No sertão onde nasci, só havia duas datas marcantes: a sexta-feira
da paixão e o primeiro do ano, expressão usada para
designar o primeiro dia do ano novo. Se a “sexta-feira grande” era dia de
recolhimento, jejum, silêncio e orações, o primeiro do ano era o dia da farra.
Percorriam-se léguas à procura de uma festa, às vezes, tocada por um rabequeiro
cego. Sanfona era um luxo. Além da festa, havia uma brincadeira inocente: quem,
ao avistar alguém, gritasse “meus anos”, fazia jus a uma prenda. Como todos
eram muito pobres, valia qualquer coisa: uma melancia, uma espiga de milho, um
pedaço de rapadura...
Seu Liberato, sertanejo morigerado, não era dado a
desfrutes. Quase nunca festejava nada. Com a precisão de um relógio suíço,
trabalhava, sem pressa, sem queixas, com regularidade e eficiência. No primeiro
do ano, permitia-se uma “extravagância”: tomar uma dose de “rabo-de-galo” (quinado com cachaça)e
prosear um pouco.
Certa feita, por insistência do filho mais velho, contratou
um primo distante para tocar na passagem do ano. O cidadão se chamava Mário,
tinha uma linda sanfona verde, enorme (180 baixos), mas não tocava nada. Não
bastasse isso, era triste de não ter jeito. Mecanicamente, judiava da sanfona
sem mudar o tom. Para mim, uma glória: era a primeira vez na vida que eu via
uma sanfona de perto. Passei a noite inteira bem próximo do sanfoneiro e,
aproveitando um descuido dele, acariciei a pele lisa e reluzente do
instrumento: um alumbramento. Naquele momento, tomei a decisão: tão logo
assumisse as rédeas do meu destino, iria a São Paulo, ganharia um dilúvio de
dinheiro, compraria uma sanfona azul, um relógio Lanco , um anel de rubi, um cavalo pampo e voltaria pro sertão.
Armado dessas ferramentas de atrair mulher, encantaria (o verbo é outro)
todas...
Decisão tomada, tudo estaria bem não fosse dona Purcina, a
sertaneja que só usava os verbos no imperativo. Sem me consultar, por sua conta
e risco, decidiu que eu seria o primeiro “dotô” da família. Primos, tios,
irmãos, todos foram para São Paulo, menos eu. Seu Liberato me queria lavrador;
dona Purcina, doutor... Enquanto isso,
as moças desfrutáveis casavam-se, amigavam-se, partiam... Desacorçoado e só, eu
me limitava a conversar com o vento e a campear nuvens na vastidão do azul...
Quando me transplantaram para a cidade, descobri o réveillon e, com ele, a alegria
compulsória, o hábito besta de beber espumante, comer peru, ouvir música ruim,
desejar feliz ano novo mecanicamente ... O primeiro
do ano perdeu completamente a magia, o encanto. Sanfoneiro frustrado,
tornei-me campeador de palavras para o ofício inútil de compor poemas ruins. De qualquer forma, resta-me um
consolo: tenho mais sorte que o ano novo, qualquer ano novo. Por mais esperado
que seja, aos doze meses, ele estará irremediavelmente velho e será escorraçado
de cena como um cão sarnento. Quanto a mim, Já sobrevivi a 65 e estou contando
a história...
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