quinta-feira, 25 de junho de 2009

Do palácio do Catete à venda de Josias Cardoso*


Antônio Torres





24 de agosto de 1954.

Estávamos muito longe do Palácio do Catete, onde um tiro fizera o país tremer. Mas não foi pela distância que não o ouvimos. Foi por vivermos numa casa de roça, sem rádio e sem notícias das terras civilizadas.

Nesse dia, como sempre, o pai acordou com o canto dos galos e dos passarinhos. E fez o que o seu dever mandava: chamou os filhos, um a um, em ordem decrescente, do mais velho ao caçula. Puxou a ladainha, atento às vozes que o acompanhariam, no ritual de todo o amanhecer:


- Kyrie eleison.
- Christie eleison.

Mesmo sem entendê-las, achávamos bonitas as palavras que recitávamos solenemente, em alvíssaras a mais um dia que desejávamos abençoado por Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, Sua Santa Mãe e todos os santos do céu, amém. Depois, aos meninos maiores caberia pular das camas e se arrumar para a escola, que ficava na ruacomo o povoado era chamado -, dali a uma boa caminhada.

E fomos nós ao reencontro da turma, com o coração em festa. A escola significava também isto: convívio. E bate bola na hora do recreio. Oba!

Naquele dia, porém, iríamos bater era com a cara na porta. O prédio escolar encontrava-se fechado. Coisa boa não podia ser. Felizmente a professora não demorou a aparecer, desfazendo nossos temores em relação a ela, que avisou: as aulas estavam suspensas durante oito dias, em respeito ao falecimento do presidente da República.

- Todo o Brasil está de lutoela explicou.

E mais não disse, mantendo a informação em seus devidos limites. Como boa cristã, senhora ajuizada, e tudo o mais que se exige de uma educadora, ela não iria alardear para crianças a causa mortis do primeiro mandatário da nação. Nem mesmo de forma eufemística:

- Cometeu o tresloucado gesto...

Ali, qualquer menino ou menina com um mínimo de entendimento sabia o quanto um suicida podia perturbar o sono dos vivos. Opróbrio post-mortem, ao corpo daquele que atentava contra a própria vida era negado o direito de ser levado à igreja, significando isto a condenação pública da sua alma às trevas sepulcrais, sem pouso ou sossego, enquanto lhe restasse tempo de vida a cumprir na Terra.

Não era em tais crenças que eu estava pensando naquela manhã, enquanto procurava uma aglomeração de adultos, para assuntar os acontecimentos, a me perguntar como, assim de repente, a professora fora informada da morte do presidente e do luto nacional, a ser respeitado até naquelas brenhas esquecidas nos confins do tempo, a quase dois mil quilômetros de distância da capital federal, e aonde o correio chegava de oito em oito dias, no lombo de um burro. Tudo seria esclarecido na venda de Josias Cardoso. Ali, entre o cheiro de pão de milho recém-saído do forno, creolina e cachaça, o ambiente era de velório. De , ao balcão, ou sentados em engradados, caixotes e tamboretes, os bêbados de sempre se transformavam nos seres mais tristonhos do mundo. Num extraordinário ato de contrição, ouviam, mudos, um rádio movido a bateria de caminhão noticiar bombasticamente que Getúlio Vargas havia se matado com um tiro no peito, disparado de um Colt calibre 32, de acabamento niquelado, e em cuja coronha reluziam placas de madrepérola. E se condoíam até as lágrimas com as últimas palavras de Vargas, em sua carta-testamento, que se tornaria célebre:

Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

A venda ia se enchendo. Era como se, de uma hora para a outra, todo aquele lugar fosse incondicionalmente getulista. Mas não. Difícil era encontrar uma casa de roça que não tivesse o cartazete com a foto de Cristiano Machado ao lado de um boi. Naquele mundo de pequenos proprietários rurais houve uma identificação maior com o candidato à presidência pelo PSD (o Partido Social Democrático) nas eleições de 1950, do que com o gaúcho que cativava as massas de trabalhadores urbanos. Agora os sentimentos eram outros. A trágica morte de Getúlio Vargas os fazia oscilar entre a perplexidade e as interrogações. Estaria a mão da grande perdedora em tal pleito, a UDN (União Democrática Nacional), por trás do dedo que apertou o gatilho? Atento à desolação reinante, concentro-me na voz do rádio:

- “... esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém”.

Com essas palavras, que ali deixavam todos tocados, Vargas se rendia como um herói. Sua morte, porém, deixava apreensões no ar:

- É agora que o comunismo vai tomar conta do Brasil.

Comunismo?

Eu ainda não sabia o que era isso. E, com certeza, nem o homem na venda de Josias Cardoso, que tanto o temia.

*Conto publicado pela Editora Íbis Libris, para a "Primavera dos Livros", realizada no Museu da República / Palácio do Catete, de 29 de novembro a 2 de dezembro de 2007, e da qual Antônio Torres foi o patrono.




terça-feira, 16 de junho de 2009

O mendigo e eu - Eu e o mendigo


José Pedreira da Cruz







É muito difícil alguém ter a coragem de narrar embaraços de si próprio, principalmente quando são de situações quase que corriqueiras na vida de muitos que ainda são adeptos da bebedeira tal como fui, mas é necessário, pois, quem sabe, sirva como exemplo.

Alguns dizem que o alcoolismo é um vício hereditário, outros, que é uma doença incurável. Nada disso, digo eu: ele é o fim da picada.

Há uma infinidade de definições para o alcoólatra, tais como: safado, ordinário, cachaceiro, irresponsável, imprudente, mas, a melhor de todas é o famigerado “sem-vergonha”.

