segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Maria Helena Bandeira - Amores sem cheiro



             Por que os amores virtuais são tão intensos? Esta é uma pergunta que me impressiona quase tanto como a que indaga sobre a razão de nos apaixonarmos por determinada pessoa em especial e não por outro, mais adequada.

            Nossa alma divaga por caminhos suburbanos, entra em estadas vicinais e desemboca em atoleiros atrás de um sorriso, uma voz, um detalhe que nos impressiona.

            Feronômios? É possível, talvez sejamos compatíveis com determinados odores especiais, em escala não percebida pelo olfato habitual. Isto explicaria parte da questão.

            Mas e a paixão virtual? A capacidade de se envolver amorosamente, através de relações micro a micro ou telefônicas, sem que haja a menor probabilidade de viagens feronômicas? O que leva as pessoas (e tenho conhecido muitas, homens e mulheres) a se envolver, não apenas afetivamente, não apenas platonicamente, mas eroticamente, passionalmente, com outras que nunca viu?

            Uma explicação possível e lógica seria uma volta à adolescência. Na Net somos todos atemporais, sem idade, a virtualidade nos permite escolher o rosto e as características que desejamos. Nada mais natural do que o desejo de retomar  um período de descompromisso, em que o amor, ele mesmo, era assim, uma viagem narcísica, um perambular pelas emoções easy rider, um caminho Gideano do prazer pelo prazer. Neste sentido a explosão passional virtual seria a redescoberta de um erotismo juvenil ainda centrado no próprio umbigo.

            Outra explicação mais óbvia seria a da solidão. Neste mundo em que as pessoas convivem, mas não compartilham, em que solidões a dois, três e quatro são freqüentes e repetidas, a Net é um paraíso de iguais que se encontram, trocam os sonhos reprimidos do travesseiro pelos mais excitantes da tela, onde existe uma respiração e uma carne do outro lado, não apenas espuma e macela, mas bocas imaginadas e sexos sugeridos.

            Masturbação a dois, é verdade, volta ao eros primitivo em que o objeto de amor era  proibido e distante ou próximo e semelhante.

            Mas existe outra explicação mais romântica e menos científica, uma explicação que ultrapassa a mera condição do humano biológico ou psicológico – a fantasia imbatível.

            De nenhuma outra maneira o amor pode ser mais perfeito, sem falhas, completo e absoluto do que na vida virtual. Porque é não existente no real. O real é sempre partido, incompleto, falho. O sexo virtual, como a bailarina do Chico, não tem espinhas, chulé ou estrias. Não tem imperfeições nem desenganos. É sempre iluminado no seu palco principal - a imaginação que tudo pode.

            Nele somos o que desejamos e amamos a quem criamos. Não uma pessoa real, mas um personagem, uma divindade do nosso olimpo particular. Por isto a força absurda das relações que através deste não-limite se criam, por isto a carga poderosa de energia descarregada através dos bites eróticos.

            E pela mesma característica, os amores virtuais não são duradouros – ou se transformam em amores reais, numa outra instância de relacionamento. (o que raramente acontece, justamente porque competir com a fantasia é difícil) ou se desfazem como a espuma dos sonhos, transformados em texto já lido e que perdeu o sabor da novidade. Ficará a lembrança de algo inexplicavelmente forte, um raio sobre a planície, deixando apenas o eco cada vez mais longínquo dos trovões.

            Amores virtuais são uma das faces da infinita capacidade do homem de criar e acreditar no que cria.
           

domingo, 5 de janeiro de 2014

Cineas Santos - A magia das datas



                No sertão onde nasci, só havia duas datas marcantes: a sexta-feira da paixão e o  primeiro do ano, expressão usada para designar o primeiro dia do ano novo. Se a “sexta-feira grande” era dia de recolhimento, jejum, silêncio e orações, o primeiro do ano era o dia da farra. Percorriam-se léguas à procura de uma festa, às vezes, tocada por um rabequeiro cego. Sanfona era um luxo. Além da festa, havia uma brincadeira inocente: quem, ao avistar alguém, gritasse “meus anos”, fazia jus a uma prenda. Como todos eram muito pobres, valia qualquer coisa: uma melancia, uma espiga de milho, um pedaço de rapadura...

          Seu Liberato, sertanejo morigerado, não era dado a desfrutes. Quase nunca festejava nada. Com a precisão de um relógio suíço, trabalhava, sem pressa, sem queixas, com regularidade e eficiência. No primeiro do ano, permitia-se uma “extravagância”: tomar uma dose  de “rabo-de-galo” (quinado com cachaça)e prosear um pouco.

