desceu do capô, flexionou o corpo em posição de corrida, e aguardou. Viu passar a locomotiva. O maquinista acenou com a cabeça e apitou em saudação. Adivinhara suas intenções? Passou o primeiro vagão rangendo suas rodas metálicas no ferro dos trilhos. Balançava como barco à deriva. Divisou o picotador discutindo com alguém no terceiro vagão. Estava de costa para os fundos, sinal de que começara pelo último. Os outros estavam livres. Recuou uns metros. Fez o sinal da cruz, respirou fundo e correu em direção ao quarto vagão, precipitando-se, de mergulho, entre as rodas limadas do quinto e demais comboios.