1978. Uma sexta-feira, véspera de aniversário de minha filha que completaria um aninho de vida. Eu estava feliz. Algumas crianças já haviam sido convidadas para animar o evento com suas divertidas alegrias, para comer do bolo e se empanturrar de guloseimas e assim cantarem o “parabéns pra você”.

Naquele dia eu havia recebido o salário do mês que, como sempre, guardei-o no bolso do paletó verde. Parece esquisito, mas o paletó era mesmo verde: verde-cana, que se diga, presente de um amigo.

O dia acabou, fui dormir. Mal o sábado clareou e já estava eu lá na fábrica fazendo hora extra e cuidando dos afazeres. De vez em quando me lembrava da festinha da filha que seria à noite e me alegrava com um sorriso meigo a se irradiar no coração. É maravilhoso lembrar das pessoas amadas quando se está ausente.

Ao meio-dia voltei para casa cumprindo a irresistível via-sacra dos finais de semana: de boteco em boteco. Parecia estar pagando uma promessa inacabável ao satisfazer-me enchendo a cara, e hoje me clareio que havia um prazer mórbido ao me autodestruir.

Lá para as tantas da tarde, ao cumprir meu penúltimo compromisso com o copo, me deparei com um indivíduo, um mendigo que catava restos de pipoca espalhados na calçada e prazerosamente devorava-as como se fosse o mais requintado dos alimentos. Condoí-me do miserável e o convidei a se aproximar. Ofereci-lhe qualquer coisa a comer, mas ele exigiu vodka. Achei esquisito um mendigo querer uma bebida tão nobre, mas dei, e ele ingeriu goela abaixo num movimento brusco. Ficamos a prosear. Ele tinha os olhos azuis e um olhar triste. A pele era suja e escamada pelos maus-tratos; roupa esfarrapada e fétida; cabelos sebosos e encaracolados e falava o português com um sotaque quase que incompreensível. Disse-me ser europeu e que fugira da Rússia por motivos vários. A princípio nada queria falar. Dei-lhe outra dose da vodka para desenrolar a língua e se comunicar com mais perceptividade e foi então que ele passou a falar dos czares, de Yuri Gagarin, de Moscou, de San Pitsburgo, da Praça Vermelha, de Stalin, de Lênin, do poderoso Leonid Brezhnev (naquele tempo não se podia falar de comunistas por aqui) e de tantos outros nomes que não mais me lembro. Disse-me, com um sorriso meio tristonho e transitório que outrora havia sido um técnico da aviação e que aqui, no Brasil, era ele um técnico do cata-cata. Rimos juntos e ficamos assim... uma espécie de amigos.

E no lugar da vodka, tome-lhe pinga. O botequeiro mostrava-se insatisfeito e inquieto com a presença do tal freguês. Paguei a conta e o convidei a almoçar comigo, em minha casa. E saímos nós, ombro-a-ombro, cambaleantes e desaprumados pela rua.

A patroa nos recebeu de cara feia e protestou com aspereza por aquele indivíduo estar na sua casa, sentado à sua mesa, porém eu só queria ajudar àquele mísero que tinha uns farrapos no corpo como único cabedal. Para minimizar sua situação eu o autorizei a se banhar com direito a chuveiro quente, toalha, cueca, calça lavada e passada, meia, sapato (usado) xampu, espelho, sabonete, creme de barbear, barbeador, desodorante, chinelo, loção pós-barba, tesoura e pente.

O sujeito demorou meio século para se banhar cantarolando em russo. Haja paciência. Assustei-me com sua aparição quando saiu do banheiro. Nem parecia o mesmo que a pouco entrara no banheiro. Estava ele limpidamente vestido, barbeado e penteado.

Fiquei contente com a minha boa ação: a famosa ação de graças da qual não vejo nenhuma graça. Sentou-se e comeu fartamente do meu frango.

- Agora o senhor pode ir embora – disse a patroa.

- Espere um pouco – eu falei. Fui ao quarto e voltei com o dito paletó verde e o mandei vestir. O homem ficou radiante com o presente, agradeceu por tudo e foi embora a passos apressados.

Sentei-me no batente da porta e fiquei a pensar o quanto que eu fui útil àquele miserável. Achava que uma boa ação é paga com outra.

Passados uns vinte minutos eu falei para a patroa:

- Poderia me trazer um cigarro, o meu acabou?

Com uma voz indócil ela respondeu:

- Não estava no bar, por que não comprou?

- Por que gastei tudo com a bebedeira! – bradei insistente: - Então me traga um dinheiro. Irei comprá-lo!

- Onde ele está? – falou com muita prudência.

- No paletó verde, oras! – respondi esbravejando

- Mas... o paletó verde você não deu ao mendigo?

- Meu Deus! – gritei desesperado.

Saí correndo pelas ruas, enlouquecido, à procura do distinto mendigo. E a todo vizinho que encontrava, eu perguntava:

- Você viu passar por aqui um mendigo vestido num paletó verde?

- Mendigo de paletó verde? Nããão!

Outros zombavam:

- Você é louco? Mendigo só se veste com trapos! Vi nenhum não.

E agora? Como pagarei o aluguel da casa, a luz, a água e a comida do mês? Só me restava xingar o russo, e isso eu fazia a todo instante:

- Tomara que aquele desgraçado morra!

Anoiteceu. Não houve festa. “Só no ano que vem”, dizia aos convidados que iam chegando. E por um bom tempo fui chacoteado como “o homem do paletó verde”.

E você, leitor, quer passar por um vexame desse? Então beba!”