          Certa feita, por insistência do filho mais velho, contratou um primo distante para tocar na passagem do ano. O cidadão se chamava Mário, tinha uma linda sanfona verde, enorme (180 baixos), mas não tocava nada. Não bastasse isso, era triste de não ter jeito. Mecanicamente, judiava da sanfona sem mudar o tom. Para mim, uma glória: era a primeira vez na vida que eu via uma sanfona de perto. Passei a noite inteira bem próximo do sanfoneiro e, aproveitando um descuido dele, acariciei a pele lisa e reluzente do instrumento: um alumbramento. Naquele momento, tomei a decisão: tão logo assumisse as rédeas do meu destino, iria a São Paulo, ganharia um dilúvio de dinheiro, compraria uma sanfona azul, um relógio Lanco , um anel de rubi, um cavalo pampo e voltaria pro sertão. Armado dessas ferramentas de atrair mulher, encantaria (o verbo é outro) todas...

          Decisão tomada, tudo estaria bem não fosse dona Purcina, a sertaneja que só usava os verbos no imperativo. Sem me consultar, por sua conta e risco, decidiu que eu seria o primeiro “dotô” da família. Primos, tios, irmãos, todos foram para São Paulo, menos eu. Seu Liberato me queria lavrador; dona Purcina,  doutor... Enquanto isso, as moças desfrutáveis casavam-se, amigavam-se, partiam... Desacorçoado e só, eu me limitava a conversar com o vento e a campear nuvens na vastidão do azul...

          Quando me transplantaram para a cidade, descobri o réveillon e, com ele, a alegria compulsória, o hábito besta de beber espumante, comer peru, ouvir música ruim, desejar feliz ano novo mecanicamente ... O primeiro do ano perdeu completamente a magia, o encanto. Sanfoneiro frustrado, tornei-me campeador de palavras para o ofício inútil de compor poemas ruins. De qualquer forma, resta-me um consolo: tenho mais sorte que o ano novo, qualquer ano novo. Por mais esperado que seja, aos doze meses, ele estará irremediavelmente velho e será escorraçado de cena como um cão sarnento. Quanto a mim, Já sobrevivi a 65 e estou contando a história...

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

MORRE O ÚLTIMO MATADOR ALAGOANO



Morreu Moacyr, o Matador, o folclórico garçom do Sindicato dos Biriteiros. Morreu do jeito que sempre pediu a Deus para morrer: de cara cheia de cachaça. Não se sabe de quê. Apenas que dormiu bêbado e quando acordou estava morto. Deve ter morrido feliz.

Uma vez, ele se queixando de umas dores no peito, eu perguntei:
- Por que não procura um médico?
- E o senhor tá doido, seu Tom!? E se o médico descobrir que estou doente?

Gostava de frequentar os inferninhos do Centro de Maceió. Foi roubado várias vezes, levou muitas porradas, mas não deixava de marcar ponto toda segunda-feira, dia de sua folga. Orgulhava-se de ter duas namoradas, cada uma em um puteiro. Um dia, esperando o ônibus de madrugada para voltar, parou uma viatura da polícia e o levou para a Delegacia de Plantão. Ao Chegar lá, o delegado perguntou aos policiais:

- O que foi que ele fez?
- É suspeito de ser assaltante de taxista.

Ele encarou o delegado e falou indignado:

- Olhe, seu delegado, se eu fosse assaltante de taxista estava num ponto de táxi, e não, no de ônibus!

O delegado concordou:

- Ele tem razão. Deixem esse bêbado ir embora.
- Ir embora não! Vocês me pegaram lá e agora vão ter que me levar de volta!

E foram.

Da mesma forma que era simples, era atrapalhado. Um cliente pediu uma cachaça misturada de canela. Ele levou de tangerina. O cliente bebeu assim mesmo e depois falou:

- Moacyr, eu pedi de canela e você trouxe de tangerina. Agora, pra se redimir, traga de canela.
- Eu rir do senhor, seu Marcão?! Quem sou eu... O senhor é que rir de mim.

Orgulhava-se de sua macheza e queria matar quem dissesse que ele era heterossexual.

- Então você é homossexual?
- Com muito orgulho.
- E pederasta?
- Sou sim, pois ando muito a pé.

Não tinha jeito. Um jumento talvez tivesse um QI mais alto.

- Moacyr, o Bacharel! – falei, pensando que ele ia gostar.
- Seu Tom, pare de me ofender!
- Então você é o Baixo Astral!
- Aí, sim! Sou isso mesmo. Com muito orgulho!

Um cliente chegou pilotando uma motocicleta. Como Moacyr estava próximo da gente, perguntei:

- Moacyr, qual é mais perigoso: andar de moto ou queimar a rosca sem camisinha?

Ele respondeu sem titubeio:

- Não sei, seu Tom! Nunca andei de moto!

Para ele tudo era mais simples que a soma de dois mais dois. Depois de entregar o cardápio, o cliente perguntou:

- Tem tudo que está no cardápio?
- Não.
- E como eu sei o que tem?
- É fácil. O senhor vai lendo alto. O que tiver, eu digo “tem”; o que não tiver, eu digo “não tem”.

Quem frequentou o Sindicato dos Biriteiros muito se divertiu com as proezas de Moacyr, o Matador. Agora ele deve andar fazendo rir o povo lá de cima. Isto é, se já ficou bom da cachaça.



quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Seria o papa um herege?



Confesso que nunca entendi esse negócio de ceia de Natal. E que ceia! Tudo que não tinha na manjedoura, principalmente queijo do reino, nozes e castanha do Pará. É inconcebível que em pleno século vinte e um, com um oceano de informações a tempo real, ainda se confunda esbórnia com festejos cristãos. Ou vice-versa.

O Natal começou errado pela própria data. Não por um acaso a ladinice bispal escolheu essa data como o dia da Natividade, vez que tudo aponta ter nascido Jesus em meados do ano. Maria deu a luz ao retornar do recenseamento romano, o que era feito no Verão. Como sabemos, dezembro é Inverno nas bandas de lá. E rigoroso. Com neve, raios, chuvas, trovões, enchentes e atoleiros. O jeguinho que levou a Santa Madre Santíssima com certeza ficaria atolado na lama. E os três reis magos não poderiam enxergar a Estrela do Oriente. E os seus camelos também correriam o risco de atolar.

Na Roma antiga se comemorava a Saturnália, festa pagã em homenagem ao deus Saturno e ao fim do ano agrário e o início do ano novo. Era como o nosso réveillon aqui, e os comes e bebes iam de 17 a 24 de dezembro. Costumavam trocar presentes, não esses comprados em shoppings centers e pagos com cartão de crédito. Também não havia amigo secreto, oculto ou seja lá o que seja. Nem confraternização nas bibocas, cacetes armados ou restaurantes.

O cristianismo primitivo ignorava a Natividade. Nem sabia se o galo cantou de madrugada ou se houve reis magos na manjedoura. Segundo o evangelista Matheus, o encontro dos reis magos se deu na casa de José e Maria, e não no estábulo. E Jesus devia ter uns dois anos. Isso está registrado no Evangelho de Matheus e quem duvidar é só procurar na Bíblia.

Em 336 DC a Igreja romana resolveu cunhar a data de nascimento de Jota Cristo para depois da Saturnália. Era como se fosse a festa da ressaca. Ou o arrastão de Carlinhos Brown na quarta-feira de cinzas. A reação foi muito grande e a Igreja romana foi acusada de heresia pelos cristãos orientais por misturar paganismo com o sagrado. Como não ficou bem na fita, os notáveis de Roma mudaram a data para seis de janeiro. Em 356, DC, o todo poderoso Bispo Libério, de Roma, fez valer sua vontade e o Natal passou a ser comemorado no dia 25 de dezembro.

Vale lembrar que a palavra papa, com o significado de autoridade máxima da Igreja, surgiu em 1093 por decreto do papa Gregório VII. Antes, essa palavra era usada para designar todos os bispos ocidentais.

Mas nada há de me surpreender com a heresia conveniente da Igreja. É como Galvão Bueno gritando “Vai que é tua, Taffarel!” Valia tudo por um pouco mais de ibope. A Páscoa cristã foi mudada para coincidir com a festa em homenagem a Baco, o deus pagão. Por isso a Semana Santa não tem data fixa.

O pior dos piores, o pesar dos pesares, foi o título pagão dado aos imperadores e que o papado surrupiou no Século VI: Pontifex Maximus. Ou, no nosso linguajar, sumo pontífice, o construtor de pontes entre os deuses e o homem. Era assim que os romanos pagãos viam o imperador. E é assim que vemos o papa como cristãos. Quanta heresia disfarçada de sagrado, né mesmo? Não foi à toa que Jesus Cristo, em seu último suspiro, clamor aos Céus:

- Ó, pai, perdoai-lhes. Eles não sabem o que fazem.

Ou algo assim.
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